Diálogos da Fé

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A morte de Mãe Bernadete e as várias faces do racismo religioso

Morremos um pouco por dia com a morte de mães Gildas e mães Bernadetes. Até quando morreremos? 

Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Uma Ialorixá é uma rainha – e o racismo não suporta a existência de uma rainha negra. 

Mais uma Ialorixá negra foi assassinada pelo racismo. Maria Bernadete Pacífico morreu Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na noite de quinta-feira 17. De acordo com seu filho, Welington, levou doze tiros na região do rosto

Líder quilombola, coordenadora nacional de Articulação de Quilombos e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial do município de Simões Filho, Bernadete Pacífico estava sob proteção da Polícia Militar, por meio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH) há pelo menos dois anos.

A extração de madeira na comunidade quilombola onde a Ialorixá morava e atuava é ilegal, porque se trata de uma Área de Proteção Ambiental (APA). Para proteger a natureza, as árvores sagradas e todo espaço ancestral, bem como a subsistência do povo quilombola, a líder denunciava os exploradores e recebia inúmeras ameaças por isso. 

O quilombo Pitanga dos Palmares, liderado por Mãe Bernadete, é responsável por uma associação onde mais de 120 agricultores produzem e vendem farinha para vatapá, além de frutas e verduras como abacaxi, banana da terra, inhame e maracujá. 

Cerca de 290 famílias vivem no local, de 854 hectares. O quilombo foi certificado em 2004, mas ainda não teve o processo de titulação concluído.

A execução da Ialorixá é o segundo caso de morte violenta na família. Há, aproximadamente, seis anos, o filho, conhecido como Binho do Quilombo, também foi assassinado com 17 tiros. O racismo matou ambos.

O racismo também é um desrespeito à existência negra. O racismo desumaniza em nome de interesses do poder, justamente para poder matar corpos e mentes negras. 

O racismo é um crime complexo, o racismo existe para matar existências negras; isso está previsto no sistema;  o racismo possui estratégia, sistema imunológico social avançado e muitos cúmplices, aliados, comparsas que, todos os dias, se beneficiam da sua existência. Comparsas assumidos, comparsas inconscientes, comparsas que não querem sair dos seus lugares de privilégios e poder. 

Por que precisamos adjetivar o racismo? Porque ele é tão complexo, elaborado e manifesta-se de tantas formas diferentes e se renova todos os dias que seria impossível compreendê-lo e combatê-lo sem uma semântica adjetival. O racismo é um crime “qualificado”.

No caso do assassinato da Ialorixá Bernadete temos o somatório de racismo religioso, racismo ambiental e racismo geográfico. 

O racismo tem seus alvos. O racismo mata crianças, mulheres, homens, LGBTQIAP+ negros. O racismo mata sacerdotes e sacerdotisas das religiões negras no Brasil. Muitas lideranças quilombolas negras já morreram em nome da exploração de terras sagradas. 

De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Mãe Bernadete é a 11ª quilombola morta na BA nos últimos 10 anos.

Guardiões dos saberes ancestrais têm sido não só impedidos de partilhar cura por meio de seus saberes negros, não só impedidos de manter um legado ancestral negro, não só impedidos de proteger territórios ancestrais, mas também têm sido mortos pelo simples fato de praticarem uma religião negra e seguirem o que a ética da ancestralidade preconiza: a proteção e manutenção de territórios ancestrais. 

Uma Ialorixá que tem seu terreiro próximo a outro quilombo da Bahia e não quer se identificar por receio de ser morta disse “que abriu mão de novos iniciados com medo de lhes colocar a marca da morte no corpo”. Contou-nos que já estão sendo silenciados em diferentes comunidades da Bahia e que tem feito seus rituais e celebrações apenas com palmas para que os tambores não sejam ouvidos. 

Isso quer dizer que retornamos aos tempos do “Xangô rezado baixo” em algumas regiões do Rio de Janeiro e cidades do Nordeste. 

A expressão “Xangô rezado baixo” se refere ao desdobramento do “Quebra de 1912”. Um fato político que se deu contra as religiões de matrizes africana no Brasil e culminou com a invasão e destruição dos principais terreiros de Xangô da capital de Alagoas. 

Os terreiros foram invadidos pelos populares ligados aos sócios da Liga dos Republicanos Combatentes, uma espécie de milícia de capangas opositora do Partido Republicano de Alagoas, então chefiado por Euclides Malta, que se encontrava no exercício de seu terceiro e à beira de eleger seu candidato nas eleições que se aproximavam.

Em uma situação análoga, o racismo religioso já nos tirou Mãe Gilda, no dia 21 de janeiro de 2000. A Ialorixá do “Abassá de Ogum”, em Itapuã. Após publicação na folha universal, em outubro de 1999, associada a uma agressiva e comprometedora reportagem sobre charlatanismo, sob o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A matéria afirmava estar crescendo no País um “mercado de enganação”. Nesta reportagem, a foto da Mãe Gilda, aparece com uma tarja preta nos olhos.

A Folha Universal tinha na época uma tiragem de 1.372.000 unidades, ampla e gratuitamente distribuídas.

A acusação racista inicia um processo público de perseguição por parte de evangélicos e até pessoas da própria religião por entenderam que a Ialorixá havia se convertido ao neopentecostalismo e Mãe Gilda de Ogum, faleceu, aos 65 anos, de um infarto fulminante, em consequência desses acontecimentos, que a abalaram profundamente. Ela foi assassinada pelo racismo religioso. 

O racismo religioso mata!

O racismo nos tirou a Ialorixá Bernadete; o racismo religioso já nos tirou Mãe Gilda de Ogum; os traficantes de Jesus, no Rio de Janeiro, já fecharam inúmeros terreiros e silenciaram vozes ancestrais. 

Até quando?

Quando teremos uma política pública eficiente e capaz de proteger estes territórios ancestrais. Os terreiros são equipamentos de cura biopsicossocial. Os terreiros representam a capacidade de resistência de um legado mantido durante a escravização de mais de cinco milhões de negros. 

Os quilombos representam igualmente espaços de resistência e da sobrevivência de negros escravizados. São espaços de manutenção da história negra no Brasil. Comunidades formadas por africanos escravizados e seus descendentes. 

Essas comunidades eram formadas por escravos que fugiam da escravização, sendo um local onde viviam em liberdade e, por meio do qual, resistiam à violência racial. Nos quilombos não viviam apenas africanos escravizados, mas também indígenas e houve trocas culturais entre ambos os povos.

Hoje, os quilombos continuam com seus descendentes que se esforçam não só para a manutenção da memória dos seus ancestrais, mas também pela manutenção do território e de sua natureza. 

E morremos um pouco por dia com a morte dos terreiros e quilombos.

Morremos um pouco por dia com a morte de mães Gildas e mães Bernadetes.

Até quando morreremos? 

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