Diálogos da Fé

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A liberdade religiosa é alvejada pelo fundamentalismo e pela ignorância

Mesmo pessoas em posição de vulnerabilidade ainda acreditam que, fora da moral cristã, nenhuma ordem, equilíbrio e bem viver são possíveis

Foto: Amanda Oliveira/GOVBA
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Nesta semana, um terreiro de Candomblé na cidade de Brumado, no sul da Bahia, foi alvo de um ataque a tiros. Inúmeros disparos atingiram a porta de entrada e a frente da sede da comunidade. A Polícia Civil investiga o caso e não descarta a possibilidade de intolerância religiosa.

Segundo o Babalorixá, Ivo de Oyá, responsável pelo centro religioso de matriz africana, graças aos Orixás, não houve feridos.

Brumado é conhecido como a “Capital do Minério”, por possuir em seu subsolo variados tipos de minerais, onde se localiza a terceira mina de magnesita do mundo.

Gostaria que observássemos a religiosidade de Brumado: de acordo com o censo do IBGE de 2010, 79,04% da população de Brumado se autodeclarou católica; 11,55% evangélica; 1,72%, espírita; 0,07%, de umbanda e candomblé e 3,55%, de outras religiosidades. Cerca de 4% da população da cidade declarou não ter religião. 

Muito embora possamos dizer que este número está subestimado por conta dos impactos do racismo e do medo de se colocar em perigo diante da autodeclaração religiosa, apenas 0,07% se autodeclarou de Umbanda e Candomblé de acordo com o censo do IBGE 2010. A cidade é 90% cristã e predominantemente cristã-católica. 

Não precisamos de uma profunda análise semiótica e sociológica para depreender que alguém que atira contra uma comunidade religiosa o faz por ódio, por medo, por colocar semanticamente o terreiro no lugar de inimigo. Trata-se de uma decisão que emerge do somatório de inúmeras variáveis: discurso de ódio de líderes religiosos, racismo, medo, ignorância e até fragilidade intelectual.

Não é novidade que lideranças religiosas têm potencializado o hermetismo do discurso religioso. Isso se dá por conta dos efeitos de sentido gerados pelo medo – sempre presente no reforço da existência do “mal” para a venda de um suposto “bem”. Obviamente, que o discurso insere as próprias lideranças destas religiões hegemônicas no centro da salvação do mundo, no centro da luta do bem contra o mal – sempre personificado em qualquer discurso ou ideia que se afaste de um padrão único de religião.

Mesmo pessoas em posição de vulnerabilidade ainda acreditam que, fora da moral cristã, nenhuma ordem, equilíbrio e bem viver são possíveis. Desse modo, estas pessoas se apegam a uma única possibilidade de autovalor, transferindo também a autorresponsabilidade da própria vida para uma força mítica que, em tese, nada ou pouco tem a ver com isso. 

Por que digo isso? Sabemos que, no Brasil, há uma estreita relação entre formação educacional e mobilidade social. E, se cruzarmos os dados de formação educacional e religiosidade, veremos que o ódio, muito embora não seja regra, também é resultado de ausência de criticidade. 

Ainda, de acordo com o Censo de 2010, em Brumado, 63,88% dos católicos não têm instrução ou têm o ensino fundamental incompleto; 12,50% possuem o ensino fundamental completo; 19,94% possuem o ensino médio e 3,71% possuem o ensino superior. No caso dos evangélicos, 54,20% não têm instrução ou têm o ensino fundamental incompleto; 15,51% possuem o ensino fundamental completo; 29,94% possuem o ensino médio e 5,28% possuem o ensino superior.

São várias as análises e hipóteses possíveis para o cruzamento destes dados. Todavia, é inegável que há uma evidente ausência de liberdade de pensamento e que o senso de devoção tem sido capturado por alguém. O ódio é conduzido. Alguém está movimentando as cordinhas. Some-se a isso o fato de não ser pequeno o número de religiosos de diferentes denominações cristãs sem o vínculo a uma instituição/denominação religiosa. Nos Estados Unidos, os “sem igreja” já somam 23,7%. Os dados são do livro do Pastor Ryan P.  Burge, 2021 – The Nones: Where They Came From, Who They Are, And Where They Are Going. [“Os sem igreja”: De onde vêm, quem são e para onde vão”, em tradução livre]

Precisamos nos preocupar com o avanço do fundamentalismo no nosso país. O “Relatório da Liberdade Religiosa no Mundo” da acn.org.br, produzido desde 1999 e atualizado a cada dois anos. Trata-se do único estudo realizado por uma instituição católica que analisa o respeito a este direito humano em 196 países do mundo, abrangendo todas as religiões, revela que, embora a perda de direitos fundamentais como a liberdade religiosa possa ocorrer subitamente, por exemplo através de conflitos e guerras, em muitos casos não acontece do dia para a noite, mas é, sim, frequentemente um processo de erosão do sistema democrático de direito que ocorre, às vezes, até sutilmente, ao longo de anos. Assim como as telhas individuais de um telhado são danificadas uma a uma, ou algumas de cada vez, por ventos cada vez mais fortes, o observador acaba reconhecendo que já não existe qualquer cobertura, e que está exposto aos ventos. Estes ventos assumem a forma de governos autoritários, redes terroristas transnacionais ou líderes religiosos fundamentalistas apenas com interesses capitalistas que incitam multidões prontas a fazer linchamentos.

As razões para a erosão do direito à liberdade religiosa são patentes, mas também podem ocorrer como consequência do atrito criado pela introdução de novas leis e regulamentos que, tendo identificado a religião x ou y como parte do problema, forçam gradualmente a manutenção de uma única identidade religiosa para a condução do espaço público e para a colonização de mentalidades.

De acordo com a ACN, cerca de quatro bilhões de pessoas vivem em 26 países classificados como “países de perseguição religiosa extrema e/ou “países com casos graves de violação da liberdade religiosa”.

O que temos visto no Brasil, com o avanço de um discurso religioso fundamentalista e a utilização, no discurso político, de cosmovisões religiosas únicas e salvadoras, inclusive, fazendo com que governantes tenham de ceder a dimensões menos sociais e mais religiosas, afastando da dinâmica política a luta por igualdade social de forma concreta e, tem empurrado o nosso país para uma zona de perigo, ou seja, a violação da laicidade constitucional e a entrega de problemas concretos a uma dimensão mítica espiritual da religiosidade.

Se alguém se sente à vontade para alvejar uma comunidade religiosa porque a vislumbra como o mal o que virá depois? O que há por trás de quem porta a arma e o que há além da porta alvejada? 

Realmente, como nos alertava há tempos, o filósofo camaronês Achille Mbembe, “a Era da humanidade acabou”. 

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