Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

A força da religião ainda assusta a esquerda

É importante lembrar que tudo é político, inclusive a espiritualidade

(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
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Nos anos 90, ainda criança, em uma igreja pentecostal na zona leste de São Paulo, cresci cantando quase todos os domingos na “salinha” (encontro infantil) a seguinte canção:

“Sou um soldadinho, servo do Senhor, marcho em defesa para o Evangelho (…)/mesmo que eu não marche na infantaria, cavalaria, artilharia, e que nem um avião eu saia voando, belo soldado eu sou, belo soldado eu sou…” 

É interessante notar como essas músicas marcam nossa vida. Lembro a coreografia que nos ensinavam: na estrofe que simulava o som de balas, fazíamos arminhas com as mãos, balançando-as de um lado para o outro. Não era o único “louvor” que incitava a questão militar: nos cultos, sempre era cantado músicas como “O nosso general é Cristo”, “Senhor dos Exércitos” e “Somos o Exército de Deus”…

Já adolescente, no grupo de jovens da igreja, entregamos uma imagem feita em estêncil de uma granada com um coração dentro, e na célula fizemos uma festa onde foi exibido um trecho do filme Tropa de Elite – aquele onde o Capitão Nascimento falava sobre estratégia, e um dos personagens dormia. Havia cartazes escrito: “Você está preparado?”. Jovens e adolescentes vestiam camisetas camufladas escrito “Exército de Cristo – Aliste-se” e tinham os rostos pintados. Em uma chamada nas redes, havia a seguinte frase: “A granada tá na mão”. 

A noção de uma missão cristã com uma abordagem militar pode parecer contraditória à primeira vista. No entanto, para aqueles que foram educados desde a infância sob uma estrutura teológica específica, essa conexão fazia todo sentido, era uma forma de “marcar a geração”, cumprir a missão.

Parte da missão do “povo de Deus” (pregar o evangelho, sarar a terra, expulsar o mal, combater o inimigo…) é muito presente na chamada teologia do domínio e da batalha espiritual. Esses conceitos são frequentes nas igrejas, onde discursos intensos e até agressivos são aplaudidos por motivarem os fiéis. A ideia de estar sempre vigilante e pronto para a luta espiritual, protegido pela “armadura de Cristo”, é um ensinamento recorrente .

Quando observamos o ato de 25 de fevereiro em São Paulo, em meio a denúncias de tentativa de golpe do ex-presidente Jair Bolsonaro, notamos a forte presença da gramática religiosa em diversos discursos durante todo evento. Michelle Bolsonaro, importante elo entre o ex-presidente e os evangélicos, adotou um tom emocionado e repleto de expressões típicas desse meio ao dizer: “Não tem como não se emocionar tendo o exército de Deus nas ruas, tendo o exército de homens e mulheres patriotas que não desistem de sua nação”.

Um discursos mais fortes foi a narrativa de perseguição a Bolsonaro, interpretada por muitos no meio evangélico como uma dádiva, um testemunho de fé e alinhamento com a vontade divina, ecoando a temática bíblica dos “perseguidos por causa de Deus”. A postura mais enfática foi a do pastor Silas Malafaia, que abriu sua fala condenando a posição do presidente Lula sobre as denúncias de genocídio contra o povo Palestino por Israel, e defendeu que Bolsonaro é quem mais enfrentou perseguição política no País.

As declarações de Nikolas Ferreira (PL), embora breves, destacaram a ideia de união em torno de uma liderança: quando o líder se levanta, o povo se levanta junto a ele. Ele também carimbou a oposição como “inimiga”, reforçando a narrativa de batalha espiritual. E concluiu: “A hora mais escura, antecede o amanhecer. Talvez não hoje, não amanhã, mas um dia veremos novamente um presidente de direita retornar a Presidência da República do nosso país. O presente pode ser deles, mas o futuro será nosso. Que Deus sare esta nação.”

O recém-divulgado relatório do Centro de Análise da Sociedade Brasileira (CASB), lançado em 2024, aponta que a tradição que de que religião não se misturava com política, o chamado quietismo (‘o que é do mundo, é do mundo’)”, ficou para trás. Isso fica claro em todo desenrolar político brasileiro dessas últimas décadas, como é possível observar nas diversas pesquisas publicadas na plataforma Religião e Poder, do Instituto Superior de Estudos da Religião. E também em outra declaração de Michelle Bolsonaro na Paulista: “Por um bom tempo fomos negligentes a ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião, e o mal tomou o espaço. Chegou o momento da libertação”.

Para parte dos evangélicos ali presentes, a ocasião foi vista como uma testemunho de sua coragem em expor a mensagem, os princípios e o propósito divino. O trabalho do CASB, que aponta: “Aqueles mais à direita possuem mais orgulho e menos inibição em defenderem suas posições publicamente, mesmo que sejam pouco afeitos ao diálogo – reforçando que a direita vive um momento na conjuntura no qual não há inibição em ter determinadas posturas ou opiniões.” A provocação do filósofo Vladimir Safatle acerca de a extrema-direita ser a “única força política real do país” não está fora da realidade, pois ele menciona um ponto importantíssimo que é a coesão ideológica, que tem como principal instrumental a religião.

A força política da religião ainda assusta a esquerda, entretanto, não deveria ser assim. A história mostra que foi justamente essa energia religiosa que impulsionou uma série de movimentos populares e organizações de base durante o auge da Teologia da Libertação na América Latina. 

O pensador marxista italiano Antonio Gramsci via a opressão da religião contra o povo na domesticação e exploração da classe trabalhadora, mas reconhecia também que pode ser um instrumento de denúncia, e de protesto. Um fermento necessário para a mobilização das massas na construção de um senso comum contra-hegemônico.

É importante lembrar que tudo é político, inclusive a espiritualidade. Seguir ignorando o discurso religioso e menosprezando a espiritualidade são escolhas da esquerda, mas isso pode obscurecer o entendimento e a relevância das propostas de emancipação dos trabalhadores e da busca pela soberania nacional.

Enquanto isso, muitas crianças e adolescentes são introduzidos a uma visão de espiritualidade nas igrejas que promove uma imagem de um Jesus conquistador e dominador, mas jamais servir, como diz o Evangelho de Mateus 20:28. A canção infantil ainda ressoa: sou um soldadinho, servo do Senhor….

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