Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

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Super Terrinha contra o baixo astral na CPI do MST

Diante do show de horrores que se tornou a comissão, cabe ao movimento mostrar os resultados de uma luta de quase 40 anos – com 450 mil famílias assentadas e uma agroindústria robusta

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“Isso é gelo, papai?”, perguntou uma criança de 8 anos ao ver uma garrafa pet com água congelada. Vestindo uma camisa do Flamengo, com os pés descalços e brincando no terreiro, o menino ficou encantado ao ver a garrafa. Filho de pais acampados em barracas cobertas com lonas pretas, ele já tinha visto sua casa ser queimada e destruída mais de uma vez, mas, até então, nunca tinha visto gelo.

A realidade desse menino sem-terra passa longe da CPI sobre o MST instalada no mês passado na Câmara dos Deputados e prevista para durar até setembro. A comissão serve de palco para deputados da direita e extrema-direita produzirem cortes lacradores de vídeos para as redes sociais e prepararem o terreno para a bancada do agro plantar o caos contra o governo Lula, freando os acenos às temáticas ambientais e indígenas do petista. Além, é claro, de ser usada como cortina de fumaça para outra CPI, a do 8 de janeiro.

A aposta de quem comanda a CPI do MST é na desinformação, de ressuscitar um velho inimigo da bandeira vermelha para atiçar o público verde e amarelo abilolado e transformar um assunto fundamental para o desenvolvimento de qualquer país civilizado – a Reforma Agrária – em tabu político. Querem forjar um debate para interditá-lo na essência.

Quem enche a boca para falar que os movimentos pela reforma agrária IN-VA-DEM fazendas comete um erro crasso

Acompanhar as sessões da comissão é um espetáculo de baixeza e misoginia com parlamentares que tentam emprestar dignidade ao debate, como ocorreu com a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP) ao ter o microfone cortado. Baixo astral total.

De volta àquele que nunca tinha visto gelo na vida. Desde que nasceu, o menino vive sem energia elétrica e sem saneamento básico. Sua casa é um barracão coberto com lona preta sob o sol abrasador em uma área pública em Novo Mundo, no norte do Mato Grosso. Visitei o acampamento para fazer uma reportagem sobre as ameaças sofridas pelas famílias que lá viviam. Com um pouco de esforço jornalístico entendi que os invasores daquele pedaço de terra eram os herdeiros de um médico do interior de São Paulo.

Está aí a diferença. Enquanto os sem-terra ocupavam a área, os herdeiros invadiam. Quem disse isso? A Justiça Federal.

Quem enche a boca e dispara perdigotos para falar que os movimentos que lutam pela reforma agrária IN-VA-DEM fazendas comete um erro crasso. Quando cada um desses movimentos – chamados preguiçosamente de invasões – são escrutinados e o histórico da posse das fazendas investigadas, descobre-se justamente o contrário. Quem invade a terra pública é quem reivindica a posse e brada contra os movimentos sociais.

Quando movimentos sociais ocupam uma terra (destaque para o uso do verbo adequado: ocupar) estão cobrando a aplicação da lei. Mais precisamente o que está previsto no capítulo três da Constituição, em seus artigos 184 a 191.

“Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses”, escreveu em um artigo a jurista Carol Proner.  “Há uma legitimidade tremenda”, resume o geógrafo e professor da Universidade Federal da Paraíba, Marco Mitidiero, sobre as ocupações de terra.

Doutor em geografia humana pela USP, Mitidiero é um dos autores do dossiê  “O Agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo” publicado pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). O título é uma crítica a campanha midiática que tomou a televisão, sobretudo a TV Globo, desde 2016.

O dossiê mostra como os verdadeiros invasores de terra passaram por uma repaginada nos últimos anos. Na década de 1970 o termo usado para se referir às fazendas gigantes era latifúndio. Na década de 1980, passou a ser chamado de agribusiness, Depois, entre os anos 1990 até 2016, recebeu a denominação de agronegócio. Com a campanha de marketing virou Agro.

Contudo, o marketing é apenas um detalhe. “A mais marcante força do agronegócio é o seu poder político, espraiado, principalmente, nos poderes Legislativo e Executivo de municípios, estados e da federação. A velha Bancada Ruralista, repaginada na Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), constitui a mais duradoura e efetiva força política no parlamento”, destaca Mitidiero no dossiê.

Além dos convictos integrantes da bancada ruralista, as ideias estão espalhadas por quase todo Congresso como uma praga. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), 68% da Câmara, ou 2 a cada 3 deputados, foram cúmplices do desmonte socioambiental.

Eles propuseram e votaram leis pelo desmonte da fiscalização ambiental e o favorecimento de atividades econômicas predatórias. Deram continuidade à precarização da legislação trabalhista, dificultando o acesso a benefícios sociais  e ainda paralisaram a reforma agrária, como mostrou o  Ruralômetro, uma plataforma de dados e consulta sobre a atuação da Câmara dos Deputados, desenvolvida pela Repórter Brasil.

Ou esses deputados estão mal preparados ou operam por razões que vão além do interesse nacional e republicano. O estudo de Mitidiero mostra que a análise dos números da balança comercial leva a uma conclusão rápida de que o Agro é o salvador da economia nacional devido às exportações de commodities como a soja. “Mas existem outras interpretações, a começar por uma indagação muito oculta no debate político-econômico: qual país rico e avançado alcançou esse status produzindo e exportando matéria-prima? Nenhum!”, aponta o dossiê.

O que movimentos como o MST querem é justamente o que o Agro não oferece e grande parte do Congresso não consegue enxergar. Uma agricultura diversa, sem concentração, voltada para o consumidor nacional e espalhada por todo o território nacional. Com quase 40 anos, o movimento tem 450 mil famílias assentadas que se organizam em 1900 associações, 160 cooperativas e 120 agroindústrias.

Em São Miguel do Oeste (SC), 13 cooperativas de assentamentos ligados ao MST se uniram e criaram a marca Terra Viva há 27 anos. Hoje, os produtos atingem um público de 1,7 milhão de consumidores no Sul e no Sudeste. Um desses produtos, inclusive, está na geladeira da minha casa: um leite achocolatado de caixinha. Foi comprado por minha companheira no Armazém do Campo, rede de lojas do MST presente em 34 cidades em 15 estados.

Olhando a embalagem e observando o desenho de um super herói com o punho esquerdo erguido e trajando capa vermelha fico pensando na criança que conheci no norte do Mato Grosso, aquele menino que nunca tinha visto gelo. Pensando que a persistência da família dele pode ser recompensada, como aconteceu com os sem-terra de Santa Catarina, que hoje vendem seus produtos para diversos estados.

Tomara que os deputados obtusos que encenam o teatro absurdo na CPI não atrapalhem.

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