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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Economia desigual é obstáculo para o direito à cidade

A cidade é hoje a Casa Grande para alguns e a Senzala para muitos

Imagem: TV Brasil
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“Ao modificarem o perfil de distribuição da renda, essas forças políticas emergentes mudaram a fisionomia da sociedade e, paradoxalmente, engendraram nela novas fontes de dinamismo”  – Celso Furtado, O Capitalismo Global, Ed. Paz e Terra

Muitas das diversas questões colocadas por uma realidade de desigualdades estão relacionadas ao solo urbano e a tudo o que ele engloba: favelas, enchentes, lixões, poluição das águas, desmoronamentos, mobilidade e acesso à moradia” – Estudos da CNBB 109, Ed. Paulus

 “Quem acompanha de perto a realidade das cidades brasileiras não estranhou as manifestações que impactaram o País em meados de junho de 2013” – Ermínia Maricato, Cidades Rebeldes, Ed. Boitempo

O presente texto, de forma simples e inacabada, quer contribuir para a urgente e necessária articulação do debate sobre o direito à cidade, reforma urbana e as graves consequências das políticas econômicas que aprofundam as desigualdades em nossos territórios urbanos. Sem a articulação por um modelo econômico que tenha como centro a justiça social e ambiental, será praticamente impossível construir cidades com igualdade e bem-estar para todos e todas.

Para começo de conversa, trago as palavras desse grande pensador, ativista e um técnico do aparelho do Estado em diversos momentos cruciais. Alguém que vem de uma região marcada pela brutal concentração de renda, viu de perto isso, foi um dos maiores formuladores de políticas que interferiram diretamente na realidade brasileira e esteve à frente de importantes instituições, como o Ministério do Planejamento, a Sudene e o Ministério da Cultura: Celso Furtado.

Diante de toda sua experiência, no seu livro O Capitalismo Global e em outros momentos e textos, ele ressalta a importância da pressão das forças sociais, reconhecendo que todos os avanços vinham mediante articulação e pressão dessas forças sobre o aparelho do Estado. Sem a legítima pressão dos/as atores e atrizes sociais, as mudanças não acontecem. Ele, como poucos, soube entender e formular saídas para o grave problema brasileiro que são as desigualdades socioeconômicas e de rostos regionais em um país continental. E aqui está a chave para entender o espaço urbano como um dos lugares da reprodução dessa desigualdade e como um dos lugares onde o poder político e econômico decidem os rumos de nossas vidas. A cidade é hoje a Casa Grande para alguns e a Senzala para muitos/as.

Por isso, se queremos de fato questionar o modelo do espaço urbano que temos hoje em nossos municípios, temos que falar de qual modelo econômico rege nosso desenvolvimento e nossa organização societária. É pelo resultado do modelo econômico que reconhecemos uma cidade de bem-estar para todos/as ou uma cidade que segrega e concentra riqueza.

A economia e o direito à cidade

Infelizmente, o debate econômico atual é muito restrito e, se nem todos os economistas participam, quanto mais a população em geral. O debate se restringiu a pensar a economia como algo “técnico,” como o mundo apenas das finanças, da Bolsa de Valores, do Mercado Financeiro. Geralmente, os governos conversam sobre economia apenas com a elite do empresariado e, aqui e acolá, com alguns poucos sindicalistas, como se economia fosse para poucos/as, porém as suas consequências são para todos/as, inclusive para a vida do planeta.

Se sentimos as consequências, então é obrigação nossa fazer da pauta econômica a nossa prioridade e entendê-la como parte do direito à cidade. A economia é política.

A palavra “economia” deriva de outras duas palavras gregas: oikos, que quer dizer “casa”, e nomos, que quer dizer “administração”,”lei”. Poderíamos então definir economia como o cuidado da casa, ou administração da casa – portanto, popularmente falando, tudo o que se refere a termos uma boa casa diz respeito à economia.

Mas a qual casa estamos nos referindo? Trata-se da casa como cidade (município), a cidade como casa de todas e todos, onde ninguém fique de fora, onde ninguém fique sem um lugar para sentar-se à mesa e partilhar das potencialidades e das resoluções de sua administração.

Por isso, o pensar econômico é o pensar sobre a cidade que temos e que queremos. Ou seja, o direito à cidade, e toda possibilidade de reforma urbana das nossas municipalidades é, antes de mais nada, o direito à economia, o direito por uma democracia econômica, me atrevo a dizer.

 A democracia e o direito à cidade

 Não há democracia sem uma economia orientada para o cuidado de uma casa comum, onde o trabalho, o teto e a terra sejam prioridades e políticas públicas de promoção de justiça social e ambiental, onde as forças de pressão sobre os orçamentos públicos estejam voltadas para a inclusão e participação de todas e todas nessa administração. Resgatar o debate democrático por um planejamento urbano é pôr na ordem do dia como o capital se organiza, concentrando riqueza ou promovendo a justa distribuição da riqueza no espaço urbano.

Se temos cidades com grandes áreas de favelas, bairros pobres ao lado de bairros ricos, população em situação de rua, trabalhadores/as sem emprego e sem renda, e trabalhadores informais se organizando da sua forma é porque a nossa sociedade se desenvolveu sob um modelo econômico injusto e profundamente antidemocrático. Com muita luta, a sociedade brasileira conseguiu derrotar uma ditadura e conquistar a democracia política, porém ainda estamos presos à ditadura econômica da desigualdade e precisamos de ampla articulação para derrotá-la e conquistarmos a democracia socioeconômica e ambiental, pois sem essa a democracia política não se sustenta.

Muito se fala, e com toda razão, dos impactos perversos da especulação imobiliária, da ação do capital imobiliário sobre a vida das cidades, seu poder econômico sobre os governos e legislativos locais. Vemos a sua ação nos momentos de revisão de planos diretores ou de outras leis que favorecem essa especulação, mas o debate não pode se restringir aos setores imobiliários, dos resíduos sólidos ou da máfia dos transportes públicos. Estes setores na cidade representam um modelo econômico e influenciam outros setores, a exemplo do agronegócio e do mercado financeiro, os rumos da economia do País e quem se senta na mesa dos governos para decidir a macroeconomia.

O governo Lula 3 foi eleito na defesa radical da democracia contra tudo o que a extrema-direita e sua cara bolsonarista representam de fascismo, autoritarismo e concentração de riqueza e poder. Mobilizamo-nos pela democracia, pela retomada e pela criação de novas políticas de justiça social e ambiental, ampliando a participação da população no aumento da renda do País, porém é preciso que o governo Lula entenda que não basta repetir as boas políticas do período anterior do PT. É preciso ir além, olhar o Brasil urbano e articular a melhoria da vida individual, com urgentes melhoria, ampliação e qualidade dos serviços públicos, especialmente de trabalho e renda, moradia, saneamento, transporte, saúde, educação, cultura, só para citar alguns dos mais urgentes. Se quisermos derrotar e isolar politicamente a extrema-direita e o bolsonarismo, precisaremos, incansavelmente, elevar a renda e os direitos sociais, mas tendo a política urbana como uma das centralidades de toda a ação do governo.

Por mais importante que seja a recriação do Ministério das Cidades e a criação da tão sonhada e necessária Secretaria das Periferias, o palco central na luta pela democratização das cidades deve se dar na disputa pela política econômica do governo.

Se quisermos realmente ocupar esses espaços, além de pressionar o próprio presidente, o lugar de ocupação é o Ministério da Fazenda. É lá onde as decisões se darão, inclusive do impacto das políticas do Ministério das Cidades. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já teve em sua mesa o cotidiano de uma administração municipal com toda a sua complexidade e também as demandas da democratização da educação. Ele sabe como poucos ministros da Fazenda que já passaram por lá dos dramas da realidade brasileira. No entanto, se o deixarmos longe, a sua agenda será tomada, como sempre foi a agenda econômica dos governos, unicamente pela Casa Grande. É necessário dizer em alto e bom som que o governo Lula 3 democratize o debate econômico no interior de seu governo e com toda a sociedade.

Queremos participar!

A disputa pelo direito à cidade é a disputa pelos rumos da economia do governo Lula. Arrisco-me a sugerir que o ministro Fernando Haddad deveria ser o convidado principal, juntamente com o presidente Lula, para o seminário sobre os 60 anos do encontro pela reforma urbana. Mas, antes desse encontro, a mobilização pelo direito à cidade e à reforma urbana deve incluir, entre suas ações e prioridades, o diálogo com a área econômica do governo, pois essa área inclui os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria, que são responsáveis pelas decisões econômicas e influenciam todo o governo.

Isso também significa incluir a busca de diálogo e pressão sobre o tão fechado Banco Central. Não basta dialogar e ocupar o Ministério das Cidades, por mais importante que seja. É fundamental ocupar e buscar o diálogo de forma permanente com a área econômica do governo e com a mesa do presidente da República.  Como diz o Frei Betto: governo bom é que nem feijão, só vai na pressão.

É preciso redesenhar e repensar as nossas lutas em torno de conselhos, conferências, revisões de planos diretores, orçamentos… Sem enfrentarmos e trazermos o debate dos rumos da economia, corremos o risco de fazer muito esforço e colhermos pouca efetivação das legislações e dos espaços institucionais por que tanto lutamos.

Olhando o município, antes da luta de qualquer legislação ou espaço de participação sobre a política urbana, é preciso questionar e entender para onde o desenvolvimento econômico está levando o município e como podemos mobilizar e construir estratégias para pensarmos novos horizontes para a economia local.

Pensar/trabalhar por uma nova economia é articular um novo projeto societário, uma nova aliança que pense o chão urbano como germinador de novas formas de organização societária.

Basta uma ida às nossas periferias para testemunharmos tantas iniciativas que apontam para uma nova economia e mostram como o direito à cidade se concretiza no direito de uma democracia econômica. Cito aqui só alguns exemplos que encontramos pelo País afora: as cooperativas de produção e distribuição de energia renovável solar, as múltiplas iniciativas de economias solidárias, as moedas sociais, os bancos comunitários, as feiras urbanas agroecológicas, as cooperativas solidárias de crédito, as feiras de troca e a luta antirracista.

Lembro aqui um importante aliado na luta e nas formulações por uma nova economia: o Papa Francisco, que, olhando a vida de São Francisco e Santa Clara de Assis, fez um chamado para (re)almar a economia, ou seja, dar uma alma, dar a centralidade do cuidado da vida humana e do planeta, como inspiração primeira e responsabilidade do sistema econômico, movimento que se espalhou pelo mundo como “Economia de Francisco” e aqui no Brasil como “Economia de Francisco e Clara”.

Pelo Brasil, para além da academia, vamos encontrar muitos novos pensadores/as e organizações debatendo e formulando novas formas de economias. Aqui é preciso reconhecer a nossa diversidade e a necessidade de colorir e interiorizar o debate do direito à cidade.

A realidade das grandes metrópoles não pode sufocar a diversidade do pensar a cidade deste País continental, de biomas diferentes, de pequenos, médios e grandes municípios por uma política econômica que garanta a efetivação do direito à cidade. A luta democrática nesta quadra histórica requer todo o esforço e toda articulação pela nova economia.

Ainda há muito por dizer e mais ainda por fazer, pensar/trabalhar….

Caminhemos!

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