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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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A sombra da reforma urbana autoritária e os internatos urbanos

É necessário esperar por melhoras, mas não passivamente ou agindo como se a urna somente fosse sinônimo de democracia

Boulevard Haussmann - 1853. Imagem: Domínio Público
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*Por Marcelo Karloni

O cientista social se destaca pela compreensão profunda da essência dos processos sociais, uma habilidade desenvolvida através de estudo e treinamento rigoroso. Essa visão aguçada permite desvendar aspectos que, a olho nu, permaneceriam invisíveis, revelando nuances e dinâmicas que moldam a sociedade.

Clássicos como Marx, Engels e Freud, munidos de suas lentes analíticas singulares, ilustram a importância dessa expertise. Suas obras capturam o zeitgeist de suas respectivas épocas, oferecendo chaves para entendermos as raízes de diversos fenômenos sociais contemporâneos. Ao usarmos as “lentes” corretas, torna-se possível entender desde fatos sociais como o suicídio – que é um fato social – até a natureza do capital a partir de Marx ou ainda mal-estar da modernidade lendo Freud. Enfim, são muitas possibilidades a que podemos ter acesso graças a essas “ferramentas”.

Ao contrário do pensam até mesmo alguns setores à esquerda – que se dizem ser de esquerda, pelo menos – essas leituras não estão ultrapassadas ou mesmo superadas. São atuais e dotadas do espirito da práxis, a prática orientada pela e a partir da reflexão. Por isso, também importa considerar que a prática transformadora só o é de fato assim na medida em que advém de uma reflexão honesta e dedicada que se inicia com leitura, ou seja, aliando-se esta à vivência da contradição das condições materiais de existência dos sujeitos sociais. Dessa soma é que podem vir processos revolucionários e estruturantes em sentido diverso aos reformistas, marcas do nosso tempo. Fora disso, vira ativismo e, aquém disso, vira marxismo de “gabinete”.

Os extremos são sempre uma ameaça.

O que tem isso a ver com a reforma urbana?

Findo esse apontamento, veja-se agora um processo social a partir de uma lente específica para ilustrar o perigo que se avizinha da sociedade brasileira a partir das eleições municipais de 2024, que podem virar uma nova onda fascista em 2026. Qual o processo? A reforma urbana.

Qual lente utilizar? A radicalidade transformadora.

Comecemos pela reforma urbana, não a nossa, a de Paris, que ainda inspira governos autoritários na escala municipal em todo o mundo. Uma das consequências como todos que estudam a questão urbana sabem, advindas com a revolução industrial e toda a modernização que se segue, foi a formação na outra ponta do processo de espaços de moradia em alto grau de precariedade destinados aos trabalhadores europeus.

É conhecida a obra de Engels de 1845, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, na qual se descreve as condições de vida e habitação do proletariado inglês em cidades como Manchester, Notthigham, Londres e outras.

As condições materiais de existência descritas na obra de Engels – para fazer esta investigação abandona seu status como herdeiro de rica família industrial para viver entre operários por vinte e um meses – se repetem em muitas cidades da Europa.

Assim, fica evidenciado que essa materialidade advém da escolha por um modelo de civilidade e modernização assentado na concentração de riqueza originada, não apenas na superexploração do homem pelo homem, mas também na produção da miséria do explorado.

As condições de vida nas cidades, segundo essa concepção que inaugura uma amizade profícua com Marx, não são produtos da ausência de planejamento urbano ou mesmo de políticas públicas (numa época em que não existiam com formato atual) acertadas tão somente. As condições materiais precárias de existência são uma “necessidade” de reprodução do próprio capital e não a sua disfunção.

Não existe a precariedade por ineficiência pura e simples de órgãos de planejamento. Ela existe porque precisa existir e para que o modo de produção capitalista de mercadorias e de ideias continue sua jornada de acumulação autofágica. É crucial estabelecer essa compreensão antes de situar o papel simbólico da Reforma de Paris e sua influência na maneira como se enxerga a questão urbana no Brasil, além de sua relação com formas autoritárias de governo.

São cidades com fedentina, caóticas, com moradores de rua adoecidos, mutilados, crianças abandonadas, mulheres agredidas, prostituição como saída à sobrevivência e epidemias. Essa poderia ser tida como uma descrição sucinta do produto da modernidade industrial citadina na Europa.

No ano de 1853, Napoleão III (sobrinho de Bonaparte) nomeia um administrador para um cargo à época chamado de departamento da cidade. O nome: George-Eugène Haussmann. Sem conhecimento em urbanismo ou arquitetura, ou qualquer outra área correlata, Haussmann transforma Paris no que muitos chamam de “canteiro de obras”. A mesma expressão nada incomum de ser ouvida por prefeitos candidatos a reeleição quando desejam se referir aos “avanços” em suas administrações. Pelo menos aqui no Nordeste, de onde falo, ouve-se muito: “transformei a cidade em um canteiro de obras”, como um evidente sinal de desenvolvimento.

Em Paris, esse “canteiro” durou quase vinte anos. O projeto terminou por volta da metade da década de 1920 e demoliu algo em torno de 19.730 prédios de valor histórico, eliminando bairros inteiros considerados degradados e focos de doença. Talvez nem a invasão hitlerista tenha produzido tamanha destruição patrimonial. Na verdade, as tropas nazistas desfilaram pela Champs-Élysées em 14 de junho de 1940.

Obviamente, a reforma tinha um caráter higienista típico da época. Construiu um sistema de esgoto, distribuiu água doce, banheiros públicos e outros pormenores. Tudo válido, diga-se. Entretanto, o coração de sua reforma era conter revoltas populares. Isso mesmo: a finalidade última era facilitar o deslocamento militar quando posto em andamento para reprimir a expressão popular na rua, o que transformou a Ìlle de la Citè (uma ilha natural no rio Sena, centro de Paris) em área militar.

“A arquitetura é um problema administrativo”, portanto, subordinada ao Estado e, no caso de Paris, a um Estado golpista. Ou por acaso precisamos ignorar o fato de que Napoleão III é fruto de um golpe burguês? (para mais detalhes, basta ler O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx).  A não ser que insistamos em desvincular o urbanismo da democracia e das questões políticas nos contentando .;com esse planejamento urbano burocrático-castrador da emancipação da classe trabalhadora. Tem técnica, é bonito, mas é fascista e ditatorial. É uma escolha acima de tudo.

Como sabemos, essa reforma inspirou outras mundo afora. Le Corbusier nela se inspira para demolir prédios e construir edifícios calcado na ideia de que pedestres e carros não podem compartilhar o mesmo espaço. Barcelona, Rio de Janeiro (Plano Agache e sua estudada gentrificação) são exemplos que podem ser melhor explorados com mais tempo e outras leituras.

Aqui, o que se deseja enfatizar é que a essência da Reforma Urbana de Paris segue ditando agenda de planos diretores, além de outras reformas, planos de habitação e ações de governo.

Todas essas reformas são marcadas por elementos autoritários e fascistas que, lamentavelmente, não são facilmente percebidos nem pela esquerda moderada.

Autoritarismo urbano, materialidade do fascismo?

Vejamos o caso de São Paulo usando apenas – quando se diz “apenas” é porque são vários outros – a proposta ensaiada da construção de internatos rurais para abrigo de moradores de rua que foi veiculada em 2022.

Não é nova a ideia de isolar seres humanos do convívio social com base em diagnósticos médicos. O caso de Barbacena, retratado no livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, e que foi transformado em documentário é exemplo disso. Mais de sessenta mil pessoas morreram passando pelo internato fundado em 1903. O local escolhido foi considerado ideal por ser isolado e antes destinado ao tratamento de tuberculose.

Nesse espaço estavam homens e mulheres indigentes.  O que choca é que cerca de 70% dos internos não tinham nenhum diagnóstico de doença mental – termo usado à época. Alcoólatras, prostitutas, viciados, homossexuais, mulheres rejeitadas pelos maridos e familiares que não sabiam lidar com transtornos com Síndrome de Down, Autismo, Dislexia e assemelhados eram internados ali. O “tratamento”? Tortura, força e solitárias. O período no qual morreram mais pessoas? Entre 1960 e 1970, auge da ditadura civil-militar no Brasil.

O local foi chamado de campo de concentração nazista por Franco Basaglia. Bem, há muito a ser dito sobre Barbacena (MG), mas registro aqui o paralelismo com a prática higienista ainda formadora de quadros públicos e mesmo de universidades quando se fala de urbanismo, ou ainda achamos que o Brasil se livrou do fascismo pelo resultado das urnas em 2022? Estamos ainda engatinhando no entendimento de seus mecanismos e correndo contra o tempo  para frearmos “propostas” vistas como mal entendidas quando flagradas por governos estaduais de unidades da Federação ricas e favorecidas.

A proposta que parece estar sendo testada no nível do debate público no estado de São Paulo – apenas parece – tinha por finalidade criar escolas rurais em regime de internato para capacitar moradores de rua que, segundo o CadÚnico no estado, eram mais de 85.000 famílias – a maioria na capital.

Segundo defensores dessa proposta (um deles do Partido Liberal), a opção é do morador de rua em realizar internação ou não. É como um projeto que se apresentou, mas se pensa em unidades no interior de São Paulo e mesmo na capital.

Chamo a atenção para a história. História recente…

No ano de 2021, a Defensoria Pública do estado de São Paulo fez uma denúncia sobre a remoção forçada de moradores do centro da cidade, a chamada Cracolândia. Na ocasião, 375 famílias viviam na região da Luz e seriam removidas numa época em que ainda havia a recomendação de ficar em casa durante a pandemia. Mesmo diante do cenário de pandemia, optou-se pela remoção dessas famílias. Portanto, não seria nenhuma surpresa se projetos que falam de “espontaneidade” na prática virassem compulsoriedade quando postos em prática.

Não é anunciando-se como higienista que a reforma urbana de Paris se dá a posteriori fazendo bairros inteiros desaparecer, nem se anunciando exterminadora de judeus que campos de concentração traziam esses para seus espaços. Segunda a narrativa da época, tratava-se de um lugar de “trabalho” e não de morte ou isolamento. “Arbeit macht frei”, “ o trabalho liberta”: essa era a frase que recebia os judeus nas fachadas dos campos de concentração.

Na banalidade do mal, a sua perpetuação

É necessário esperar por melhoras, mas não passivamente ou agindo como se a urna somente fosse sinônimo de democracia. O voto não é suficiente e não será jamais. O fascismo, em todas as manifestações – incluindo a materialidade do viver a cidade ,- é sutil no início, mas violento e opressor tanto no conteúdo quanto na forma.

Poderíamos ainda falar da luta do padre Júlio Lancelotti, quebrando a marretadas os blocos de paralepípedos nos elevados da zona leste paulistana. Na época, atribuiu-se a instalação dos paralepípedos embaixo de viadutos onde dormiam moradores de rua a um funcionário que teria sido exonerado. Mas não tenhamos dúvida, o fascismo é um processo social e não se extingue com a exoneração de funcionários nem com declarações bem intencionadas de quem o põe em marcha.

É na atribuição nossa a “banalidade” de falas e projetos que o mal se perpetua, e não na covardia de seus promotores.

*Marcelo Karloni é professor da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Curso de Arquitetura e Urbanismo, e membro do Núcleo Arapiraca da Rede BrCidades.

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