Augusto Diniz | Música brasileira

Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.

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Por que as manifestações de 2013 desaguaram em ataques à cultura

Para o sociólogo Sávio Cavalcante, o que se iniciou como reação ao modelo político-econômico se transformou em disputa cultural por alinhamento ideológico

Foto: Divulgação/MBL
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Professor da Unicamp com pesquisa em classes sociais e relações de trabalho, além de estudos sobre as manifestações iniciadas há 10 anos, Sávio Cavalcante explica como os eventos de 2013, inicialmente de pauta progressista, foram aos poucos assumindo uma feição conservadora em torno de questões de gênero, raça e sexualidade.

A mudança do Movimento Brasil Livre é um exemplo emblemático. O sociólogo lembra que a pauta inicial do MBL, formado em 2014, era acentuar o modelo econômico neoliberal. 

O evento que deu essa guinada foi a exposição Queermuseu, realizada no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2017, interrompida após críticas de conservadores. “O MBL percebeu que a repercussão nas redes sociais estava juntando muitas pessoas que eles não tinham acesso”, diz. O movimento fez coro aos protestos contra a mostra e acabou ganhando muitos seguidores.

Ele lembra que no governo Lula de 2003 a 2010, se abriu um conjunto de iniciativas, experiências e intervenções que denunciavam o caráter desigual e opressor, principalmente contra os povos originários, o negro e o trabalhador em geral. 

“Esse processo se choca com alguns valores e algumas ideologias de uma classe média já estabelecida, tradicional, predominantemente branca, que estava vendo esse movimento como uma ameaça ao seu lugar simbólico”, afirma. 

Já o discurso anticorrupção, tão presente nas manifestações, para ele aparece porque essas políticas sociais estavam sendo impulsionadas pelo Estado. 

 “Então, quando se diz que o Estado é antro de corrupção e só existe corrupção por causa do Estado, consegue-se aliar aquelas reivindicações neoliberais por menos Estado à pauta conservadora, que está reagindo àqueles grupos tradicionalmente oprimidos agora com espaço mais estabelecido”, explica.

A Lei Rouanet exemplifica bem essa questão. “Tem-se um movimento ancorado em ideias neoliberais e quanto menos for dependente do Estado, mais meritório é o resultado da ação”, diz. “Artista que precisa disso (Lei Rouanet), em tese, estaria se protegendo contra aquilo que deveria ser o princípio de seleção do mercado da cultura”.

De acordo com a análise do sociólogo, “a Lei Rouanet é estratégica para reação conservadora porque ela consegue aliar princípios neoliberais com um conteúdo de que quem se beneficiava dela dissolvia as bases da família, eram antirreligiosos e degenerava a ideia de uma sociedade vista como funcional”. 

Sávio Cavalcante destaca que, na época das manifestações de junho de 2013, as políticas raciais, para os povos originários e grupos de LGBTQIA+ já tinham seu efeito real do ponto de vista da cultura – tanto que o crescimento do segmento musical de grupos de gênero é um marco na década de 2010.

“Então, eles penetraram no homem ligado à terra, às tradições, que aí se vincula a música sertaneja, em que os papeis do homem e da mulher estariam muito bem definidos”, discorre. 

O estudioso lembra que Olavo de Carvalho já há muitas décadas ressaltava que a direita havia triunfado em 1964, mas sem obter a hegemonia cultural no Brasil. 

“O campo da cultura sempre foi visto como homogeneizado pela esquerda e quanto mais desidratá-lo, melhor. Mas eles não conseguiram fazer essa mudança a ponto de prosperar. Então, eles partiram para o discurso de aniquilação”, avalia.

Mas o sociólogo cita outra força importante que acabou se contrapondo à reação conservadora emergida depois das manifestações de junho de 2013. Trata-se do neoliberalismo progressista, termo cunhado pela filósofa Nancy Fraser, para designar a captura por grandes corporações e organizações das pautas de cidadania historicamente ligadas à esquerda, como o feminismo e os direitos LGBT+,

“É aquela empresa que vai se mostrar antirracista, feminista, ligada aos direitos da população LGBTQIA+. Ela está muito presente na indústria cultural”, diz Sávio Cavalcante. “O tema do gênero, da raça e da sexualidade foi absorvido por aquela indústria já consolida e tradicional, que apresentava uma resposta a essas demandas”. 

Um caso clássico é a TV Globo, que passou a mostrar na última década, de forma mais intensa, em suas novelas e programas, esses assuntos. “Eles defendem um programa neoliberal no Brasil, mas se apresentam preocupados com a questão racial, de gênero. Isso, no fim, até provocou uma divisão dentro do próprio campo liberal”, ressalta o sociólogo. 

Para o estudioso, todos esses fatores ajudam a compreender como, ao longo desse processo de radicalização da extrema-direita, foi possível um governo progressista e do campo democrático retornar ao poder.

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