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Relações coloniais ainda estão presentes na produção do algodão brasileiro

A monocultura e o uso de agrotóxicos no cultivo desse commodity de exportação apontam velhas dinâmicas de dominação com uma roupagem atual

Os agrotóxicos voltam à mira
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No último mês pudemos acompanhar uma verdadeira ofensiva da bancada ruralista no Congresso Nacional contra políticas socioambientais. Visando avançar com seus próprios interesses, parlamentares apoiaram retrocessos em legislações que afetam os direitos dos povos originários e a proteção da Mata Atlântica e enfraqueceram os Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), ao retirarem suas atribuições sobre recursos hídricos e demarcações de terras, respectivamente, entre outras responsabilidades.

Diante disso e atendendo ao apelo público e à mobilização da sociedade nas ruas, Lula vetou o desmonte da lei da Mata Atlântica e manteve a política de recursos hídricos dentro do MMA. Mas para o meio ambiente e os direitos humanos, o jogo ainda está muito longe de ser ganho. Recentemente, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) liberou mais 55 registros de agrotóxicos, somando 157 desde o começo do governo Lula, seguindo a posição antiambientalista do governo anterior. Importante dizer que parte dessa lista traz alto risco ao meio ambiente e à saúde das pessoas.

Na minha última coluna falei sobre o agronegócio do algodão no Brasil e seu falso discurso de sustentabilidade, em meio ao uso alarmante de agrotóxicos em um modelo de monocultura que devasta o Cerrado, e a tramitação do Pacote do Veneno no Senado. Agora eu queria trazer uma outra perspectiva para essa discussão: quanto vale a vida das comunidades rurais expostas aos químicos tóxicos utilizados nessas plantações? Lembrando que a prática de pulverização aérea de agrotóxicos ainda é permitida no Brasil – com exceção do estado do Ceará, casas e escolas vizinhas das produções estão sob o constante risco de contaminação. Menosprezar a vida de determinados grupos de pessoas para construir riqueza para um pequeno grupo dominante faz parte de uma lógica colonial que ainda rege o mundo.

A pesquisadora Larissa Bombardi, obrigada a se exilar depois de uma série de ameaças de morte devido a seu trabalho sobre o uso de agrotóxicos no Brasil, chama isso de geografia da assimetria, ou seja, o círculo de veneno e ‘colonialismo molecular’ que existe na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Enquanto, a Europa e os Estados Unidos caminham em um movimento de redução de agrotóxicos, os produtos proibidos lá são os mais vendidos por aqui.

O conceito de colonialismo molecular não se resume ao uso dos químicos, mas parte do pressuposto que as grandes corporações globais, principalmente europeias, que comercializam esses produtos, influenciam cada vez mais as decisões políticas brasileiras (por exemplo, há benefícios fiscais concedidos aos agrotóxicos) e atuam para fortalecer o sistema de monocultura.

Essa dinâmica assimétrica de poder entre o Norte e o Sul Global reproduz não só lógica colonial das plantations, mas também a molecular, já que essa toxicidade passa a ficar impregnada em nossos corpos e ecossistemas, como defende a pesquisadora. Assim, nossos organismos estão expostos a substâncias químicas tóxicas que os europeus não estão.

Como é possível que haja dois pesos e duas medidas em um cenário como esse? Nossas vidas valem menos? Aqui estamos falando de corpos enquanto territórios corporativos, já que as multinacionais da Europa vendem para o Brasil toneladas de agrotóxicos altamente perigosos, proibidos em seus próprios países: em 2019, 44% das substâncias registradas aqui eram proibidas na União Europeia, de acordo com um relatório do Greenpeace.

Precisamos considerar ainda a exposição cumulativa aos agrotóxicos, já que alguns compostos amplamente utilizados podem permanecer presentes em organismos, água e solo por muitos anos. Entre os agrotóxicos mais utilizados na produção de algodão está o glifosato, que pode causar diversos efeitos na saúde, como aborto espontâneo e câncer. E as mulheres são um dos grupos mais afetados por isso. Em 2018, um estudo feito com mulheres expostas ao glifosato em Uruçuí, no sul do Piauí, região de cultivo de soja, milho e algodão, estimou que uma em cada quatro grávidas da cidade sofreu aborto espontâneo e que 83% das mães tinham o leite materno contaminado.

Além disso, o modelo de monocultura com uso intensivo de agrotóxicos prejudica e empobrece o solo, esgotando todos os seus nutrientes, e gera inúmeros impactos ambientais, como remoção da cobertura vegetal, perda de biodiversidade, desequilíbrio dos ecossistemas, assoreamento de rios e diminuição da vazão de córregos e nascentes. E tudo isso está diretamente ligado às mudanças climáticas, tendo em vista que a manutenção do equilíbrio climático depende da conservação da biodiversidade, ao mesmo tempo em que a crise do clima impulsiona e intensifica a perda da biodiversidade, o que acaba criando um círculo vicioso. É a lógica de um sistema incapaz de entender a Terra como um organismo vivo. Mas que mantém as estruturas de poder e os modelos de negócio que moldam a indústria da moda.

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