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Nos anos 70, ministro israelense admitiu a Herbert Marcuse a ocupação da Palestina

O filósofo teve uma conversa confidencial na qual o então Ministro da Defesa, Moshe Dayan, que admitiu que Israel estabeleceu seu Estado em territórios árabes

Ministro da Defesa de Israel, Moshe Dayan. Foto: Benno Rothenberg
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Herbert Marcuse (1898-1979), judeu, filósofo renomado e membro proeminente da Escola de Frankfurt, visitou Israel em dezembro de 1971. Expressou suas conclusões em um artigo publicado em no jornal israelense The Jerusalem Post e traduzido para o hebraico no Haaretz. O título sugestivo, “Israel é forte o suficiente para ceder“, indica uma abordagem crítica ao conflito.

Durante sua estadia em Israel, Marcuse buscou uma compreensão mais profunda das dinâmicas políticas e sociais do Oriente Médio. Em encontros notáveis, como com Moshe Sneh, líder político e comandante da Haganah, Marcuse obteve insights sobre a política interna de Israel. Também teve diálogos frutíferos com Amos Oz, renomado escritor, explorando as complexidades da sociedade israelense e a identidade judaica. Outro encontro significativo foi com Eliezer Be’eri, destacado na política israelense, contribuindo para o desenvolvimento socioeconômico do país.

De maneira surpreendente, Marcuse ampliou ainda mais sua compreensão ao se reunir com Moshe Dayan, então Ministro da Defesa de Israel. Dayan, figura-chave nas operações militares e líder durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948, destacou-se em várias crises, incluindo a de Suez em 1956 e como Ministro da Defesa na Guerra dos Seis Dias em 1967. Esse encontro proporcionou a Marcuse uma compreensão mais profunda das dinâmicas conflituosas que moldavam o cenário político do Oriente Médio.

Marcuse, além de interações em Israel, participou de diálogos construtivos com dignitários palestinos na Cisjordânia. Durante sua estadia, visitou a casa da jornalista e escritora Raymonda Hawa-Tawil, mãe de Souha, futura esposa de Yasser Arafat. Também teve reuniões com notáveis palestinos, incluindo o prefeito de Nablus, Hamdi Kanaan. Sua abordagem abrangente, envolvendo líderes israelenses e palestinos, demonstra seu compromisso com uma compreensão holística dos desafios enfrentados pela região na época.

Marcuse e Dayan

O conteúdo da reunião entre Herbert Marcuse e Moshe Dayan, conforme detalhado por Zvi Tauber, professor de filosofia da Universidade de Tel Aviv, no artigo “Herbert Marcuse on the Arab-Israeli Conflict: His Conversation with Moshe Dayan” (2012), e minuciosamente registrado em um protocolo recentemente divulgado pelo Israel Defense Forces and Defense Establishment Archive evidencia a notável franqueza de Dayan ao admitir que Israel estabeleceu seu Estado em territórios historicamente habitados por populações árabes. Esses encontros, ocorridos no Ministério da Defesa em 29 de dezembro de 1971, proporcionaram a Marcuse a oportunidade única de se envolver em um diálogo direto com o principal político israelense da época.

A conversa, embora taquigrafada e documentada, permaneceu desconhecida na época, sem divulgação pelos participantes ou em registros autobiográficos de Dayan. O protocolo revela a presença de outros participantes, como Shlomo Gazit, chefe do Departamento do Governo Militar, com Dayan como o principal orador.

A ausência de menções subsequentes adiciona mistério à natureza e importância do encontro. A revelação do protocolo oferece insights valiosos sobre a perspectiva franca do Ministro sobre a fundação de Israel e a ocupação de territórios árabes, destacando a necessidade de explorar eventos históricos menos conhecidos para uma compreensão abrangente do conflito no Oriente Médio.

“Tomamos deles uma terra árabe e a tornamos judaica”

Durante a conversa histórica ocorrida em 1971, Moshe Dayan revisitou um momento crítico da história recente. Contextualizando o período, é crucial recordar os eventos da Guerra dos Seis Dias em 1967, que resultaram em mudanças significativas no mapa geopolítico do Oriente Médio. Nesse conflito, Israel conquistou territórios árabes (do Egito, Jordânia e Síria), incluindo a Cisjordânia, Gaza, a Península do Sinai e as Colinas de Golã (ver mapa 1), alterando drasticamente as dinâmicas regionais.

Mapa 1 – Territórios ocupados por Israel em 1967

Fonte: Elaboração própria por meio do United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs.

Em um trecho revelador, Dayan aponta para o mapa do Oriente Médio, enfatizando: “Viemos aqui, e cortamos as duas partes do mundo árabe uma da outra; e tomamos deles uma terra árabe e a tornamos judaica”. Essa admissão explícita surpreende Marcuse, que observa: “Você admite isso? Você é o primeiro israelense que encontro aqui no país que admite isso”. A resposta de Dayan é direta: “Claro que eu admito. É um fato”.

Essa revelação crucial desafia a narrativa oficial sionista da época, reconhecendo a fundação do Estado de Israel em território árabe. Marcuse, por sua vez, expressa suas preocupações sobre as implicações dessa fundação, destacando que a criação do Estado de Israel pode ser vista como uma injustiça, pois foi estabelecida em terra estrangeira sem considerar adequadamente os problemas da população local. É importante frisar que só no conflito de 1948, cerca de 750 mil palestinos foram deslocados de suas terras.

Durante a conversa, Dayan afirmou com firmeza que Jerusalém permaneceria judaica, rejeitando a retirada para as fronteiras de 1967. Ele enfatizou a manutenção da identidade judaica do país e a não volta dos desenraizados. Dayan admitiu que suas ações trouxeram o nacionalismo árabe para a região, considerando isso um fato. No entanto, ele via essa mudança como a chave para a solução, não apenas uma questão de fronteiras. Sobre a retirada, o Ministro afirmou que não se retirariam de Sharm el-Sheikh [atual Egito], mas estariam abertos a discutir um acordo temporário nessa região. Em relação à iniciativa de paz, ele considerou apropriada, mas questionou o que poderiam oferecer sem comprometer a posição de Israel, expressando preocupação com mudanças no equilíbrio militar em caso de retirada total ou para as fronteiras de 1967, argumentando que uma retirada total poderia ser interpretada como uma fragilidade estratégica pelos países árabes, potencialmente incentivando a crença de que Israel poderia ser destruído.

Além de questões militares, parte fascinante dessa discussão girou em torno da visão de filósofo alemão sobre a possibilidade de um Estado palestino coexistir ao lado de Israel. Marcuse, conhecido por sua perspectiva crítica e seu compromisso com a justiça social, advogou pela criação de um estado palestino independente ou, alternativamente, por uma federação que incluísse Israel ou a Jordânia. Essa proposta de coexistência e compartilhamento de territórios buscava, de acordo com Marcuse, atender às aspirações nacionais legítimas do povo palestino.

No entanto, o Ministro demonstrou ceticismo em relação a essa proposta. Seu ceticismo pode ser interpretado à luz das complexas dinâmicas políticas e de segurança que caracterizavam a região naquele período.

Essa divergência de perspectivas sobre a criação de um estado palestino ao lado de Israel ilustra a complexidade intrínseca das negociações na época e destaca como diferentes atores viam as soluções para a questão palestina de maneiras diversas e, por vezes, conflitantes. Essas discussões ecoam até os dias de hoje, influenciando os debates contemporâneos sobre a busca por uma paz duradoura no Oriente Médio.

“Sou um filósofo, não um político”

A conversa entre Marcuse e Dayan evidenciou as preocupações do filósofo com uma iminente guerra entre Israel e os países árabes. Marcuse, enfatizando sua identidade como filósofo, expressou temores sobre a motivação árabe para o conflito. Essas apreensões foram menosprezadas por Dayan que subestimou a possibilidade de uma guerra.

A declaração de Marcuse, “Sou um filósofo, não um político”, proferida durante sua entrevista ao jornal Haaretz, fornece um contexto fundamental para a abordagem analítica que ele adotava diante dos acontecimentos políticos. À medida que a história se desenrolou, as preocupações expressas por Marcuse foram validadas pela eclosão da Guerra do Yom Kipur em 1973, evidenciando a pertinência de suas análises.

O genocídio atual

Marcuse previu uma nova guerra e acordos parciais, o que ressoa profundamente no atual conflito entre Israel e o Hamas, iniciado em 7 de outubro de 2023 e que já ultrapassou os 100 dias. As ações recentes de Israel, lideradas pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, intensificam a complexidade, frente a um processo sobre o genocídio palestino apresentado ao Tribunal de Haia pela África do Sul. Os impactos do conflito, evidenciados pelos números de vítimas, mais de 25 mil só em Gaza, e as dinâmicas na Cisjordânia, destacam a relevância contínua das análises de Marcuse e Dayan para entender as tensões no Oriente Médio.

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