Política
Atire com os dedos
O governo vai editar novas medidas para ampliar a restrição ao acesso a armas


O cerco à posse e ao porte de armas no Brasil continua. Nos próximos dias, o ministro da Justiça, Flávio Dino, vai anunciar novas medidas de contenção. A lista inclui a restrição ao acesso de alguns calibres, entre eles 9 mm e .40, que voltarão a ser de uso exclusivo das forças de segurança, a transferência da supervisão dos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores) à Polícia Federal, a proibição do funcionamento 24 horas dos clubes de tiro e uma distância mínimo dos clubes das áreas escolares. Em 1º de janeiro, o governo havia editado o Decreto 11.366, que suspendeu os registros para aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por CACs, reduziu de seis para três a quantidade de armamentos permitidos ao cidadão comum, suspendeu a concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro e a emissão de certificados de CACs e proibiu o transporte de arma municiada e a prática de tiro desportivo por menores de 18 anos, entre outras medidas.
“A política de incentivo ao acesso às armas foi substituída por uma política de controle, verificação e contenção”, avalia o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo de trabalho sobre o tema na equipe de transição. A facilitação do acesso, diz, era um projeto de governo para Jair Bolsonaro: “Ele estimulava a população a se armar sob o pretexto de se classificar em uma dessas condições estabelecidas para os CACs. Havia uma política de estímulo à aquisição de armas e munições de modo geral”. Segundo Carvalho, o maior mérito das medidas iniciais anunciadas pela atual administração foi permitir a estabilização dos números. “Tínhamos um crescimento assustador nos últimos meses do governo Bolsonaro. O número de brasileiros com acesso a algum tipo de arma quase triplicou.”
De acordo com os dados reunidos durante a transição, o arsenal em mãos civis cresceu em mais de 1 milhão de armas durante o governo anterior, de 696.909 unidades registradas como acervos de CACs ou de pessoas físicas pelo Exército em 2018 para 1.897.782 em julho de 2022.
O sociólogo e especialista em segurança pública Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, classifica como “positivos e cautelosos” os movimentos do governo Lula rumo ao desarmamento da sociedade e ressalta o maior controle exercido sobre os clubes de tiro. “Os clubes se converteram em um canal para a ampla divulgação de armas de fogo entre a população, sobretudo com a possibilidade de seus associados transportarem esses armamentos de um lado para outro sem controle.” Desarmar os CACs é um trabalho que, de fato, exige cautela, acrescenta: “Tudo tem de ser feito progressivamente. O objetivo estratégico é diminuir aos poucos o acesso ao porte de armas e munições, mas isso não pode ser feito de um dia para o outro nem jogando centenas de milhares de proprietários na ilegalidade, o que seria perigoso”.
As novas medidas são aguardadas com ansiedade pela sociedade civil. “Em princípio, existe interesse do governo em tratar do controle de armas e oferecer uma regulamentação mais ampla para o segmento, mas ainda carecemos de mais informações com relação ao decreto que vai regular essa nova fase. Precisamos entender o que vai acontecer para fazermos uma avaliação”, afirma David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O decreto de janeiro, avalia, serviu como “um freio de arrumação” na política de controle de armas. “Sua maior contribuição foi congelar o mercado e iniciar um processo de recadastramento. Isso foi fundamental para a Polícia Federal ter acesso a esses dados e entender o destino que esse armamento teve nos últimos quatro anos.”
Nos últimos meses do governo Bolsonaro, o número de brasileiros armados quase triplicou
Enquanto o cerco se aperta, os CACs e donos de clubes de tiro enxergam na “Bancada da Bala” a última esperança de reverter medidas restritivas, mas a realidade política mudou em relação ao governo Bolsonaro. Embora o número de militares e policiais eleitos tenha aumentado 36% na atual legislatura e a Frente Parlamentar da Segurança Pública tenha sido relançada com pompa e circunstância em maio, diante da presença de 260 parlamentares, a luta pelos “direitos” e a “liberdade” dos atiradores civis acabou relegada a segundo plano. Líder da frente, o deputado Alberto Fraga, do PL, afirma que a estratégia em relação a esse tema agora é “tentar uma reversão de danos” quanto às medidas do governo, mas não parece muito animado.
O parlamentar, que chegou a se reunir com o ministro Dino, tem dito aos colegas que a prioridade neste momento é não deixar adormecerem eternamente no Senado projetos aprovados pela Câmara, entre eles o que acaba com as saídas temporárias de presos ou o que altera a Lei Orgânica para a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros.
É, porém, imprudente subestimar a força política dos defensores das armas. “Nos últimos quatro anos, os atiradores e os CACs em geral foram os grupos que mais bem se organizaram politicamente. Conseguiram eleger representantes para o Congresso e também obtiveram o comprometimento de outros tantos deputados eleitos com essa bandeira”, diz Marques. Ainda é preciso, acredita o pesquisador, entender melhor o poder de influência sobre o Parlamento. “É evidente que, sem o próprio presidente da República a fazer campanha pró-armas, fica um pouco mais difícil pautar esses assuntos no Legislativo.” Não é, no entanto, impossível, dado o terreno pantanoso da Câmara dos Deputados. “A gente vê a base do governo ainda se debatendo muito com algumas questões.”
Concluído em maio pela Polícia Federal, o recadastramento alcançou 939.154 armas, das quais 894.890 de uso permitido e 44.264 de uso restrito. Restaram pendentes, pelo não comparecimento dos proprietários, 6.168 armas de uso restrito, como fuzis e pistolas, o que mostra a extensão do trabalho pela frente. “A direção é correta, mas os passos ainda são tímidos. O governo deve ir além para tirar as armas das mãos de criminosos e esperamos que o projeto continue avançando”, diz Cano. Para Carvalho, o saldo por ora é positivo: “Era preciso ter um diagnóstico da situação no País, e isso o governo conseguiu fazer. A partir daí, é preciso estabelecer políticas de contenção e inibição do uso de armas e munições”. •
Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.