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Mestres do ilusionismo

As estranhas movimentações da madeira ilegal apreendida pela PF e que levou à demissão de Ricardo Salles

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Imagem: Redes sociais
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Novembro de 2020. Um helicóptero da Polícia Federal sobrevoa o município de Parintins, no Amazonas, e avista uma balsa carregada de toras de madeira no Rio Mamuru. Na abordagem, a equipe constata que o carregamento não possuía o documento de origem florestal. A partir desse fio nasce a ­Handroanthus, operação que apreendeu o maior volume de madeira ilegal da história da Amazônia: 200 mil metros cúbicos, avaliados em 130 milhões de reais. Um ano depois, as investigações estão paradas e a operação, completamente desarticulada. Além de um juiz suspeito afastado, a trama envolve o desaparecimento de toras apreendidas, sucessivas trocas em cargos-chave da Superintendência da PF e até mesmo a entrada no “circuito” do onipresente Frederick Wassef, advogado de Jair Bolsonaro.

O defensor do presidente passou a advogar para uma das empresas investigadas, a MDP Transportes, e conseguiu junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região liberar em caráter liminar parte das toras, documentos e bens apreendidos pela operação. Amigo pessoal de Bolsonaro, Wassef ganhou os holofotes depois de dar abrigo a Fabrício Queiroz, apontado pelo Ministério Público do Rio como o operador do esquema das “rachadinhas” do clã político. Apesar da decisão favorável, peritos detectaram que a retirada das toras ocorria cinco meses antes da liminar. Vale lembrar que o material apreendido estava sub judice e, de acordo com o Exército, era de responsabilidade da PF e do Ministério da Justiça.

A perícia analisou imagens de satélite de alta resolução, documentos emitidos pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará e termos de apreensão e percebeu uma estranha “movimentação” no material. Segundo análise do Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais, o Sisflora, foram emitidas guias florestais, entre julho e agosto, para mover 33,5 mil metros cúbicos de toras do pátio da MDP para 16 empresas. Até mesmo o caminhão apreendido pela PF continuou fazendo o transporte da madeira.

Mais de 33,5 mil metros cúbicos de toras podem ter voltado ao mercado num passe de mágica

Outros dois laudos obtidos por ­CartaCapital e feitos antes da decisão do TRF-1 apontam inconsistências nos documentos e no transporte de toras pelas empresas investigadas, incluindo a MDP. “Além da exploração florestal irregular, há indícios de sonegação fiscal, pois as volumetrias e os números das notas fiscais registradas nas GFs são incompatíveis com as volumetrias e os números das notas fiscais registradas no controle de viagem e metragem”, registraram os peritos em outubro de 2021. O Ministério Público Federal pretende analisar os documentos e solicitar novas perícias.

A decisão liminar de dezembro foi concedida pelo desembargador Ney Bello, que figura na lista tríplice enviada a Bolsonaro como um dos indicados a uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça. “É preciso perceber que há diferença entre madeira apreendida de origem clandestina ou produto do crime e madeira de origem legal”, consta um trecho da decisão. Ele também alega que as toras estão perecendo e, por isso, deveriam ser liberadas.

Ney também é relator no TRF-1 do processo de conflito de competência que praticamente paralisou as investigações depois de seu pedido de vistas. O processo foi parar lá depois que o juiz da 4ª Vara da Seção Judiciária do Pará, Antonio Carlos Almeida Campelo, foi afastado pelo Conselho Nacional de Justiça e virou alvo de um processo administrativo por ter liberado a madeira, além de outras decisões que “possam ter ferido o Código de Ética da Magistratura”. O juiz julgou o caso durante suas férias e revogou a decisão de um colega substituto que havia determinado que o caso ficasse na Justiça do Amazonas. Campelo ainda liberou duas balsas e documentos apreendidos na operação.

Pista. Peritos também apontam indícios de sonegação, pois os volumes são incompatíveis com os das notas fiscais

A decisão provocou a reação da Procuradoria da República na 1ª Região, que alega não ter sido consultada sobre o tema. Dentre os pedidos, está a perícia do material antes da devolução às empresas. Em uma segunda petição protocolada no tribunal, o MPF pede que sejam valorados tanto os bens e toras apreendidas quanto os prejuízos dos crimes ambientais, além de ­nomear o fiel depositário de parte da apreensão. Há seis meses, a Procuradoria também solicitou à PF o envio de informações referentes aos foros dos investigados com o objetivo de delimitar as investigações, mas não obteve resposta ­alguma. Tudo muito estranho. “Primeiro, tivemos as trocas de delegados feitas pela direção-geral da PF. Depois, o pedido de vista no TRF-1. Isso neutralizou a operação e está beneficiando diretamente os investigados”, lamenta uma fonte envolvida nas investigações.

Um dia depois de protocolar uma queixa-crime contra Salles, Eduardo Bim, presidente do Ibama, e o senador Telmário Mota no STF, o delegado Alexandre Saraiva, então superintendente da PF no Amazonas, foi transferido para Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro. Logo após, Franco Perazzoni, delegado responsável pela Akuanduba, destinada à apuração de um esquema de facilitação à exportação ilegal de madeira do qual Salles faria parte, teve sua nomeação para a chefia da área de Investigação e Combate ao Crime Organizado no DF barrada. O desmonte das operações foi coroado quando o diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, decidiu substituir o chefe da Divisão de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico, Rubens Lopes da Silva.

O número de multas por crimes contra a flora despencou de 5,9 mil, em 2011, para 2,4 mil em 2021

A paralisia das investigações favoreceu não só as empresas investigadas, mas o próprio Bim, que voltou para a chefia do Ibama, e Ricardo Salles, que perdeu o foro privilegiado e teve o caso remetido para o TRF-1. O ex-ministro tem andado pelo País em campanha por Bolsonaro e também por uma vaga ao Senado por Rondônia.

O cerne da Akuanduba foi uma medida do Ibama que por 15 meses tornou obsoleta a Instrução Normativa 15/2011 e afrouxou as regras para exportação de madeira no Brasil. Bim assinou a medida após se reunir com duas associações que representam madeireiros, a Aimex e a Conflorestas. O despacho só foi suspenso em maio de 2021 pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Após as operações, as associações procuraram o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, ao menos três vezes no último ano. Em outubro, durante uma reunião intermediada pelo deputado Joaquim Passarinho, do PSD, a Aimex, segundo informou em nota, apresentou a “difícil situação que o setor exportador atravessava, pois toda atividade estava paralisada há cem dias, com produtos prontos para embarque parados nos portos e pátios das empresas, sem poder ser exportados e que não estavam sequer sendo fiscalizados, justamente por falta de regramento claro”. A entidade diz nunca ter solicitado afrouxamento de normas ou tratado da operação com Salles.

Onipresente. Wassef está em todas… – Imagem: Pedro França/Ag. Senado

Nos 15 meses em que a norma perdurou, as madeireiras vinculadas à Aimex exportaram 12,5 mil toneladas de madeira de espécies consideradas ameaçadas, além de terem experimentado um aumento considerável nas exportações durante esse período, segundo levantamento da Agência Pública. Uma delas é a Rondobel, alvo da Handroanthus. O conselheiro fiscal da Aimex, Vinícius Belusso, também faz parte da Rondobel Serviços Florestais, um dos alvos da operação e que, segundo dados obtidos por CartaCapital, somam quase 2,1 milhões em multas no Ibama. Em nota, Fernanda Belusso, advogada da Rondobel, informou que as autuações estão sob discussão. “A madeira da Rondobel tem origem lícita e devidamente documentada, o que foi reconhecido administrativa e judicialmente. A apreensão policial da madeira documentada, sem flagrante ou mandado judicial, é ilegal e apenas prova o caráter midiático da operação.”

Enquanto o País bate sucessivos recordes de desmatamento, o número de multas por crimes contra a flora despencou de 5,9 mil em 2011 para 2,4 mil em 2021, segundo o Inpe. Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, destaca que o atual governo adotou regras que dificultam as autuações e a apreensão de madeira ilegal. “Esse projeto de destruição vem desde a campanha eleitoral de Bolsonaro, que falava em ‘acabar com a indústria de multas ambientais’”, comenta. “Só que essa indústria nunca existiu, pois os valores das multas não são destinados aos órgãos ambientais e em grande parte das vezes nem sequer são pagos. Os processos administrativos e judiciais nesse tema se estendem por anos.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mestres do ilusionismo”

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