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Reis da selva

A ofensiva das Big Techs retarda a aprovação do PL das Fake News. O vale-tudo prossegue

Imagem: Joedson Alves/ABR e Lula Marques/ABR
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O gramado em frente ao Congresso Nacional amanheceu, na terça-feira 2, coberto por 35 mochilas coloridas e vazias. A instalação feita pela ONG Avaaz, que atua contra a desinformação na internet em todo o mundo, representava o número de jovens assassinados durante ataques a escolas no Brasil desde 2012 e tinha por objetivo sensibilizar os deputados no dia em que a Câmara finalmente votaria o Projeto de Lei 2630, o PL das Fake News, concebido para regular o funcionamento das grandes plataformas da internet. Com a nova legislação, apoiada pelo governo, as chamadas Big Techs seriam obrigadas, entre outras coisas, a dar transparência aos seus mecanismos de moderação e retirada de conteúdos incentivadores de ódio, violência e ataques à democracia. Além disso, seriam responsabilizadas pelos conteúdos nocivos impulsionados por pagamento e ficariam suscetíveis a multas e outras sanções em caso de descumprimento das regras estabelecidas. Na avaliação do governo e das entidades da sociedade civil do setor, estava quase tudo no texto apresentado pelo deputado Orlando Silva, do PCdoB, relator do projeto. Mas o desejado avanço, que colocaria o Brasil no mesmo patamar legal da União Europeia e à frente de EUA e Japão, ficará para depois, sabe-se lá quando. Talvez nunca.

Uma ofensiva colossal das grandes plataformas que incluiu o favorecimento à circulação de material contrário à aprovação do projeto e a veiculação de notícias falsas, além do lobby direto no Parlamento, levou o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, a retirar o projeto da pauta no início da noite da terça, a pedido do próprio relator. A justificativa para a retirada, encampada no plenário pela maioria dos líderes de blocos e bancadas, foi a necessidade de discutir de forma mais aprofundada as quase 90 emendas recebidas desde a aprovação da urgência do PL na semana anterior. Nos bastidores, foi um dia de intensas discussões e consultas entre os líderes da base governista. Após um moderado otimismo inicial, prevaleceu o temor de que o governo perdesse a votação após deputados do Republicanos e do União Brasil, bastante assediados pelas plataformas nos últimos dias, passarem a vacilar no apoio ao projeto. Na definição de um integrante do governo, os defensores da lei não perderam o jogo, “mas as plataformas conseguiram segurar o empate jogando fora de casa”. Empate com gosto de derrota.

As plataformas digitais se abraçaram aos bolsonaristas na campanha de desinformação contra o projeto

Desde o dia 25 de abril, quando a urgência foi aprovada na Câmara pelo apertado placar de 238 votos a 192, representantes das plataformas intensificaram os contatos com deputados bolsonaristas, sobretudo aqueles ligados à Frente Parlamentar Evangélica e à Frente Parlamentar Digital. Formou-se então uma aliança oportunista, mas não surpreendente em favor do obscurantismo e do vale-tudo, forjada entre os interesses pecuniários das multinacionais e os objetivos políticos das forças partidárias impulsionadas pelas mentiras compartilhadas pelas redes sociais. Segundo um relatório do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no mesmo período as plataformas deram visibilidade a conteúdos com informações falsas, como a de que a nova lei impediria a publicação de trechos da Bíblia na internet, intensamente propagada pela oposição. Na véspera da votação, o gigante Google lançou uma campanha em seu mecanismo de busca, utilizado diariamente por milhões de brasileiros, para distribuir informações desfavoráveis à regulação. A empresa chegou a colocar um link em sua página inicial que levava a um texto intitulado “PL da Censura” e a pagar por anúncios contra o projeto publicados nas plataformas da Meta (dona do Facebook e do Instagram), no Spotify e no Brasil Paralelo, um dos alvos do inquérito do Supremo Tribunal Federal que investiga a indústria de fake news e assassinato de reputações no País.

O Ministério da Justiça anunciou a disposição de apurar o que classificou como “práticas abusivas” do Google e de outras plataformas nos dias que antecederam a votação do projeto. O STF, por meio do onipresente ministro Alexandre de Moraes, determinou que o presidente da empresa no País, assim como representantes da Meta, do Spotify e do Brasil Paralelo, preste depoimentos à Polícia Federal. Moraes determinou ainda a imediata retirada do ar de todos os conteúdos contrários ao PL impulsionados a partir do blog oficial do Google. As empresas terão de explicar por que seus algoritmos recomendavam a leitura do texto “PL da Censura” e mostrar quais providências de fato tomaram para a moderação e retirada de material nocivo. A conduta das empresas, afirma o ministro, “configura não só abuso de poder econômico às vésperas da votação do Projeto de Lei, mas também induz a manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais”.

“Houve muita pressão das Big Techs”, justificou Arthur Lira ao acolher o pedido do relator, Orlando Silva, e adiar a votação do projeto – Imagem: Nilson Bastian/Ag. Câmara e Arquivo/Ag. Câmara

Para Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil, a campanha de desinformação realizada pelas plataformas foi uma demonstração do medo que essas empresas têm de ver aprovada no País uma legislação que as regule. “As plataformas podem ter opinião sobre o assunto, participar de audiências públicas, de seminários e de reuniões no Congresso. O problema é abusarem de seu poder para fazer uma campanha contra a lei, usando uma retórica para causar medo em produtores de conteúdo e usuários, numa tática típica de campanhas de desinformação”. Diretora de Campanhas da Avaaz, Laura Moraes diz que o adiamento era um cenário esperado: “Após semanas de um ­lobby absurdo e campanhas irresponsáveis de desinformação e medo promovidas por empresas bilionárias como o Google, não é nenhuma surpresa que a votação tenha sido adiada. Essas empresas provaram mais uma vez o pouco interesse que têm em proteger os cidadãos de nosso País e o quanto estão dispostas a ser negligentes com nossa segurança e democracia”.

Bia Barbosa, integrante da organização Direito à Comunicação e Democracia e representante da Coalizão Direitos na Rede no CGI.br, observa que o clima das negociações sobre o PL das Fake News estava “bastante contaminado” por ­duas campanhas de desinformação promovidas de maneira simultânea. “De um lado, pelos bolsonaristas, principalmente da bancada evangélica, em um discurso de que o projeto viria para censurar, arregimentando uma pauta da extrema-direita, a liberdade de expressão absoluta. A outra campanha, feita pelas plataformas, dizia que a internet no Brasil iria piorar se o projeto fosse aprovado e que haveria uma série de impactos que prejudicariam iniciativas de comunicação de blogueiros e jornalistas do ambiente digital. Venderam uma ideia de que o projeto só favoreceria à Globo e que, se fosse aprovada uma lei determinando que as plataformas remunerassem o conteúdo jornalístico, isso significaria que elas não poderiam seguir apoiando iniciativas como fazem hoje.” O episódio, acrescenta “só deixou ainda mais claro como as plataformas podem controlar o debate público por meio de apoios bastante limitados e insignificantes diante dos lucros obtidos no País”.

Alexandre de Moraes, do STF, aponta abusos das empresas e determinou à PF que convoque representantes do Google, da Meta, do Spotify e do Brasil Paralelo

Com a perspectiva de vitória das plataformas, os bolsonaristas tentaram manter a votação. Após a decisão de Lira, a oposição passou a trabalhar para que a questão seja jogada para as calendas. “Peço a extinção do requerimento de urgência”, discursou o deputado Eduardo Bolsonaro, do PL. O filho Zero Três do ex-presidente ainda zombou dos adversários: “Há uma semana dizíamos que o projeto precisava de mais debates, mas fomos açodados pela base governista, que alegava ter sido aprovada a urgência. Agora viram que nem sempre quem vota a favor da urgência vota a favor do mérito do projeto”. Outro deputado do PL a sugerir mais calma no debate foi Ricardo Salles, mas com ressalva. “Esse tema deve ser analisado com a maior cautela, mas não podemos deixar o assunto no vácuo para que os órgãos do Judiciário interfiram. É importante que tenhamos a oportunidade de avançar na discussão em outros momentos, em comissão especial e no rito que melhor aprouver aos ditames constitucionais.”

Orlando Silva explica sua decisão de pedir o adiamento: “Os líderes da maioria dos partidos indicaram ser favoráveis à votação do PL, mas havia muita divisão em bancadas importantes. Consideramos mais prudente aprofundar as discussões”. O deputado discorda da tese do “empate fora de casa” conquistado pelas Big Techs: “Até aqui tivemos um round, que foi a votação do requerimento de urgência, e nós o vencemos. A verdadeira luta ainda não aconteceu. Seguirei trabalhando no texto para desfazer as narrativas e produzir maioria no plenário”. O parlamentar denuncia ainda a aliança entre bolsonaristas e grandes empresas multinacionais. “O que se viu foi abuso de poder econômico dessas empresas. O Google atuou explorando o monopólio que tem nas ferramentas de busca. As Big Techs querem colocar o Congresso de joelhos.”

O Google chegou a impulsionar publicações contra o PL das Fake News nas plataformas da concorrência. O Twitter reluta até em deletar perfis que incentivam os ataques nas escolas – Imagem: iStockphoto

Lira também criticou o ­lobby feito pelas plataformas: “Nós demos uma semana para que as Big Techs fizessem o horror que fizeram e eu não vi ninguém defender a Câmara Federal. Num país com o mínimo de seriedade, Google, Instagram, TikTok, todos os meios tinham de ser responsabilizados. Como você tem num site de pesquisa um tratamento desonroso com esta Casa?” Em entrevista à GloboNews, acrescentou: “Houve muita pressão. Estamos colecionando relatos. Ameaças físicas por meio das redes sociais. Independentemente do que cada deputado pense, as Big Techs ultrapassaram todos os limites da prudência”. Não é de agora. Na sequência dos ataques a escolas, o Ministério da Justiça reuniu representantes da plataforma para discutir mecanismos de suspensão dos perfis que incentivam a violência. Uma advogada do Twitter, rede adquirida pelo anarcocapitalista Elon Musk, recusou-se a cooperar e disse que as postagens não tratavam de apologia do crime. Procurada por jornalistas, a empresa deu uma resposta-padrão adotada na era Musk: enviou um ­emoji de cocô a quem buscava informações.

Segundo o vice-líder do governo na Câmara, Rogério Correia, do PT, o recuo foi importante. “Não tínhamos segurança na votação. Durante o dia, depois da reunião dos líderes, pedimos para que cada bancada se reunisse, em especial aquelas que apoiam o governo, no sentido de garantir quantos votos havia. Ficamos em uma margem que nos daria a vitória, mas por muito poucos votos.” Há ainda, acrescenta o deputado, algum trabalho a fazer na base governista antes de colocar o projeto novamente em pauta. “Há dois partidos que precisamos trabalhar melhor. Um deles é o União Brasil, que faz parte da base do governo, mas teve uma entrega de votos muito baixa. É preciso cobrar desse partido, que, inclusive, ocupa ministérios, para que possa rediscutir esse projeto e nos garantir uma votação maior.” A outra aresta a ser aparada é com o Republicanos, legenda que havia votado a favor da urgência, mas alterou sua orientação ao longo do dia. “O Republicanos decidiu que não iria se posicionar para a votação e se dispunha a fazer uma conversa sobre o conteúdo do projeto e as alterações que eles julgam necessárias. Esse quadro e a possibilidade de placar apertado fez com que se decidisse pelo adiamento da votação.”

Na avaliação dos defensores do PL, o adiamento da votação pode ser benéfico, porque dará tempo para aprofundar algumas discussões, sobretudo aquela a respeito da criação de um órgão regulador externo para monitorar se as Big Techs estão, de fato, cumprindo a nova legislação. Esse item, considerado fundamental pelas entidades da sociedade civil, havia sido retirado de última hora do relatório como forma de facilitar a aprovação do projeto em plenário. “Foi retirada a ideia de termos uma entidade autônoma de supervisão, mas especulamos durante todo o dia sobre alguns caminhos alternativos para que se tenha um mecanismo de fiscalização que faça cumprir a lei, inclusive com a aplicação de sanções”, afirma Silva. “Este é um tema sensível no debate que segue.”

“Qualquer versão dessa lei deve garantir que as plataformas sejam responsabilizadas pelos maiores perigos que seus serviços apresentam, que haja compromisso com ações concretas para melhorar, que disponibilizem relatórios públicos sobre seus sucessos e fracassos e que enfrentem as consequências por não agir. E precisa existir um órgão regulador imparcial que possa verdadeiramente responsabilizar as plataformas por suas ações”, diz Moraes, da Avaaz.

A retirada do PL das Fake News da pauta, acredita Mielli, permitirá aos setores “de fato preocupados com a construção de uma legislação eficaz para regular as plataformas e criar um ambiente mais saudável e democrático na internet” enviar suas contribuições ao relator: “É possível avançar em pontos como o melhor desenho para garantir a existência de uma estrutura regulatória que possa fiscalizar a aplicação das obrigações previstas na lei”.

Bia Barbosa pede aos parlamentares que busquem compreender o texto e, assim, dissipar a ideia de que o PL das Fake News tem o objetivo de cercear a liberdade de expressão. “Muito ao contrário, o projeto tem uma série de garantias à liberdade de expressão, determinando que as plataformas tenham de moderar conteúdos a partir de regras de devido processo, notificando os usuários e permitindo apelação. Elas podem também ser responsabilizadas se moderarem excessivamente determinados conteúdos.” A especialista sugere um mergulho no texto do PL: “Basta compreender melhor as propostas para ver que este projeto veio para promover uma internet segura e responsável diante de iniciativas de promoção da violência, incitação ao discurso de ódio e atentados à nossa democracia”.

A Anatel não é exatamente um bom exemplo de agência reguladora, mas é preciso definir quem irá fiscalizar as plataformas, defende Brant. Já Dino promete investigar “práticas abusivas” das empresas – Imagem: Sinclair Maia/Anatel, Valter Campanato/ABR e Joedson Alves/ABR

Secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência e um dos responsáveis pela elaboração da contribuição do governo ao relatório, João Brant também avalia que o primeiro round acabou empatado: “O placar da votação do regime de urgência mostrou uma delicadeza. Como o Republicanos mudou de posição, isso deu uma insegurança para levar o tema a voto”.

Convencer os partidos da base a aderir ao PL, diz Brant, passa por questões de várias naturezas. “Na prática, esse recuo tático permite organizar e acertar algumas coisas, tanto da relação do governo com sua base quanto de acomodar questões e preocupações com o próprio texto.” Líder do PT na Câmara, o deputado Zeca Dirceu prega cautela: “Todo mundo que tem um mínimo de consciência sabe que esse tema, hoje, com o avanço do crime cometido no dia a dia da internet, ceifa vidas de crianças, leva o terror para dentro das escolas e destrói o bem-estar no nosso País. Não faremos nada de forma açodada para dar vez àqueles que querem confundir a sociedade e transformar um tema tão importante em uma disputa entre governo e oposição”.

Os principais pontos do PL das Fake News para a regulação das plataformas são: 1. Responsabilização por danos causados por conteúdos de terceiros distribuídos por meio de publicidade. 2. Obrigação de notificar usuários com conteúdos retirados. 3. Obrigação de requerer documentos para identificar seus anunciantes. 4. Disponibilizar a cada seis meses relatórios sobre seus contratos de publicidade. 5. Remunerar as empresas jornalísticas pela reprodução de seus conteú­dos. 6. Necessidade de obter consentimento do usuário para sua inclusão em grupos de discussão e listas de transmissão. 7. Garantia de imunidade para conteúdos postados por parlamentares.

Na selva chamada Brasil, a lei dos mais fortes impôs-se novamente. Manda quem grita mais alto. •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

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