Sustentabilidade
Tiro no pé
O agronegócio acumula perdas com as mudanças climáticas, mas a bancada ruralista mantém a ofensiva contra a legislação ambiental


Recentemente, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) entregou ao governo federal um pedido de socorro para ajudar os produtores rurais impactados pela crise climática. No documento, a entidade apresenta uma série de propostas para minimizar os prejuízos causados por eventos extremos, como secas prolongadas e inundações, os quais foram potencializados pelo fenômeno El Niño e teriam provocado “danos substanciais às plantações e rebanhos em várias regiões do País”. Só no setor de grãos, a previsão é de 13,5 milhões de toneladas a menos, queda de 4,2% em relação à safra anterior. Os ruralistas lamentam as perdas, mas insistem em ignorar a origem do problema. Sua bancada no Congresso Nacional não recua nem um milímetro nos ataques à legislação de proteção ambiental, como se viu no empenho do grupo para alterar e aprovar o Projeto de Lei 364/19.
A proposta do deputado Alceu Moreira, do MDB gaúcho, inicialmente previa a exclusão dos campos de altitude situados nos estados do Sul da Lei da Mata Atlântica, passando a ser regidos pelo Código Florestal. Com isso, seria permitido aos produtores rurais da região manter as atividades desenvolvidas na área sem sofrer multas ou embargos de órgãos ambientais. “Essa alteração legislativa é fundamental para que a produção agrícola das regiões de campos de altitude não seja completamente anulada”, diz trecho do projeto original, ressaltando que a atividade já acontece em larga escala e precisa ser regulamentada. O texto recebeu o aval até mesmo de ambientalistas. No entanto, foi incorporado um “jabuti” na proposta, emendas que resultaram num “liberou geral”. Depois de passar por sete versões, em março a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o relatório do deputado Lucas Redecker, do PSDB gaúcho, que retira a proteção de toda vegetação nativa não florestal do País, e não apenas da Mata Atlântica, autorizando a exploração de cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos.
Macron não hesitou em usar o meio ambiente como pretexto para vetar o acordo Mercosul-UE – Imagem: Everton Amaro/Fiesp
Segundo nota técnica publicada pela Fundação SOS Mata Atlântica, o novo texto deixa desprotegidos 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% dos Pampas (6,3 milhões de hectares), 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares) e quase 15 milhões de hectares na Amazônia. A entidade alega que o relator sofreu pressão do setor de árvores plantadas, eucalipto e pinus, o que inviabilizou o diálogo entre ruralistas e ambientalistas. Com a nova redação, o relatório considera áreas consolidadas todos os campos nativos do País, e sobre eles não deverá se aplicar nenhuma lei especial protetiva, valendo apenas o disposto no Código Florestal. Segundo a entidade, a lei geral não se sobrepõe à legislação específica, o que torna o relatório inconstitucional.
“Eles alegam que não vai haver nenhum corte de árvore, mas não estamos falando de árvore, e sim de outros ecossistemas, campos, formações não arbóreas, uma área importante para os recursos hídricos”, explica Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica. “Desmatamento não é só corte de árvore. Essas fisionomias são extremamente importantes para mitigar esse momento de emergência climática que estamos vivendo. Quando você troca uma vegetação nativa por uma exótica, perde de cara a biodiversidade. Em médio prazo, há um estresse hídrico. Por fim, vemos a aceleração dos processos de desertificação, que é extremamente grave.”
Fonte: Observatório do Clima
O substitutivo do PL 364/19 foi aprovado na CCJ da Câmara por 38 votos favoráveis e 18 contrários. Por ter tramitado anteriormente pela Comissão de Meio Ambiente e ter sido analisada em caráter conclusivo, a proposta pode seguir direto para o Senado, sem precisar necessariamente passar pelo plenário, a não ser que seja apresentado um recurso. E é exatamente nisso que os governistas apostam suas fichas para derrotar a matéria. Mais de 50 deputados já assinaram um requerimento, pedindo que o projeto seja debatido em plenário. Segundo o petista Nilto Tatto, coordenador da Frente Parlamentar do Meio Ambiente, a bancada ruralista aproveitou-se da exceção dada para alterar o projeto na CCJC e adaptá-lo ao acordo firmado com os ambientalistas, para incluir o jabuti e retirar a proteção legal de todos os campos nativos do País.
“De comum acordo, solicitamos à mesa da Câmara autorização para a Comissão de Justiça analisar o mérito do projeto, com base em um texto feito entre as partes interessadas. Era simplesmente autorizar o uso já consolidado nos campos de altitude no Sul, uma demanda, em especial, de plantadores de batata. Aí vem um relatório completamente esdrúxulo, um retrocesso enorme do ponto de vista do meio ambiente”, critica Tatto. O relator diz não haver nexo em manter preservada essa vegetação e proibir o uso da agricultura em uma área que já é utilizada pelo setor. “Já existe o manejo do homem passando com a sua lida de campo, com a criação de gado e de outros animais, com a construção de cercas e de currais e de estruturas para armazenamento de alimentação. Já existe ação humana”, afirmou Redecker à Agência Câmara.
Fora do Congresso, o governo Lula age de uma forma. Dentro, a postura é outra, avalia Márcio Astrini
“Em vez de propor regras detalhadas para os campos de altitude na Mata Atlântica, o relator alterou o Código Florestal, autorizando imóveis rurais com formações de vegetação nativa, predominantemente não florestais, a fazer atividades agrossilvipastoris. Essa flexibilização é um cheque em branco. Uma parte importante do território brasileiro vai ficar desprotegida. É uma redação perversa em termos não só da proteção dos campos de altitude, mas de todas as formações não florestais”, rebate Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima. Beneficiada com o PL 364, a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul alega não haver flexibilização na legislação, mas ajustes que visam “segurança jurídica, respeitando o direito de propriedade e a livre iniciativa do produtor dentro das áreas rurais consolidadas.”
Segundo Luís Fernando Pires, assessor da entidade, há uma interpretação equivocada da legislação que prejudica os produtores da região, que sofriam embargos ao realizar a conversão das áreas de pecuária para outras atividades agrícolas. “Devido a essa insegurança, e para clarear ainda mais a legislação e não existir interpretações equivocadas, o PL 364/2019 está buscando fazer justiça e defender a livre iniciativa do produtor dentro das áreas consolidadas. Cabe ao produtor ter a liberdade de utilizar, produzir e da forma que achar mais adequada ao seu negócio.” Opinião semelhante tem a Frente Parlamentar da Agricultura, que diz ser falsa a premissa de que o projeto afrouxa a legislação ambiental. “O relatório aprovado não possibilita a supressão de áreas com vegetação nativa florestal, não acarretará qualquer aumento do desmatamento. A proposta tem como objetivo principal trazer clareza em relação às áreas consolidadas, ou seja, aquelas já modificadas pela atividade humana, com práticas agrossilvipastoris existentes até 22 de julho de 2008, conforme estabelecido no Código Florestal desde 2012”, diz o colegiado, em nota.
Fonte: Diap
A aprovação do PL 364/19 coloca em relevo o cabo de guerra existente entre o governo Lula, que se apresenta em nível global como protagonista do debate ambiental, e a forte bancada ruralista no Congresso Nacional, que, mesmo sem a apoio do Executivo, continua passando a boiada antiambiental sem muita resistência. “A gente tem dois governos para o meio ambiente. Um que trabalha dentro do Congresso e outro fora. O que trabalha fora é excelente. Pela primeira vez, a gente tem um presidente que fala em desmatamento zero, combate a garimpo, criou o Ministério dos Povos Indígenas, baixou o desmatamento, refez as promessas do Brasil na área de clima, retomou a agenda internacional, o ministro da Fazenda lança programa ambiental, vende títulos da dívida pública lá fora para financiar iniciativas verdes, Fundo Clima com 10 bilhões de reais, outros países entrando no Fundo Amazônia…”, elogia Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Mas, dentro do Congresso, vemos outro governo. Os negociadores da Casa Civil, do Ministério das Relações Institucionais, parecem compactuar com a agenda dos ruralistas. Tanto é verdade que vimos passar, neste primeiro ano de governo, coisas que não avançavam há uma década. Eu não me lembro, na história recente, de ver tantos retrocessos aprovados em tão pouco tempo”, critica o ambientalista, citando como exemplos a urgência para votar a proposta do marco temporal das terras indígenas, quando o governo liberou sua bancada, e a falta de esforço dos governistas para garantir a presidência da Comissão de Meio Ambiente.
“O governo diz não ter força, mas não é bem assim. Uma coisa é não ter força, outra coisa é não fazer esforço algum para barrar um retrocesso, ao menos deixar claro que não concorda com aquilo. Não existe nada nesse sentido e a gravidade das votações vão se ampliando conforme a COP vai chegando. Quanto mais o governo é deslegitimado com essa agenda dentro do Congresso, quanto mais não apresenta resistência e deixa correr solto, mais ele vai chocando o ovo da serpente”, opina Astrini. Oficialmente, a Frente Parlamentar da Agricultura conta com 251 deputados federais e 39 senadores, mas muitos deles não têm relação direta com o agronegócio. A verdadeira bancada ruralista, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), é composta de 57 deputados e 24 senadores, dentre eles o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, senador pelo PSD.
“O número de ruralistas no Congresso já foi bem maior, mas a gente percebe uma profissionalização dessa bancada do governo Dilma para cá. A Frente contrata técnicos e assessores que coordenam os trabalhos para operacionalizar a pauta do agro. Eles têm reuniões semanais para acompanhar a pauta, o que que está em discussão, quem é o relator, em qual comissão o projeto está, como é que se trabalha, quem fala na comissão, se vai apresentar emendas ou retirar de pauta… Existe todo um mapeamento, é tudo muito bem organizado. Além de uma atuação política forte, o lobby deles se profissionalizou”, explica André Santos, analista político do Diap.
Agricultores franceses reivindicam medidas protecionistas. Eventos climáticos extremos provocaram quebra da safra de grãos no Brasil – Imagem: Cláudio Neves/Portos do Paraná/GOVPR, Ricardo Stuckert/PR e Saamer Al-Doumy/AFP
Santos lembra que a força da bancada extrapola a atuação legislativa. “Se a gente observar, desde Temer, todos os ministros da Agricultura foram referendados pela Frente. O próprio Fávaro não é uma escolha do presidente, teve ali a chancela do grupo do agro. As frentes e as bancadas informais tomaram uma proporção que enfraquece a atitude isolada dos partidos e acaba fazendo com que o governo se torne refém desses grupos dentro do Congresso Nacional, principalmente quando eles se associam a outros segmentos.”
Essa articulação dentro do Legislativo ficou ainda mais evidente no governo Lula. “Sem Bolsonaro, os ruralistas têm no Congresso um porto seguro, onde eles podem esperar uma anistia, um agrado do ponto de vista de lei, e isso vai fazendo com que essas máfias do desmatamento, das invasões de terra, do ouro e da madeira ilegal, do garimpo, do tráfico de animais, não sejam extintas. Elas se sentem protegidas de alguma maneira, às vezes hibernam ou diminuem suas atividades, como aconteceu ano passado, mas continuam vivas sempre na esperança da volta de um governo que seja espelho do que o Congresso é hoje, como foi na gestão Bolsonaro”, acusa Astrini
A contradição entre o discurso do presidente Lula em nível internacional e a boiada que passa a todo instante no Congresso Nacional tende a colocar em xeque não só os interesses do governo, mas os negócios do próprio agronegócio, ameaçado por barreiras comerciais levantadas por nações desenvolvidas. Esse cenário também sabota o plano de transformar o Brasil uma potência ambiental, com matriz energética limpa e biomas preservados, vantagens indiscutíveis nas futuras disputas geopolíticas e comerciais. “O Brasil tem todas as condições de assumir papel de liderança nas discussões internacionais sobre meio ambiente e clima. Entre as grandes economias do mundo, provavelmente somos o único país com condições de alcançar o status de País carbono negativo antes de 2050”, explica Suely Araújo, reconhecendo avanços do governo Lula no controle do desmatamento na Amazônia e na reconstrução da política climática liderada pela ministra Marina Silva.
Recentemente, a ministra defendeu a pauta ambiental como uma aliada do agronegócio e anunciou investimentos de 10 bilhões de reais para financiar ações de combate às mudanças climáticas. O valor recorde destinado ao Fundo do Clima é resultado de negociações dos chamados Títulos Verdes, vendidos no mercado internacional. “A questão da sustentabilidade é uma agenda de interesse ambiental, social, mas, sobretudo, de interesse econômico. Se o Brasil entrar numa linha de retrocessos, vamos ter o fechamento de vários mercados e de investimentos. Podemos perder uma grande oportunidade de liderar uma agenda de transformação econômica em benefício dos interesses da agricultura, da indústria e do desenvolvimento social brasileiro.”
Fernando Haddad, Marina Silva e Aloizio Mercadante anunciaram 10 bilhões de reais para o fundo do clima
A Frente Parlamentar da Agricultura minimiza os riscos de embargos comerciais aos produtos brasileiros e se apega ao discurso de que a legislação ambiental brasileira é reconhecida como uma das mais rigorosas do mundo, impondo obrigações que superam as exigidas nos países desenvolvidos. “O Brasil destaca-se como líder na conservação ambiental. O que frequentemente observamos é uma cortina de fumaça que desvia a atenção do público em relação aos acontecimentos na Europa”, diz a entidade, referindo-se ao insucesso do acordo do Mercosul com a União Europeia.
No fim de março, o presidente da França, Emmanuel Macron, esteve no Brasil, visitou a Amazônia ao lado do presidente Lula e participou de eventos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em discurso na capital paulista, Macron reiterou a oposição ao acordo, reverberando as queixas de agricultores franceses que alegam cumprir normas ambientais mais rígidas em seu país. “A falta de competitividade na agropecuária europeia, incluindo a da França, é um dos principais impulsionadores das dificuldades enfrentadas na negociação. Enquanto países como a Alemanha, que têm menos vocação para a produção de alimentos, mostram disposição política para a conclusão do acordo, outros, como França e Irlanda, apesar de possuírem certa relevância na produção agropecuária, são notadamente ineficientes e tentam sabotar o acordo por uma questão de concorrência de mercado”, afirma a FPA.
A União Europeia impõe embargos a países que descumprem regras ambientais e se utilizam de agrotóxicos proibidos no continente. “Como é que o Brasil quer ser líder da agenda ambiental e estar inserido num mercado de commodities global cada vez mais restritivo às questões ambientais, se aprova projetos que flexibilizam as regras ambientais e que atacam diretamente aqueles que mais preservam o meio ambiente, que são os povos indígenas?”, indaga Astrini. “Há uma centena de agrotóxicos registrados no Brasil que foram banidos do uso europeu. Vamos vender comida com defensivos que, por questões sanitárias, eles não usam? Em algum momento isso vai ter reação.”
De janeiro para cá, agricultores de vários países da Europa vêm protestando contra, entre outros motivos, possíveis acordos bilaterais que ameacem o mercado interno e comercializem produtos que não cumprem as mesmas regras ambientais a que estão submetidos os europeus. A crítica vale para o Brasil, que aprovou no fim do ano passado o chamado “PL do Veneno”, flexibilizando regras para uso de agrotóxicos, não respeita a população indígena, vítima constante de violência e de ataques em seus territórios, e ainda conta com inúmeros projetos para afrouxar a legislação ambiental no Congresso. •
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
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