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Uma história de conversão

A trajetória de uma família brasileira, retrato do crescimento evangélico na sociedade e de suas contradições

Imagem: Pedro Ventura/Agência Brasília/GOVDF
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Foi assim…

Em 1983, Natália tinha 3 anos. Foi a primeira filha do casal Pedro e Antônia, que haviam se casado no fim dos anos 1970. Natália foi batizada com meses e foi a primeira e a última vez que entrou em uma igreja católica. Os pais decidiram ser crentes e foram para a Assembleia de Deus, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Os quatro irmãos de Natália nasceram com os pais evangélicos, nunca tiveram o batismo católico. Natália batizou-se na Assembleia de Deus com 11 anos, no mesmo dia em que foi batizado o irmão de 8 anos. Poucos anos depois, batizam-se os dois irmãos menores. Batiza-se também a avó, mãe de Antônia, que nunca gostou dessa coisa de ser crente, de mudar de religião. Dona Vilma dizia-se católica, mas gostava mesmo era de frequentar o terreiro de candomblé, era iniciada, até que um dia vai na igreja, atendendo a um convite da filha, e decide ficar por lá, juntamente com a família. O único hábito que tinha, o da cerveja nos fins de semana, é abandonado. Vilma gosta de organizar festas e na igreja que frequenta isso é um talento. Organiza os aniversários de adeptos, do coral, do grupo de oração.

A família de Natália, 40 anos depois, é assim. Vilma tem 90 anos, não tem mais condições de ir à igreja todo domingo, mas recebe a visita do pastor e dos irmãos da Assembleia de Deus toda semana. Além de Antônia, outro filho de Vilma virou crente. Outro permaneceu no candomblé. Pedro, que morreu de ­Covid-19, dizia que a maior alegria, a maior bênção, era ter dois filhos pastores, um que continuou na Assembleia de Deus, outro que foi para a Igreja Batista. Natália continua com a mãe na mesma igreja em que entraram, em 1983. O outro irmão, o caçula, desistiu da igreja.

Na década de 80, quando a família de Natália se converteu, os evangélicos brasileiros eram 6,6% da população, cerca de 8 milhões de brasileiros. Era o início do crescimento evangélico, inversamente proporcional ao decréscimo do catolicismo, de acordo com a leitura dos dados dos Censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 1940 a 2000. Em 1983, enquanto Natália e os pais se batizavam, acontecia o I Congresso Brasileiro de Evangelização, em Belo Horizonte, apontando que os pentecostais estavam se multiplicando. A família de Natália era uma evidência.

No Congresso de 1983, que reuniu as lideranças das igrejas brasileiras, era nítida a influência do Congresso de ­Lausanne, na Suíça, ocorrido em 1974 e que propunha uma efetiva agenda social aliada ao discurso religioso. Os debates eram em torno da presença evangélica e o envolvimento em soluções para os problemas que assolavam o Brasil que ainda vivia sob uma ditadura: fome, violência, desigualdades.

Da origem católica à dispersão por distintas denominações ou pelo afastamento da religião

Na igreja de Natália, todos os domingos os fiéis eram incentivados a levar 1 quilo de alimento, para doar a quem não tinha. Todos os meses aumentava a demanda por gente necessitada. Aos 17 anos, em 1990, Natália assumiu o trabalho social da comunidade. Estava na sua responsabilidade atender as carências e pedidos de quem procurava a igreja: passagens para voltar ao Nordeste, botijão de gás, remédios, comida. O Brasil estava imerso no Mapa da Fome e isso significava gente sem o direito de fazer três refeições por dia, gente comendo calango nas imagens da televisão. Em 1983, a igreja da família de Natália tinha 120 integrantes. Em 1990, eram 207, sem contar as igrejas não contabilizadas na membresia até que passem pelo batismo ou a confirmação pública da confissão de fé em Jesus Cristo como Salvador, o pilar das igrejas evangélicas.

Por causa do trabalho na igreja, Natália, aos 20 anos, entrou em uma faculdade privada de Serviço Social. Sua inspiração era Benedita da Silva, eleita para a Constituinte. Foi em Benedita que os pais dela votaram. A mãe de Natália era empregada doméstica, igual à deputada. Era crente da Assembleia de Deus, igual a Benedita. Era negra igual.

Os crentes, definitivamente, passaram a marcar presença na vida pública e no sistema político. As primeiras eleições presidenciais pós-ditadura, em 1989, são marcadas por discursos rechea­dos de apoio ou repulsa de candidatos apresentados como ameaças ao campo evangélico ou pela redenção do grupo que estava em contínuo crescimento, atraindo os pobres, os pretos e as mulheres. Antes disso, em 1986, se registra uma inclusão de parlamentares evangélicos, como Benedita, no Congresso.

Depois de formada, Natália fez concurso público e começou a trabalhar em um Posto de Saúde no Rio de Janeiro, em 2009. Uma boa parte dos pacientes tem algum tipo de vínculo com o segmento evangélico. A cada ano, aumenta esse número que reconhece na assistente social, além da profissional, alguém da mesma crença. Na igreja de Natália, que em 2005 tinha 600 integrantes, o serviço de ação social não parou. Agora chegam mães, crentes, que perdem seus filhos para as violências, inclusive aquela do Estado, que precisam enterrar seus filhos, que precisam de consolo, que querem ver a justiça narrada na Bíblia, que deveria correr como um rio perene.

Aos 39 anos, Natália votou pela sétima vez para presidente da República e repetiu o voto dos pais em Benedita da Silva para deputada federal. A igreja de Natália agora tem quase 2 mil integrantes e o pastor até tentou fazer campanha para Bolsonaro, com medo de as crianças virarem gays ou seus templos serem fechados. O que ele viu foi uma comunidade dividida, como estavam divididos todos os grupos da sociedade.

Um dos filhos de Natália, Mateus, de 19 anos, puxou o enfrentamento à postura do pastor. O garoto é aluno da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi uma festa para todos ele ter passado em Direito. O primeiro a entrar em uma universidade pública, será o primeiro advogado da família. A vó, dona Antônia ou irmã Toninha, emociona-se quando fala do neto. A bisavó, Vilma, só pede a Deus que viva o suficiente para ver o bisneto se formar. Aos domingos, ele toca bateria nos cultos e pensa em, depois da formatura, estudar Teologia e ser pastor, como os tios.

A irmã de Mateus, Sara, de 16 anos, declarou-se lésbica. Num primeiro momento, Natália ficou desconfortável. E foi na Bíblia que achou a mensagem de que precisava para entender que a liberdade de se revelar é uma bênção, pois quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? Se é Deus quem os justifica, quem os condenará?

Sara quer ser assistente social, como a mãe. De vez em quando, ajuda na ação social da igreja, apesar de não querer mais participar das atividades. Sara faz parte de um coletivo de juventude no bairro onde mora, juntamente com outros colegas que também foram criados em igrejas da região. Quando ela quer ir ao culto, vai em uma igreja inclusiva, com os amigos, na Barra da Tijuca.

Esta é a história de uma família, é a história do trânsito religioso. É a história do Brasil. •


Nilza Valeria Zacarias: Jornalista, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, movimento de defesa da democracia e da garantia de direitos organizado em 2016, crente batista de quarta geração.

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma história de conversão’

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