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Onde os fracos não têm vez

O STF cobra um plano para reduzir a letalidade policial e Cláudio Castro distribui 10 mil pistolas a PMs aposentados

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Tiro no pé. As violentas operações colocam em risco a vida dos moradores e dos próprios policiais, alerta Freixo - Imagem: Carl de Souza/AFP
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Em um estado onde ocorreram chacinas que ganharam fama internacional, como as da Candelária e de Vigário Geral, o governador Cláudio Castro, do PL de Jair Bolsonaro, já tem no currículo a “façanha” de ter autorizado as duas incursões policiais mais letais da história do Rio de Janeiro. Um ano após a operação no Jacarezinho, que resultou na morte de 28 supostos traficantes, alguns com evidentes sinais de execução, policiais protagonizaram em maio outro massacre, desta vez na Vila Cruzeiro, deixando 23 corpos estirados no chão. Apesar dos protestos vindos de várias direções, Castro, adepto da política do “tiro na cabecinha” pregada pelo cassado Wilson Witzel, de quem era vice, não tem dado muita bola para as determinações do STF que visam reduzir a letalidade policial no Rio. Ao contrário, o governo estadual anunciou a distribuição de 10 mil pistolas a policias militares da reserva, para estupefação dos críticos.

Provocado por uma ação protocolada pelo PSB e diversas entidades de direitos humanos, o ministro Edson Fachin determinou um prazo de 60 dias, contados desde 28 de maio, para que o governo do Rio apresente um Plano de Redução da Letalidade Policial e crie o Observatório Judicial da Polícia Cidadã. Ambas as recomendações foram feitas inicialmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e uma determinação semelhante havia sido dada a Castro pela maioria do STF em fevereiro. Mas o processo de debates, percebido como pouco transparente pelo STF, levou Fachin a estabelecer um prazo relativamente curto para a apresentação de um novo plano, uma vez que a exigência inclui a realização de audiências públicas e discussões com Ministério Público, Defensoria Pública e OAB. “Sem que se oportunize a participação democrática, o plano se torna ilegítimo”, diz.

Na saída de uma reunião com Fachin na quarta-feira 1º, Castro afirmou ter acionado o Instituto de Segurança Pública para organizar o cumprimento das determinações do STF “antes mesmo dos 60 dias”. Como exemplo de sua boa vontade, mencionou a instalação de câmeras nas fardas dos policiais militares – que teve início na véspera de sua ida a Brasília – até agora prevista para oito batalhões de um total de 39. Na ação enviada a Fachin, o PSB demonstra preocupação com os batalhões escolhidos – todos em áreas de menor confronto com traficantes – e com as várias vedações colocadas ao acesso das vítimas de violência policial ou seus familiares ao material filmado. Em nota, Fachin se disse preocupado “quanto à priorização das unidades que devem receber as câmeras, assim como em relação ao sigilo dos arquivos de imagens”. Estes, diz o ministro, “devem ser prontamente disponibilizados para os órgãos de controle”.

Em apenas um ano, o estado registrou 40 chacinas, com o tenebroso saldo de 182 mortos

O Ministério Público do Rio abriu um Procedimento Investigatório Criminal para apurar excessos e responsabilidades nas mortes ocorridas na Vila Cruzeiro. Castro diz que a incursão policial “obedeceu a todos os preceitos” estabelecidos pelo Supremo. Na cerimônia de instalação das primeiras câmeras nas fardas, o governador rechaçou as críticas à operação: “Aquela comunidade virou um hotel de luxo para os chefes de facções criminosas. Ali bate o coração da maior facção criminosa do estado. A mesma que espalha o terror na sociedade”, disse. No Jacarezinho, o governador ordenou a derrubada do memorial que entidades, como o Instituto de Defesa da População Negra, haviam erguido para homenagear os mortos da ação ocorrida em 6 de maio de 2021: “Pegar 27 criminosos e fazer um memorial é um tapa na cara da sociedade. Enquanto eu estiver à frente do governo, não vamos aceitar esse tipo de apologia do crime”.

Para o sociólogo e especialista em segurança pública Ignacio Cano, “este sempre foi um governo de promoção da letalidade policial e as grandes operações nas favelas mostram isso”. O professor da Uerj defende a posição de ­Fachin, mas avalia que o STF poderia ser mais incisivo. “É importante apertar o governo do Rio, que nunca cumpriu as determinações do Supremo nem a sentença da Corte Interamericana. O STF deveria impor medidas sancionadoras perante o descumprimento das determinações e da sentença. Enquanto isso não acontecer, o efeito será limitado”, diz. De resto, Cano não tem muita esperança sobre a efetividade da pressão sobre Castro: “Do ponto de vista prático, acho que é relativamente inócua, porque estamos em ano eleitoral e tudo vai depender do novo governo”.

Na contramão do que pedem as instituições, o governo do Rio publicou no ­Diário Oficial de 1º de junho a resolução da Polícia Militar de distribuir uma pistola calibre .40 da marca Glock, três carregadores e 50 projéteis para cada um dos 10 mil policiais da reserva. Pleito semelhante foi feito pelo Sindicato de Policiais Civis do Rio, que reivindica outras 10 mil armas para seus aposentados. “Essa distribuição é uma tragédia. Se levada a cabo, será mais um contingente de 20 mil armas a serem usadas no Rio de Janeiro. Faz parte do projeto bolsonarista de armar a população e agradar a parte de sua clientela política. Essas pessoas não são mais agentes de segurança pública e, por isso, não deveriam ter acesso a armamento.”

Segundo um levantamento feito pela Universidade Federal Fluminense em parceria com o Instituto Fogo Cruzado, durante o primeiro ano de Castro no Palácio Guanabara foram realizadas 40 incursões policiais com saldo de ao menos três mortos, o que se convencionou chamar de chacina. Estas deixaram um total de 182 mortos no Rio. “A segurança não se obtém com matanças como as do Jacarezinho e da Vila Cruzeiro, que colocam em risco a vida de moradores e policiais. O governador usa a segurança pública como arma eleitoral”, diz o deputado federal Marcelo Freixo, do PSB, provável adversário de Castro no segundo turno das próximas eleições para o governo do Rio. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Onde os fracos não têm vez “

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