Sociedade

O auxílio está “em análise”: solicitantes relatam atraso nos R$ 600

Em meio à pandemia, trabalhadores informais se inscrevem no programa de socorro do governo e reclamam de demora em avaliação

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A pandemia do coronavírus interrompeu a reforma na casa do motorista de aplicativo Alexandre Nunes Costa, de 36 anos, morador da cidade de São Paulo. Mas as dívidas no cartão de crédito, criadas para pagar as obras, são cobradas pontualmente, mês a mês. As parcelas do financiamento do carro também. O perigo de infecção pelas ruas resultou em um decreto de quarentena em todo o estado, o que reduziu vertiginosamente o número de passageiros de Alexandre. Porém, o motorista ainda se expõe com o seu automóvel, todos os dias, para recuperar parte da renda que obtinha. 

Ele não estaria tão inseguro se tivesse data fixa para receber o auxílio emergencial de 600 reais. Contudo, parece que o governo federal não levou à risca as palavras escolhidas para nomear o benefício que, em teoria, daria socorro a trabalhadores informais durante a crise. Na prática, o que era para ser “emergencial” demora quase um mês para chegar na conta bancária de Alexandre e de sua esposa. Os dois se inscreveram no programa em 8 de abril, e não receberam qualquer valor quando procurados por CartaCapital em 4 de maio. Sua renda caiu pela metade e sua esposa está desempregada.

“Esperamos por 15 dias uma resposta através do aplicativo. No dia 23 de abril, a informação que foi passada é que os dados estavam inconclusivos. Porém, a Caixa [Econômica Federal] não informou exatamente por que a solicitação não foi atendida ou se foi reprovada. Eles não deram motivo nenhum. Fizemos um novo cadastro no mesmo dia. Hoje, ao consultar novamente, a mesma informação é que está em análise”, conta ele.

Inscrita no programa desde 18 de abril, a técnica de enfermagem Cláudia Rodrigues da Silva, de 39 anos, virou o mês com o pedido sob análise. Nos últimos quatro anos, ela atuava como conselheira tutelar, mas a gestão acabou e ela ficou desempregada em janeiro. Cláudia mora na cidade de Cocalzinho de Goiás, a mais de 100 quilômetros da capital de Goiânia, com as suas duas filhas, uma de 14 e outra de 12 anos.

 

No início de maio, a técnica de enfermagem teve a solicitação negada pela Caixa Econômica Federal. O banco alegou, por escrito, que o cadastro trata de “Cidadão com emprego formal – Vinculado ao Regime Próprio de Previdência Social; Cidadão com emprego formal – Vinculado à Relação Anual de Informações Sociais”. Ela disse que vai recorrer para tentar comprovar que está sem trabalho e que precisa do dinheiro. 

“Até agora não entendi”, disse para CartaCapital. “Eu pedi o benefício porque estou desempregada, para manter a casa, comprar alimentos, pagar água, energia, comprar remédios para minhas filhas. Sem o benefício, isso tudo acumula, né? Essa espera está sendo muito dolorosa, porque toda hora eu estou lá, vendo se aceitaram, e só está em análise”, relata ela.

Alexandre e Cláudia ficaram de fora dos 50,5 milhões de brasileiros que, segundo a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev), foram classificados até 4 de maio como elegíveis ao benefício. A instituição contabilizou 97,7 milhões de cadastros que passaram pelo sistema de conferência e foram homologados pelo Ministério da Economia até a data – destes, 32,8 milhões foram considerados inelegíveis e 13,7 milhões estavam inconclusivos, com necessidade de complemento cadastral. 

Está prevista para o fim da semana a finalização do processamento dos requerimentos apresentados entre 23 e 30 de abril, por meio do aplicativo e do portal da Caixa, segundo o governo. Procurada, a empresa Dataprev alegou que o tempo de análise da solicitação dura, em média, cinco dias úteis. A instituição afirmou que apenas “um pequeno percentual” de 2% do total de cadastros (quase 98 milhões) precisou de um processamento adicional, “em função da complexidade de cenários e cruzamentos”. Na terça-feira 5, o governo anunciou uma plataforma para consulta do pedido pelo CPF. 

Até 30 de abril, o governo diz que já desembolsou 35,5 bilhões de reais com o pagamento dos benefícios. No entanto, nenhuma fração deste dinheiro havia chegado até 4 de maio na conta da atriz Cláudia Barbot, que mora no Rio de Janeiro. Diferente dos casos relatados em São Paulo e em Goiás, a artista teve a solicitação analisada e aprovada, mas a complicação apareceu no acesso ao aplicativo Caixa Tem

“O auxílio está sendo uma questão de sobrevivência”, diz beneficiária que demorou um mês para receber o pagamento.

Cláudia não tem filhos e está morando na casa de uma amiga. Além do trabalho como atriz, ela também obtém renda com produção cultural, comunicação digital e eventos. Com o baque no mercado da cultura, devido à pandemia, seu ganha-pão foi diretamente afetado. Ela, então, pediu o benefício de 600 reais na madrugada entre 6 e 7 de abril, mal havia surgido a possibilidade de solicitar o auxílio. Mais de uma semana depois, seu cadastro foi aprovado entre os dias 16 e 18. No dia 19 de abril, o site da Caixa informou que o dinheiro seria depositado em sua conta no Banco do Brasil, conforme solicitado. No dia 20, a Caixa disse que o valor foi depositado, mas em sua conta não apareceu nada.

“O Banco do Brasil abre uma extensão separada para colocar esse dinheiro do auxílio. É uma nova conta que se abre. E nada aconteceu. Fui atrás para saber. Liguei para o Banco do Brasil, a primeira pessoa me pediu para esperar três dias úteis, e depois a segunda pessoa me disse cinco dias úteis. Liguei para o 111 da Caixa, fui atendida por um robô. Ele me disse que só começou a ser processado o meu pagamento no dia 18. Era o Banco do Brasil dizendo que nada aconteceu, e a Caixa com um robô dizendo que estava tudo certo”, afirmou.

Em 27 de abril, Cláudia aparecia na televisão para tirar dúvidas sobre quando o seu dinheiro chegaria. Em seguida, descobriu que poderia instalar o aplicativo Caixa Tem. Porém, o seu celular não instalava a ferramenta. Chegou a ser informada da criação de uma poupança digital pela Caixa, mas não conseguia visualizar a conta, porque o seu celular não instalava o aplicativo, e seus amigos que tentavam lhe ajudar esperaram filas de espera online.

Ela conta que no mínimo sete pessoas lhe ajudaram nessa saga. Apenas na noite de 5 de maio, quase um mês depois de fazer a solicitação, conseguiu receber o dinheiro pela conta do seu pai na Caixa.

“O auxílio, nesse exato momento, está sendo uma questão de sobrevivência. É questão de comprar alimentação que aumente a imunidade, produto de limpeza. O dinheiro não chega nem a pagar as contas”, diz.

Também profissional da cultura, a jovem Sophia Ázara de Mello Luz, de 24 anos, solicitou o benefício em 7 de abril e seu pedido permanecia sob análise quando procurada pela reportagem em 6 de maio. 

Sophia trabalha como profissional autônoma de audiovisual, na cidade de Petrópolis, na Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Ela atua com formações audiovisuais, projetos de curtas e longas metragens e eventos como mostras e festivais. Para 2020, já estava com trabalhos fechados até dezembro. E foram todos cancelados. Perguntada se ela suspeita de algum motivo para que sua solicitação seja reprovada, ela responde: “Nenhum”. Ela mora, sozinha, em uma residência que foi desmembrada e hoje são quatro moradias. Mas todas têm o mesmo CEP e endereço, só muda o complemento. Se alguém mais tiver pedido o auxílio, cogita ela, pode parecer que suas informações foram cruzadas com as de outra pessoa.

“Pedi o benefício por estar sem trabalho nesse momento. Estou sem rendas entrando de forma fixa e pago aluguel, não conseguiria manter minha vida sem trabalho e sem o auxílio. Minhas contas vão se acumular cada vez mais se o benefício não entrar”, diz ela. “Vejo muitas pessoas do cinema e do audiovisual na mesma. Mas seguimos vivendo um dia de cada vez.”

Captura de tela enviada por Sophia, em 6 de maio, quase um mês depois de pedir o benefício. Foto: Arquivo pessoal

“Bolsonaro tem uma narrativa: o isolamento social não é necessário. E você, trabalhador informal e autônomo, tem que trabalhar para colocar comida na sua mesa”, avalia parlamentar.

Atrasos reforçam campanha de Bolsonaro contra o isolamento

Os atrasos no pagamento do benefício se repetem em diferentes cidades brasileiras e o governo diz que as falhas são minoritárias. Enquanto isso, milhares de brasileiros dormem em filas de bancos, na rua, levam marmitas, porque desistem dos meios digitais e tentam resolver o problema pessoalmente.

Para a oposição, não é coincidência. Parlamentares acreditam que o governo está utilizando procedimentos burocráticos e subterfúgios administrativos para negar o pagamento do auxílio emergencial. 

É isso o que o PSOL escreve em um projeto de lei apresentado em 28 de abril, para limitar em três dias o prazo de análise dos pedidos. Segundo a proposta, o pagamento da primeira parcela do benefício terá que ser feito em até sete dias corridos após o cadastro do requerimento, sob pena de multa de 10% de acréscimo no valor. O partido também pediu a convocação do ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, para que esclareça os atrasos em audiência na Câmara dos Deputados.

Ouvido por CartaCapital, o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) argumenta que os atrasos nos pagamentos colaboram com a campanha do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento social. Para o parlamentar, os obstáculos desmotivam os beneficiários e chegam em boa hora para o chefe do Palácio do Planalto, que levanta a bandeira pela volta à normalidade, sob o pretexto do aumento do desemprego.

“Bolsonaro tem uma narrativa: o isolamento social não é necessário. E você, trabalhador informal e autônomo, tem que trabalhar para colocar comida na sua mesa. Quando ele faz isso, ele passa duas mensagens: você não precisa de isolamento porque você tem que trabalhar, e a responsabilidade de obter renda não é minha, nem do governo, é sua. Num cenário em que ele tenta viabilizar essa narrativa, quanto mais as pessoas tiverem dificuldades no acesso ao auxílio, maior a possibilidade reforçar essa narrativa”, avalia o deputado.

Presidente Jair Bolsonaro está concentrado em participar de atos antidemocráticos e contra o isolamento social. Foto: Reprodução/Redes Sociais

 

Braga adiciona que o próprio Ministério da Economia tem demonstrado incômodo com as despesas públicas durante a pandemia. O ministro Paulo Guedes tem defendido que o governo não pode gastar mais e não pode ampliar o seu endividamento, enquanto outros países têm aumentado a capacidade de investimento para dar conta da crise. 

Vale lembrar que a má vontade do governo em desembolsar socorros à população, apontada pelo parlamentar, está casada com políticas de austeridade aprovadas em anos anteriores. A Emenda Constitucional que determinou o teto de gastos e o congelamento de recursos à saúde por 20 anos (EC 95) está em vigor desde o governo de Michel Temer (MDB). A medida deixou o Brasil com “baixa imunidade” para enfrentar a pandemia do novo coronavírus, segundo conclusão de um estudo divulgado em 23 de abril, pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Na terça-feira 5, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Helder Salomão (PT-ES), pediu uma reunião com Lorenzoni com o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, para debater formas de agilizar a liberação do benefício. Ainda não houve resposta para a confirmação do encontro. Outros sete requerimentos que tramitam na Câmara pedem esclarecimentos também a Paulo Guedes.

Para Salomão, as dificuldades no acesso ao auxílio afetam especialmente as populações tradicionais, ribeirinhos e pessoas em situação de rua. Uma de suas propostas, por exemplo, é que o cadastramento possa ser feito de forma presencial em outras instituições, como unidades integrantes do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do SUS. Nas redes sociais, o petista protestou contra o silêncio das autoridades convidadas.

“Os brasileiros estão sofrendo com as enormes filas. A fome do povo não pode continuar em análise”, escreveu o parlamentar, nesta quarta-feira 6.

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