Sociedade

Ninfomaníaca: o desejo feminino sem véus nem enfeites

No filme de Lars Von Trier, a protagonista não se conforma com o cativeiro. Está sempre na iminência de uma violência patrocinada pela lógica masculina

A protagonista Joe, personagem de Charlotte Gainsbourg no filme de Lars von Trier
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A análise, em conjunto, do filme Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, leva à necessidade de se desmistificar conceitos ainda tratados como tabus nos dias de hoje. A começar pelo conceito de ninfomania. O vício em sexo, em alguns casos, é usado como rótulo ou propaganda para uma espécie de adequação, um reflexo de preconceitos infiltrados em estudos científicos com o objetivo de controlar a população e manter a ordem social vigente.

Ninfomaníaca foi classificada pelo seu diretor  como uma obra pornográfica. O conceito de pornografia surgiu na Era vitoriana para classificar de “arte proibida” a representação do sexo explícito como uma forma de controle social. A ideia era que nada desvirtuasse a massa dos seus papéis sociais na matriz de poderes estabelecidos. À plebe, o trabalho e a guerra.

A representação do sexo na arte vem desde tempos imemoriais e convive com os tabus sexuais que mudam de tempos em tempos. A diferença é que os ingleses acharam por bem proibir por lei essa forma de arte. Condenaram, mas, ao mesmo tempo, criaram “museus secretos” para expor somente a um público selecionado, homens de alta classe e estudiosos, aquilo que seria profundamente transgressor à moral de dominação.

O cinema tem se dedicado a essa questão, sobretudo a sexualidade feminina. As obras permitem questionamentos sobre a liberdade. Mas a artificialidade da construção das relações amorosas chegou ao auge com a incorporação dos valores do mercado na avaliação do parceiro(a) ideal. Toda a institucionalização do namoro, noivado e casamento faz parte do mesmo movimento de enquadramento das relações sexuais em um espaço seguro, controlado – e por isso considerado menos vergonhoso. É ultrajante, para algumas pessoas, a clandestinidade dos amantes. Certamente porque a maioria não tem uma individualidade a qual respeite e precisa, a todo momento, consultar alguém para aprovar ou não suas escolhas.

No início do primeiro filme, Joe, personagem de Charlotte Gainsbourg, afirma ser uma pessoa abjeta. Ela sente um imenso tédio por não se sentir “conectada” a ninguém e passa a se relacionar com vários parceiros ao longo do filme em busca de algo que a complete. Esta busca plena dos prazeres é, e sempre foi, duramente combatida pela Igreja e pelas famílias, que muitas vezes se comportam como fantoches de um sistema aniquilador das liberdades individuais. Este exercício de vigilância faz com que todos vigiem todos para se confortarem na prisão do outro como em um espelho.

No caso de Joe a dolorosa perda do contato com o filho foi um peso a carregar, mas ninguém se perguntou o porquê de o marido não ter cuidado da criança. Qual seria o problema de um pai ficar com seu próprio filho após o divórcio? A reação de parte do público ao filme (e à personagem central) parte de um pressuposto segundo o qual a mulher possui por natureza um instinto maternal. O mesmo pressuposto aceita que o homem dispense o seu instinto de proteção aos filhos. O filme incomoda por inverter estes papeis e mostrar que as pessoas são diferentes e, por serem diferentes, encaram seus laços de formas distintas.

Ao fim do filme, muitos disseram que a personagem de Gainsbourg é incapaz de criar afetividade por alguém (ouvi essa mesma interpretação sobre o personagem do viciado em sexo do filme “Shame”). Um olhar atento, porém, permite notar momentos expressos de carinho entre ela e outros personagens: as amigas, o pai, o marido, o interlocutor que a recebe em casa. Custa aceitar, mas essas brechas de afetividade é mais abundante do que em muitas famílias tradicionais que mal se suportam: são obrigadas a conviver com suas escolhas socialmente aceitas e nem escondem a cara de insatisfação. São ovelhas a entrar em shopping centers como distintos consumidores (O mercado, não tenham dúvidas, se alimenta de nossa infelicidade pessoal).

Joe não parece conformada com esta educação para o cativeiro e luta contra ele. Por isso está sempre na iminência de uma violência física patrocinada pela lógica masculina da intolerância.

Joe não está sozinha. Em pleno século 21, ainda é comum ouvir relato de mulheres que não ouviram sequer falar em orgasmo feminino pela penetração. Ou que o sexo só tem valor se for por “amor”. A partir disso temos um verdadeiro festival de homens comuns imitando atores pornôs e ignorando deliberadamente químicas que por ventura surjam com moças que não considerem “de família”.

Na contramão disso, Lars Von Trier nos joga na cara uma experiência humana singular, sem véus nem enfeites maculados pela culpa paralisante. Tudo é tratado de forma simples, prosaica até. Vivemos em uma sociedade do espetáculo e talvez seja por isso que o filme tenha causado tanto estranhamento, com sua abordagem quase neutra e diálogos didáticos, como se a atual geração finalmente conseguisse refletir sobre um assunto no qual o autoconhecimento ainda é um tabu.

 

 

Nalini Narayan é escritora e autora do livro “Aventuras Sexuais de Nalini N.- Uma Odisseia em São Paulo”.

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