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Nas ruínas da Braskem

Afetados pela petroquímica buscam na Justiça holandesa a reparação negada pelos tribunais brasileiros

Terra arrasada. Com o afundamento da superfície, a população de bairros inteiros precisou ser removida às pressas. Boa parte dos imóveis sofreu danos irreparáveis - Imagem: Defesa Civil/GOVAL e Redes sociais
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Vítima do que é considerado o maior crime socioambiental em área urbana do mundo, o empresário e líder comunitário Fernando Lima trava há quatro anos uma luta desigual contra a Braskem para reaver sua empresa, sua casa e outros quatro imóveis alugados que tinha na comunidade de Bom Parto, na periferia de Maceió. Ele é um dos mais de 55 mil moradores da capital alagoana que viram seus patrimônios afundarem em decorrência da ação da Braskem, petroquímica que operava na extração de sal-gema no perímetro central. O minério é usado para a fabricação de soda cáustica, plástico e outros produtos da cadeia cloroquímica. Sem conseguir avanços na Justiça brasileira, Lima entrou com uma ação judicial na Holanda, país no qual a mineradora tem fortes vínculos empresariais e de capitais.

O drama de Lima teve início em março de 2018, quando Maceió foi afetada por um terremoto de 2,5 graus na escala Richter, um tremor considerado leve, mas o suficiente para abrir crateras nas ruas e rachar várias residências. Muita gente precisou abandonar suas casas, devido ao risco de desabamento. Inicialmente, a Braskem tentou se eximir da responsabilidade, mas uma análise realizada pelo Serviço Geológico do Brasil comprovou que a causa do acidente foi a exploração de sal-gema feita pela mineradora, que tinha 35 minas instaladas no subsolo de Pinheiro, ­Mutange, Bebedouro, Bom Parto e Farol, bairros que aos poucos foram afundando também.

Segundo a urbanista Isadora Padilha, desde a década de 1980 havia o risco de rebaixamento da superfície, pois as minas estão no subsolo da parte urbana de Maceió e os poços foram instalados embaixo dos cinco bairros afetados pelo terremoto. “As rochas de sal-gema são quebradas para tirar os cristais do minério, depois transportados por dutos que percorrem quilômetros dentro da cidade até chegar à fábrica, onde são transformados em vários produtos”, explica, acrescentando que esse processo realizado por anos motivou o afundamento dos bairros, um movimento ainda em curso.

Cinco bairros afundaram devido à extração de sal-gema no subsolo da capital alagoana

Lima é proprietário de uma empresa provedora de internet e sua maior clientela ficava na região atingida. Com o acidente, ele alega ter perdido 60% da receita, acumulando prejuízos e dívidas. “As perdas geraram em mim uma ansiedade grande, problemas para dormir, devido à incerteza de saber se serei capaz de manter meu negócio, pagar os funcionários e minhas contas”, diz, salientando que só de material teria investido mais de 1 milhão de reais, mas a Braskem ofereceu míseros 50 mil reais de indenização. “Estamos buscando na Holanda o que não encontramos em Maceió, justiça.”

Em 17 de maio, a Justiça holandesa rea­lizou a primeira audiência da fase preliminar do processo, para analisar se o ­país tem jurisprudência para julgar o ­caso. O escritório de advocacia internacional PGMBM, em parceria com Araújo Advogados Associados e Omena Advocacia, representa Lima e outras vítimas da tragédia, e esteve presente na audiência que durou quatro horas. O Tribunal Distrital de Roterdã escutou o depoimento de três das vítimas e de advogados da Braskem. Ao final, os juízes agendaram para 21 de setembro o anúncio do veredicto, se o processo deve ou não ser julgado na Holanda. A partir dessa data, as partes podem questionar o resultado e, em maio de 2023, será publicado, enfim, o mérito da questão.

Existem regulamentos europeus que permitem o julgamento no continente, quando um acontecimento ocorre fora de um Estado membro da União Europeia, mas é causado por uma parte que tem domicílio na Europa. A ação da ­PGMBM pleiteia indenizações integrais pelos danos morais e materiais sofridos pelas ­pessoas, uma alternativa ao acordo firmado em 2019 entre a mineradora, o Ministério Público Federal, o Ministério Público de Alagoas e as Defensorias Públicas da União e de Alagoas. Pelo pacto brasileiro, a mineradora pagaria um valor inicial de 81,5 mil reais por família e passaria a ser proprietária das casas indenizadas. Esse valor, no entanto, pode ser questionado e negociado caso a caso. O problema é que a grande maioria das vítimas está endividada e termina aceitando o acordo. Depois, eles não conseguem comprar outro imóvel.

Avança. Os advogados das famílias atingidas deram um passo importante em Roterdã – Imagem: Redes sociais

“Milhares de famílias foram obrigadas a deixar tudo para trás, abandonar suas casas onde passaram uma vida inteira, devido a esse crime que devastou nossas vidas. São danos irreparáveis e até hoje a Braskem não foi responsabilizada criminalmente”, denuncia ­Neirivane ­Nunes, ex-moradora do bairro de Bebedouro, um dos mais afetados pela tragédia. Assim como Mutange, Bebedouro está praticamente sem moradores e as ­ruas estão fechadas por cancelas, devido ao alto risco de acidentes no local. O cenário nesses bairros é de guerra, com casas e prédios transformados em ruínas e moradores desolados – alguns ainda resistem em deixar suas casas. A tragédia levou 11 pessoas a cometerem suicídio e centenas ­adquiriram doenças como depressão, ansiedade e problemas cardíacos.

Segundo a Braskem, quase 14,2 mil imóveis dos cerca de 15 mil afetados foram desocupados, totalizando a relocação de em torno de 35 mil moradores, que, afirma, teriam recebido assistência por parte da mineradora. Desse total, mais de 13 mil famílias teriam feito acordo com a mineradora. “Depois de ter seu imóvel identificado e agendar a mudança, que é paga pelo Programa, cada família recebe um auxílio financeiro no valor de 5 mil reais para ajudá-la na locação do imóvel, na negociação com imobiliárias e outras necessidades que possam aparecer. Após a desocupação, um auxílio-aluguel no valor de mil reais mensais é pago por pelo menos seis meses e até dois meses após a homologação do acordo de compensação”, afirma, em nota, a empresa. A informação, entretanto, é contestada pelas vítimas.

“O acordo feito entre a Braskem e os órgãos do estado representa a institucionalização de uma profunda injustiça. O documento dá à Braskem o direito de agir como quer, enquanto as vítimas estão indefesas, abaladas economicamente e socialmente”, dispara Alexandre Sampaio, presidente da Associação dos Empreendedores de Pinheiro e região e proprietário de três empresas que foram afetadas pela tragédia. “O processo da Braskem não é indenizatório, é uma venda compulsória pelo valor que a mineradora quer pagar, a partir de uma chantagem mediada pelas autoridades públicas.”

As vítimas sofrem assédio para vender seus imóveis por valores irrisórios

Sampaio é empresário do mercado imobiliário e estima que, ao assumir a posse das casas que está indenizando, a Braskem vai acumular mais de 40 bilhões de reais em patrimônio. A mineradora é controlada pelo Grupo Novonor (ex-Odebrecht), acionista majoritário com 51% das ações, e pela Petrobras, que tem 47% das cotas. A extensão do território que poderá passar ao controle da empresa tem gerado polêmica. As vítimas falam em 6% da área total de Maceió, enquanto a prefeitura afirma representar 1,5% da capital alagoana. Pelo acordo, mesmo passando a ser proprietária dessa área, a Braskem está impedida, por enquanto, de erguer edificações para fins comerciais ou residenciais. Mas, no futuro, está liberada, desde que esteja dentro das regras do Plano Diretor da cidade.

O acordo, a prever o pagamento das indenizações até o fim deste ano, não contou com a participação da prefeitura de Maceió, responsável direta pela manutenção dos bairros. Os atingidos tampouco foram ouvidos durante o processo. Em nota, o Ministério Público Federal disse que o entendimento buscou atender a “direitos difusos e coletivos, razão por que ajuizou ações civis públicas contra a Braskem e buscou a construção de um Termo de Acordo que pudesse abreviar e amenizar o sofrimento dessas vítimas”.

O MPF afirmou ainda que as vítimas, assistidas por um advogado ou defensor público, podem buscar o valor que lhes é justo, não sendo obrigadas a aceitar os 81,5 mil reais propostos como ponto de partida. “Como o MP não atua nos casos individuais, não cabe fixar tais valores, que podem ser buscados por meio de avaliações particulares”. Para entender melhor a história da tragédia em Maceió, está disponível no YouTube o documentário A Braskem Passou por Aqui: A ­Catástrofe de Maceió, do cineasta Carlos Pronzato . •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nas ruínas da Braskem”

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