Entrevistas

‘Não é com bombas e gás que se acaba com a Cracolândia’

CartaCapital entrevista Neti Araújo, coordenadora da Ocupação Mauá, que abriga mais de 200 famílias e resiste há 14 anos

Por conta das medidas de restrição de prevenção ao coronavírus, as fotos para essa matéria foram feitas pela própria Neti Araújo.
Apoie Siga-nos no

Em menos de uma semana, episódios de abuso policial atingiram duas das maiores ocupações de movimentos de moradia da cidade de São Paulo. No primeiro deles, ocorrido em 20 de fevereiro, policiais militares acompanhados de cães invadiram a Ocupação Mauá, a mais antiga da capital paulista, após denúncia de que lá havia drogas. Sem mandado judicial, eles desconectaram as câmeras de segurança do local e levaram presa uma jovem de 25 anos, grávida, supostamente por suspeita de tráfico.

No segundo episódio, ocorrido na última sexta-feira, 26, foi a vez de a Polícia Civil invadir a Ocupação Prestes Maia, vizinha à Mauá, alegadamente para investigar a existência de uma rota de fuga dentro de um estacionamento que funciona no terreno. Moradores contam, porém, que os agentes, ao verem que a denúncia não procedia, passaram a procurar outras irregularidades e encontraram um desvio de energia elétrica. Decidiram, então, levar presos dois militantes do Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), responsável tanto pela Ocupação Mauá quanto pela Prestes Maia.

Ocupação Mauá

A história da Ocupação Mauá é emblemática para os movimentos de luta por moradia de São Paulo. Localizado no bairro do Bom Retiro, o edifício – ocupado há 14 anos – foi construído na década de 1950 para abrigar o Hotel Santos Dumont, numa época em que o centro da capital paulista atraía empresários e investimentos do poder público, e tinha na antiga Rodoviária da Luz um importante ponto de referência.

Em 1982, com a construção da Rodoviária do Tietê, entretanto, o terminal da Luz foi desativado, contribuindo para tornar ociosa toda a estrutura comercial do entorno. Ainda na década de 1980, o imóvel chegou a ser alugado por escritórios de advocacia e jornais, entre outras atividades comerciais, até ser completamente abandonado pelos herdeiros do hotel. Situação que perdurou até 2003, quando movimentos de moradia ocuparam o local.

Mas esta primeira ocupação duraria pouco tempo, tendo o poder público decretado a reintegração de posse dois meses depois. Em 2007, porém, após novo abandono e o acúmulo de dívidas milionárias de IPTU, o antigo hotel de seis andares foi reocupado pelos movimentos de moradia. Situação que dura até hoje. Passados 14 anos e muitos episódios de resistência a tentativas de reintegração de posse, a “Mauá” sobrevive.

Entrevistada por CartaCapital, a coordenadora do MMLJ, Ivaneti Araújo, a Neti, aponta o recente aumento da perseguição policial como uma estratégia do poder público para enfraquecer e criminalizar a luta por moradia no centro de São Paulo, favorecendo os interesses do mercado imobiliário.

Confira a entrevista na íntegra:

CartaCapital: Como está a situação da Ocupação Mauá? Formalmente, pertence à Prefeitura?

Neti Araújo: Na gestão do Haddad, foi feita a primeira negociação para a aquisição dos imóveis da Prestes Maia e da Mauá. O da Mauá, a Prefeitura tinha feito o depósito, em juízo, de 11 milhões de reais. O proprietário pedia 25 milhões e foi feito acordo para 18 milhões. Depois que o Haddad saiu, entrou o novo governo, de direita, que, através de uma negociação com a Secretaria de Habitação, negociou e foi feito um depósito de 6 milhões. Ou seja, a Ocupação da Mauá passou ao poder público por 17 milhões de reais. Ela ainda não é nossa por escrito e garantido. Hoje ela pertence à Prefeitura e tem um processo em andamento, para passar a imissão na posse. Tirar do nome do proprietário e passar para a Prefeitura. E, a partir daí, fazer a reforma.

Nós ainda estamos numa luta há alguns anos, inclusive esse processo está suspenso, para manter o atendimento às famílias dentro da Ocupação da Mauá. Anteriormente, o governo municipal queria nos despejar, alegando que tinha um programa chamado Redenção, para a Ocupação Mauá. Nós, então, apresentamos uma contraproposta e um outro programa, que chama PPPop, Parceria Público Popular, em que o movimento já faz um trabalho de manutenção, organização etc.

CC: E a Prefeitura aceitou?

NA: Não. Teoricamente, ainda está em negociação.

CC: Como você enxerga essa perseguição aos movimentos? Essas duas últimas invasões da Polícia à Mauá e à Prestes Maia fazem parte de uma tentativa de enfraquecer a luta dos movimentos de moradia como um todo?

NA: Sem sombra de dúvida. Eles querem chegar até as lideranças e derrubar as lideranças, enfraquecendo e criminalizando os movimentos. Muitas vezes somos vistos como o “lobo mau” da situação. O próprio governo tenta nos criminalizar, dizendo que o movimento não é legal. Só que quem vê a panela vazia, quem vê o morador em situação de rua precisando de moradia, quem vê os seus filhos sem escola, é quem está aqui na base, no barro, é quem pisa todos os dias e pula os esgotos. Então, é muito fácil apontar o dedo para a gente e criminalizar.

Então, essa estratégia de querer criminalizar, derrubar, é porque a gente acaba pegando no calcanhar do governo do estado, por exemplo, mostrando, apresentando a demanda. As famílias necessitadas, os imóveis vazios que devem imposto aos cofres públicos. E isso incomoda o próprio sistema, né? “Você está cutucando e eu não estou a fim de enxergar isso agora”. Então, a gente faz esse tipo de trabalho. Não é fácil, porque a gente acaba ficando “manjado”, popularmente falando, correndo risco de, de repente, estar cruzando uma esquina e ser ‘forjada’. A gente tem claro que isso pode vir pela frente.

Mas é aquilo: enquanto tiver um sem-teto, enquanto tiver pessoas precisando de moradia, enquanto tiver imóveis vazios sem função social e o poder público fazendo vista grossa, nossa luta vai continuar

Eu costumo dizer o seguinte: quer acabar com os movimentos sociais? É super simples. Atendam todas as famílias que têm necessidade e escutem os artigos 5º e 6º da Constituição Federal. Todo cidadão tem direito a moradia. Todos! E se está dizendo todos, nós fazemos parte do todo. Então, que atenda essas famílias, porque aí os movimentos acabam. Atendam na questão da educação de qualidade, saúde de qualidade, não deixem nossos irmãos morrerem nos corredores, sem atendimento, não deixem os nossos filhos sem educação, e atendam o povo, com emprego, com renda, com moradia, porque aí os movimentos não precisam fazer luta. Porque felizmente, ou infelizmente dizendo, o movimento social faz o papel do governo, do poder público, no socorro às questões mais urgentes e na exposição desses problemas. Fazemos o papel do poder público.

Crianças se divertem nos escassos espaços livres da ocupação Prestes Maia (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

CC: Para a luta dos movimentos de moradia, o que significa a extinção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU)?

NA: Pensando como movimento de moradia, e pensando dentro da luta referente ao estado, a CDHU não era um departamento que atendia os movimentos sociais. O diálogo era difícil e escasso. Porém, com as dificuldades, o déficit habitacional e a falta de políticas habitacionais, não seria correto extinguir o órgão. O governo do estado atendia a população apenas em épocas de eleições. Entregava unidades habitacionais para “mostrar o que estava fazendo”, e falta de moradia e déficit habitacional é todos os dias, né?

Não havia uma programação, uma grade de programas, para atender todas as famílias. Era impressionante: toda época de eleição, fosse ela municipal, fosse estadual, tinha a entrega das unidades, as inaugurações etc. Servia sempre para cabide de deputados, governador, prefeito, até vereadores de alguns partidos de direita. Servia apenas para isso, para mostrar serviço.

Mas não fui a favor do extermínio da CDHU, porque a família de baixa renda já tem dificuldades de financiar uma moradia. Ela, sozinha, chegar num banco, para financiar, os juros são muito altos. Então, a gente sabia que era cabide eleitoral, mas acabava atendendo algumas famílias que, de certa forma, necessitavam do atendimento. Então, eu achei um retrocesso para o estado.

Para atender as famílias de baixa renda precisa ter conversa com todos os movimentos populares, com toda organização popular: financiamento, subsídios, para atender todas as famílias que estejam em necessidade de moradia.

CC: Então, a extinção piora o que já não atendia satisfatoriamente?

NA: Exatamente. Se você vai ao hospital com um problema, o médico tenta diagnosticar o problema. Ali, não. Ali, acabou com o paciente, com todo o programa. E aí, o Conselho Estadual de Habitação, que foi todo eleito, não atua, porque a máquina não deixa. A máquina impõe um limite, tipo: “você é conselheiro, pode chegar até aqui. Daqui para cá, não. Com isso, Conselho acaba não atuando, e quando tem algum acesso, é por meio de conselheiros mais à direita. Então, a extinção da CDHU não ajudou; só fez piorar. Já estava ruim, essa é a minha crítica, e ficou ainda pior.

E as extinções, os extermínios, são só para atendimento a famílias de baixa renda. A gente não vê atingir o mercado de trabalho da classe média, média alta; só chega naqueles que moram nas periferias, naqueles em que o barraco “pegou fogo”, nas áreas de mananciais, onde famílias acabam ocupando por necessidade. Divide-se espaço, muitas vezes, com o verde também. E aí, fica aquela falta de interesse de fazer acontecer. E era tão simples. Com os recursos que vêm para o estado, daria para atender muitas famílias na questão da moradia social, com qualidade de vida, eu digo.

CC: E por que não atende?

NA: Falta de interesse. O meu entendimento é o seguinte: “não vou dar acesso a você que é pobre”. Porque sem estudo, sem trabalho, sem moradia, você tem o seu limite. Com estudo, com trabalho e com moradia, existe aquele velho ditado: “quem sabe mais, luta melhor”. Entende? Então, é uma forma de boicotar mesmo. Há uma falta de interesse. É estratégico isso. Eu tenho para mim que isso é estratégico: não atender as pessoas de baixa renda. É só um limite. Você vai buscar um recurso grandão e, no final, atende menos de 1%. É uma loucura.

CC: Pode nos dar um exemplo?

NA: Aqui no centro tem algumas unidades habitacionais, onde, inclusive, a gente mesmo ocupou algumas áreas, reivindicando que atendessem às nossas famílias de baixa renda. Mas foram construídas por meio da PPP da Luz, uma Parceria Público-Privada. Então, vamos supor, é 80% para o privado, e 20%, ou menos, para o público de baixa renda. O que acontece? A pessoa não consegue atingir, não consegue ser atendida. Conheço famílias que foram chamadas e não passaram nem na entrevista. Chegou envelope aqui dizendo que ela estava fora, que nem selecionada foi. E aquelas que foram, que infelizmente precisaram burlar a sua renda familiar, não conseguiram passar. Tinha que dar uma entrada de 8 mil, 9 mil reais, aí, a pessoa recua, porque não tem esse dinheiro.

E dentro da PPP que fica no nosso perímetro existem as ZEIS: Zona de Especial Interesse Social, que obrigam o poder público a priorizar os moradores locais, porque é uma área urbana, consolidada. Mas o que aconteceu? As famílias, mesmo dentro das próprias ZEIS 3, ficaram fora.

CC: O mesmo tem ocorrido com as pessoas que vivem em imóveis das quadras 37 e 38, dentro da chamada Cracolândia?

NA: Sim. Não atendem às pessoas que moram no entorno. As unidades habitacionais na Cracolândia estão tirando as famílias das suas casas, o mínimo de dignidade que a família tem ali, que é um quarto, e divide o banheiro com mais de 20. Aí, o que acontece? Elas estão saindo, não têm nenhuma outra alternativa. O que tinha era um auxílio-moradia por algum tempinho, no valor de 400 reais, apenas para os cadastrados até 2017. E aí, contemplam pessoas de fora para poder morar nas quadras 37 e 38, e não atendem as pessoas que moram ali. É um absurdo isso. Aumenta o déficit habitacional, não atende a necessidade da família, aumenta a população em situação de rua e a gente fica de mãos atadas.

CC: Poderia falar mais sobre a situação da Cracolândia?

NA: Deixa eu te explicar o que acontece. Existe aqui a Cracolândia, e existe um “quadrilátero”. Há uns anos, o governo do estado cogitou trazer para a quadra 36 um hospital, o Pérola Byington e, com isso, tirar todas as moradias, “higienizar” o “quadrilátero”. Até hoje o hospital não está pronto, mas as famílias e comerciantes da quadra 36 já foram despejados.

O próprio nome Cracolândia foi posto para os grandes empresários. O que acontece? Você diminui a área o máximo possível para comprar a área a preço de banana. Não valoriza, depois coloca lá uma coisa gigante. No caso daqui, tem uma empresa grande, chamada Porto Seguro, que comprou quase todo o “quadrilátero”… só que, assim… tudo bem, quer trazer hospital para cá, perfeito. Quer trazer o Cratod para atender pessoas em drogadição? Está perfeito. Mas não expulsando as pessoas. Não tirando as pessoas de suas moradias, dos cortiços, sem dar oportunidade, alternativa para elas serem inseridas em unidades habitacionais construídas no local. As pessoas, as famílias, têm sua vida ali. Os filhos estudam ali. Não precisa de ônibus, porque é centro. A mãe leva o filho para a creche, volta no horário de almoço, pega o filho e leva para a escola; sai do trabalho, passa na escola e leva para casa. Então, eles estão tirando o direito do trabalhador, o direito de ir e vir das pessoas de baixa renda.

Ou seja, essa proposta de “higienizar”, de desfavorecer o “quadrilátero”, desfavorecer a Cracolândia, é para poder atender às grandes empreiteiras de construção. Essa é a realidade. Tem unidades habitacionais aqui que a mensalidade é de 800 reais, 900 reais, mil reais; e, muitas vezes, mil reais, mais água, luz e condomínio. Quando um trabalhador de baixa renda consegue pagar isso? E não são pessoas de ocupação. São pessoas de cortiço, que pagam seu aluguel, dividem o banheiro, pagam luz e água por cabeça. Se tem cinco pessoas num quarto, essas cinco pessoas pagam água e luz. Se a mulher está grávida, ela já começa a pagar por dois, porque tem que lavar a roupa do bebê etc.

CC: E tem como acabar com a chamada Cracolândia?

NA: A gente vê aqui quase todos os dias como eles querem acabar com a Cracolândia. Vêm para o perímetro fazer higienização com caminhão de água; jogam jato de água nas pessoas, jogam bomba de gás lacrimogêneo, tiram os pertences das pessoas que moram e dependem daquele espaço ali, porque não têm para onde ir, e espalham todos os moradores em situação de rua, os dependentes, os usuários; acabam espalhando e a cidade vai formando pequenos focos de pessoas dependentes da droga e do álcool.

Para acabar com a Cracolândia não é compulsoriamente, não é dessa forma; não é com gás, não é com bomba. Seria preciso um grupo de especialistas, tanto na área da saúde: psicologia, psiquiatria, moradia. Primeiro seria precisoouvi-los e depois, a partir daí, ver como poderia fazer, como é que poderia ser o trabalho. Não dessa forma. Não tratando o povo feito cachorro ou como um zero à esquerda, como um zero antes da vírgula.

CC: O que você diria ao João Doria sobre acabar com a Cracolândia, já que ele prometeu isso em 2017, quando ainda era prefeito?

NA: O que eu diria para ele é o seguinte: para você acabar, primeiramente você tem que sentir. É como se fosse um médico. Você vai ao médico, o médico vai perguntar o que o paciente está sentindo, para poder diagnosticar e medicar. É a mesma coisa com a Cracolândia. Se o Doria quer acabar, ele que vá a campo, que vá ouvir. Porque a partir do momento em que ele ouvir o que acontece, quais são as vontades das pessoas em situação de rua, dos dependentes de álcool e drogas, a partir daí ele vai saber onde e como resgatar essas pessoas. Não é matando, não é jogando bomba nem água. Às vezes fazendo um frio imenso, porque São Paulo, além de garoar bastante, faz frio, e tomam coberta, jogam água nas pessoas. Não é esse trabalho desumano e compulsório que as pessoas precisam. É fazendo a escuta, ouvindo bastante e, a partir daí, juntar uma equipe de acordo com as necessidades daqueles, com o objetivo de ajudá-los, de resgatá-los.

Deixa eu passar uma experiência para você, que eu vivi. De 2011 a 2015, fui conselheira tutelar do direito da criança e do adolescente, numa região também complicada de São Paulo, que é a região da Sé, onde vêm bastante adolescentes, que saem de outras regiões e ‘caem’ na Sé. E eu, fazendo um trabalho, um adolescente virou para mim e falou: “tia, eu quero sair da rua agora”. Eu conversava muito com esse adolescente, aí, um dia, ele chegou para mim e falou: “tia, eu não aguento mais. Eu quero sair agora! Agora!”; e eu fui a campo, procurei, procurei local, uma especialidade; eu falei: “ele quer sair agora. O que eu faço?”, e onde eu batia, não tinha vaga.

CC: Onde, por exemplo?

NA: Eu não vou falar por questão de ética, entendeu? Só estou passando… mas em todos os lugares que eu batia, que eu ligava à procura de vaga, lugares que recebem crianças e adolescentes em busca de recuperação, eu não conseguia: “não tem vaga”, “não tem vaga”, “não tem vaga”. Aí, chegou um momento em que eu cheguei numa outra especialidade e falei: “poxa! Ele está aqui, esperando uma vaga, o que eu faço?”. Aí, viraram para mim e falaram: “olha, manda um relatório para o Ministério Público, dizendo que você está procurando, que não tem a vaga; você se assegura que não foi negligente diante do seu trabalho e aguarda”. Ou seja, eu aliviaria a minha situação no momento em que eu ia explicar ao Ministério Público que eu estava procurando a vaga e não tinha naquele momento. Mas aquele adolescente ia continuar na rua, entende? Ele ia continuar. Ele foi em busca daquele momento, e aquele momento eu não tinha.

Então, não adianta nada você ter um grupo de pessoas para poder até mesmo fazer escuta e ouvir, e o próprio poder público acaba não agindo e não fazendo políticas públicas voltadas para essa questão. Tá certo? Então, tinha que ter vários lugares para poder receber pessoas em situação de rua, com problema de drogadição; um especialista que não só dedica o seu profissionalismo, mas que dedica o seu amor, o companheirismo, a paciência, porque é necessário; precisa ter bastante.

CC: Como é a negociação com os donos dos cortiços?

NA: Com a desapropriação, os donos recebem uma pequena indenização, que muitas vezes não é aquilo que eles queriam. Então, o que nós fizemos? Através de uma luta, com a ajuda do Ministério Público e da Defensoria Pública, montamos um Conselho Gestor de ZEIS, composto por moradores, lideranças de movimentos que moram e atuam no entorno, no caso eu e outras lideranças, além de comerciantes que dependem, ou do seu bar, do seu buteco, do seu hotel, para viver o dia-a-dia.

CC: E a relação dos movimentos de moradia com os donos dos cortiços, das pensões, como é?

NA: É desgastante a relação. Eles se sentem diferentes, se sentem superiores, até mesmo os que dependem do espaço para morar. O aluguel, água e luz, são cobrados por cabeça, super abusivo. Além de pagar o aluguel, tem que pagar água, luz, o que é um horror. E um quartinho ali é 600, 700, 800 reais, para morar com coletivo, dividir banheiro. É uma loucura.

Tem momentos em que alguns deles, não são todos, mas alguns deles fazem barganha. Eles dizem: “o meu imóvel vale mais. A Prefeitura quer pagar X, mas vale Y”. Aí vão em busca de resolver seu problema financeiro, seu problema comercial. O problema das famílias é outro: é querer morar em paz, com tranquilidade, é o básico.

CC: Em relação aos despejos, como está a situação?

NA: A quadra 36, do Hospital Pérola Byington, foi totalmente desocupada em 2018 pelo governo do estado. Referente à Cracolândia, tem uma ação circulando. No último dia 18, a Justiça autorizou a Prefeitura a demolir as quadras 37 e 38. Estão pedindo a remoção do povo, das pessoas. Antes dessa decisão do dia 18, houve até uma ameaça do poder Judiciário ao poder público, tipo: “ou vocês entram e atendem o deferimento ou vamos ter que abrir uma espécie de representação, multa… enfim, criminalizar o próprio poder público. Por outro lado, o poder público pressiona para sair e a gente fica nessa luta.

Agora a gente tem que se articular novamente, buscar forças, porque o pessoal não tem para onde ir, principalmente em época de pandemia. Então, temos de juntar os conselheiros e buscar ajuda, no Ministério Público, na Defensoria Pública, onde for possível.

CC: Como funciona a articulação entre os movimentos de moradia?

NA: A Frente de Luta por Moradia (FLM) atua de forma semelhante à União dos Movimentos de Moradia UMM). Dentro da Frente, a Frente é chamada entidade-mãe; e dentro dessa entidade-mãe são mais de 30 entidades. Essas entidades atuam na periferia, no centro, em todas as regiões da cidade. No sul, norte, leste, oeste, centro, todo o centro expandido, ela atua. Cada região tem o seus movimentos e a sua bandeira. A gente tem as reuniões de articulação, assim como a própria União dos Movimentos de Moradia tem as suas reuniões de articulação com os outros movimentos, analisando a conjuntura do momento e a melhor forma de proceder. E aí, com falta de saúde, falta de atendimento, todas as entidades que lutam se unem, não somente por moradia, mas também por geração de emprego e renda, por melhor saúde, por uma educação de qualidade, sem violar o direito da criança e do adolescente, por creche, por espaços de desenvolvimento para a criança e o adolescente. Então, é nessa frente que a gente se reúne. E cada um, dando um giro nas regiões, acaba identificando as necessidades.

Quando é algo específico de um movimento, a luta é feita com atos, manifestações, acampamentos e, havendo a necessidade, até ocupação de imóvel vazio sem função social da propriedade, para pressionar o governo a atender determinada demanda. Por exemplo, alguma ordem de despejo.

A União dos Movimentos de Moradia é a mesma coisa. E aí, quando há uma necessidade de uma força maior, reúne toda a União dos Movimentos de Moradia, toda a Frente de Luta por Moradia, toda a Central de Movimentos Populares. Reúne todo esse povo que é filiado a essas entidades e, então, a gente faz uma só luta, reivindicando aquela pauta que, no final das contas, é única. Um exemplo é a luta pelo retorno da CDHU. Se a gente decide retomar a discussão popular sobre a CDHU, faz-se um ato, uma manifestação, ou até mesmo uma ocupação, para poder pressionar o governo e mostrar que existe aquela demanda.

CC: Como é o dia-a-dia nas ocupações?

NA: Quando a gente ocupa o imóvel, a gente dá vida também não só para aqueles que precisam de um teto, a gente dá vida para o próprio imóvel, que é considerado muitas vezes algo sem utilidade, um elefante branco ou um elefante cinza, no meio do nada. Quando a gente ocupa, a gente tem uma coordenação por andar, assembleias que discutem tudo. Na Ocupação Mauá a gente tem uma brinquedoteca, biblioteca, tem aulas de capoeira, tem “sessão pipoca”, tem vários voluntários que fazem trabalhos nas “ocupas”. A gente vai formando e passando a deixar aquela pessoa entender o que está fazendo ali, politizando, conscientizando.

Na Mauá, temos uma organização que é dos movimentos que ocupam a Mauá e também é dos andares. Tudo que hoje tem dentro da ocupação é discutido e decidido em assembleias. A gente leva propostas, discute, e a proposta escolhida é encaminhada. Em relação à estrutura, os próprios moradores trabalham na manutenção. Tem porteiros, tem pessoas que limpam os andares, temos um mini-mercadinho lá dentro, cabeleireiro.

CC: Como você enxerga essa invisibilidade dos movimentos de moradia em relação ao poder público?

NA: Isso acaba nos deixando mais fortes. Porque cada vez mais que a pessoa não te enxerga, mais você vai fazer de tudo para que ela te veja. Vamos supor: nós estamos numa festa e você faz de tudo para aquela amiga te ver, e a amiga te ignora. Quando ela vê, você fala: “nossa, você veio me ver agora”? Nós também somos assim. “Ah, não quer enxergar”? Aí é que a gente parte para a luta. E quando a gente parte para a luta eles falam: “nossa, mas o estado, ou o município, sempre esteve à disposição, de porta aberta, para ouvir vocês”. Só que não é assim, né? Não é desta forma. É através da luta. Sem luta não tem vitória. Eu carrego aquele ditado comigo: “quem não luta, tá morto”. É forte, mas é verdade. A gente tem que fazer luta constante. Tem que lutar. “Quem não luta, tá morto” e a pior luta é aquela que não se faz. Então, a gente tem que estar sempre em luta. Enquanto houver um sem-teto, a luta vai continuar.

CC: Poderia falar sobre a participação dos movimentos nos Conselhos participativos?

NA: Nós, através tanto da União (UMM) como da Frente de Luta (FLM), ou de outros movimentos maiores, dos movimentos-mães, disputamos um espaço dentro do próprio governo, através dos Conselhos participativos, Conselho Municipal de Habitação, para discutir tudo.

O novo secretário Municipal está chamando os conselheiros para conversar individualmente, e os conselheiros decidiram o seguinte: ou fala com todo mundo ou não fala com ninguém. Porque é uma estratégia de desmontar, de tentar desmotivar o movimento. Então, essa é uma forma de a gente fazer uma luta e dizer o seguinte: nós não vamos aceitar. Ou fala com todos ou não fala com ninguém.

CC: E você coordena quantas ocupações?

NA: Eu cuido de três ocupações. Eu cuido da Mauá, que é na estação da Luz; cuido da Prestes Maia, que existe desde 2010. Então, já tem aí dez anos, vai para onze anos; e cuido de uma ocupação que já tem dois anos e meio, vai para três anos, que é da Ipiranga, da avenida. Mais trabalhos de base e tenho um trabalho social também no interior. E lá é diferente. Como são bóias-frias, trabalham na roça, são pessoas que precisam de apoio para alimento, remédio; Então, a gente está sempre à disposição, alguns voluntários também.

CC: São sem-teto?

NA: Eles são filiadas ao nosso Movimento, mas é aquilo que eu disse: o Movimento não tem só o olhar para a questão da moradia. Atende o todo. E nessa questão, as famílias, algumas têm à sua que conquistaram com muita luta, trabalhando em roça, bem sofrido. E eu sei bem o que é isso, porque trabalhei em roça também. Então, ela conquistou a casa, com essas lutas, e muitas vezes falta o arroz dentro de casa, falta o básico. Então, a gente vai, faz uma fala. O trabalho social no interior não é diferente do da capital. Quer dizer, é pior até. Porque destrata as pessoas. Chega até a humilhar as pessoas. Então, a gente acaba atendendo essas famílias com o básico. Um leite, uma fralda, assim por diante.

CC: Entre as atividades, quais estariam, além da habitação?

NA: As culturais, que atendem crianças e adolescentes, moradia, educação; nós conquistamos, com apoios, a gente indicou pessoas nossas, da nossa luta, para o Conselho Tutelar do Direito da Criança e do Adolescente. A gente tem que ocupar todos os espaços, isso é muito importante, disputar todos os espaços e reivindicar o que é de direito em cada um deles.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo