Sociedade

Cerca de 400 famílias que moram no centro de SP podem ficar sem teto

Em plena pandemia, a Justiça de São Paulo atende Prefeitura e autoriza demolição de casas, pensões e lojas na região da Cracolândia

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Há quatro anos, a Prefeitura de São Paulo vem tentando desapropriar quarenta imóveis localizados nas quadras 37 e 38 da região que ficou conhecida como Cracolândia, no centro da capital. Desde o fim de 2020, uma decisão judicial impedia demolições na área. No último dia 18 de fevereiro, entretanto, a decisão foi revertida, desrespeitando, inclusive, o entendimento do Tribunal de Justiça de SP que proíbe remoções no período de pandemia.

O projeto previsto para as quadras 37 e 38 faz parte da “PPP da Luz”, que constrói prédios de habitação e pontos comerciais financiados a valores que os atuais moradores e comerciantes do local não podem pagar.

Além disso, ao contrário do que aconteceu os antigos moradores da quadra vizinha 36, demolida em 2018 para o início das obras do Hospital Pérola Byington, muitos moradores e comerciantes das quadras 37 e 38 correm o risco de não receber nenhum auxílio ou atendimento por parte do poder público. É o que explica Renato Santos, integrante do Observatório de Remoções e do Conselho Gestor que atua junto ao poder público em defesa destes moradores e comerciantes.

“Para a quadra do hospital, houve a negociação de uma carta de crédito. Muitos, é verdade, não conseguiram se enquadrar nos critérios. Mas para as duas quadras ameaçadas agora não está sendo oferecido sequer isso. A Prefeitura oferece um auxílio-aluguel, e somente para as cerca de 290 famílias cadastradas em 2017. As outras 110, que não foram cadastradas porque chegaram depois, não vão receber nem auxílio-aluguel”, conta.

E questiona: “Estamos em pandemia. Então, as pessoas vão perder o lugar onde moram, no meio da pandemia, e não vão receber nada em contrapartida?”

Em relação à quadra 36, ele ressalta que, apesar de o processo de remoção e demolição ter sido concluído em 2018, o governo demorou quase um ano para começar a obra, o que gerou mais gastos.

“Houve uma pressa, uma urgência para remover as pessoas e depois ficou um grande terreno vazio, sem nada construído. Quase um ano depois é que começou. Ou seja, as pessoas que perderam suas casas poderiam ainda estar morando lá nesse período. O poder público gastou dinheiro com auxílio-aluguel durante quase um ano. Um recurso que poderia ter sido economizado. Foi um processo bem violento, tocado às pressas, muito mal negociado e mal informado, E até hoje a construção do hospital não foi concluída”, lembra.

De acordo com o próprio site da Prefeitura, os apartamentos da ‘PPP da Luz’ “atendem famílias ou indivíduos com renda mensal bruta entre R$ 1.108,38 e R$ 5.7240,00”. Renato critica a falta de um programa habitacional para cidadãos que possuem renda abaixo dessa faixa.

“Não existe hoje nenhuma política pública de habitação voltada às pessoas de baixa renda. Acabou o Minha Casa, Minha Vida. Do governo do estado, temos a PPP, que, na prática, não atende às demandas, por exemplo, de faixa de renda de 0 a 1 salário. Não contempla pessoas em situação informal, sem renda fixa, que é, justamente, a realidade da maioria das pessoas ameaçadas de expulsão para a construção dessas torres habitacionais nas quadras 37 e 38.”

No município de São Paulo, diz, a única ‘política habitacional’ é o auxílio-aluguel de 400 reais, pago por um ano. “Podendo renovar, mas que muitas vezes não renova”. Ele acrescenta que, no final das contas, os 400 reais oferecido aos cadastrados em 2017 não considera os vínculos territoriais das pessoas ameaçadas de remoção, funcionando mais como um fator de exclusão do que de inclusão.

“Se essas pessoas saírem com 400 reais, não vão conseguir alugar nada no centro. Terão de ir para áreas muito mais distantes. Então, no fundo, a política de auxílio-aluguel municipal expulsa as classes populares do centro, porque com 400 reais ninguém arranja outro lugar para morar ali”.

Promessas vagas

Apesar das evidências de que as unidades habitacionais previstas não são acessíveis financeiramente aos que vivem atualmente nas quadras 37 e 38, a Prefeitura de São Paulo insiste em afirmar, em ofício do dia 16 de junho de 2020, que “ao seu término, a ‘PPP da Luz’ melhorará a vida dos munícipes paulistanos que habitam” a área, “diminuindo o déficit habitacional de São Paulo”.

Renato rebate: “A Prefeitura afirma que essas pessoas vão receber moradia definitiva dentro da PPP, mas já faz anos que questionamos, que pedimos a comprovação formal disso, com cálculos, orçamentos, e nada. Sabemos que o modelo da PPP não atende ao perfil dessas pessoas que estão sendo removidas. Falta comprovação de renda, às vezes não tem carteira assinada, enfim, não é o tipo de perfil de trabalhador que pode se comprometer com financiamento de casa própria nos termos oferecidos”, diz.

Apesar da cobrança por garantias, a Prefeitura segue sem especificar como pretende contemplar os moradores e comerciantes das quadras 37 e 38. “A Prefeitura não passa os números e não dá garantia. Apenas faz essa promessa vaga, de que vão ser atendidos definitivamente. Ninguém sabe como e nem quando, apesar dos muitos questionamentos”.

Região diversa

Sobre as pessoas ameaçadas de despejo, Renato lembra que são muito diferentes os perfis dos moradores que acham no centro uma maneira de driblar o mercado imobiliário formal, inacessível para quem não tem como conseguir um fiador ou outras exigências das imobiliárias, como emprego fixo.

“Tem desde as pensões diárias, até pensões com pessoas que moram há trinta anos no mesmo lugar. Não é homogêneo; tem a questão dos usuários da Cracolândia, mas é uma região muito diversa. Na prática, todos estão sendo expulsos”.

O pesquisador ressalta ainda que o fato de os cidadãos atingidos, em sua maioria, não serem donos dos imóveis onde vivem eleva o nível de incerteza quanto às remoções, uma vez que as negociações são feitas diretamente com os proprietários. “Se o proprietário, em algum determinado momento, chegar a uma negociação do seu agrado, apenas dará o aviso. E às vezes, a exemplo do que já aconteceu, as pessoas serão avisadas do dia para a noite”, relata.

Reação a remoções começou em 2017

Em maio de 2017, poucos dias após o então prefeito de São Paulo, e atual governador, João Doria, dizer que a Cracolândia tinha “prazo determinado para acabar”, sua gestão começou a demolir prédios nas quadras 37 e 38, alguns inclusive com pessoas dentro.

A violenta ação gerou a reação dos movimentos de moradia do centro e de entidades da sociedade civil, que prontamente se organizaram para apontar as ilegalidades do processo.

“Acontece que todas essas quadras são demarcadas como ‘ZEIS 3’, Zona Especial de Interesse Social; ‘3’ porque está numa área consolidada da cidade. Não é uma região de preservação ambiental, de manancial, nem de favela. É uma região no centro. E, segundo o Plano Diretor, qualquer intervenção numa ‘ZEIS 3’ precisa ser discutida e aprovada por um Conselho Gestor, que por sua vez precisa ser eleito de forma paritária: ou seja, metade é do poder público, metade é de representantes da sociedade civil”, destaca Renato.

A partir disso, conta Renato, Defensoria Pública e Ministério Público intercederam para paralisar as ações de demolição e determinar a instalação do Conselho Gestor. “Foram eleitos representantes dos moradores, comerciantes e proprietários, mas também integrantes de movimentos de moradia e pesquisadores, como eu”.

Projeto alternativo

Em paralelo à instalação do Conselho Gestor das quadras 37 e 38, também foi criado, em 2017, o Fórum Aberto Mundaréu da Luz, frente de reação às ações violentas e autoritárias do poder público na região. O objetivo do Fórum, de acordo com o próprio site, é propor alternativas a partir do diálogo com os moradores e comerciantes, garantindo mais qualidade de vida à população. O Fórum é formado por instituições, grupos de pesquisa, coletivos e população que vive na região da Luz e entorno.

Também membro do Fórum, Renato Santos destaca que foi apresentado à Prefeitura um projeto alternativo para a Cracolândia, ‘o Campos Elíseos Vivo’, “sem remoção e demolição”, mas que a gestão municipal ignorou a proposta.

De acordo com o site do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, o projeto foi elaborado por instituições e profissionais das mais variadas áreas, como urbanismo, saúde, direito, cultura e serviço social. Resultado de uma série de debates realizados junto com a população, o ‘Campos Elíseos Vivo’ sugere a construção de 3.500 unidades habitacionais ou comerciais, utilizando apenas imóveis vazios e subutilizados do bairro, sem a necessidade de demolição de prédios históricos ou de remoção da população local.

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