Saúde

‘Não decreto vitória sobre a pandemia de jeito nenhum’, diz Miguel Nicolelis

A CartaCapital, o médico e neurocientista pede cautela com ‘ufanismo’ e critica reabertura irrestrita: ‘Vi o que aconteceu em outros países’

O médico e neurocientista Miguel Nicolelis. Foto: Divulgação
Apoie Siga-nos no

O Brasil chegou nesta sexta-feira 8 a mais uma desoladora marca na pandemia: a de 600 mil mortes oficialmente registradas por Covid-19. A subnotificação de óbitos, no entanto, indica que essa triste barreira se rompeu há muito tempo, como explica o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.

“Existe uma clara subnotificação, tem gente estimando em 20% e 30%. O Brasil já perdeu próximo de 800 mil vidas”, calcula.

Em entrevista a CartaCapital, ele analisa os principais fatores que conduziram o País a esta tragédia, alerta para os riscos de um prematuro processo de reabertura e de normalização das atividades e projeta a próxima fase da crise sanitária.

“O índice de transmissão da variante Delta é alto e não existe nenhuma demonstração científica de que a imunidade adquirida por quem teve a variante Gama, por exemplo, possa conferir uma imunidade permanente ou de longo prazo à variante Delta.”

De acordo com o mais recente boletim do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, divulgado na quinta-feira, a média móvel de mortes por Covid no Brasil é de 437. A de novos casos, 15.069. Segundo o consórcio de veículos de imprensa que acompanha os dados da pandemia, 45,57% da população brasileira recebeu as duas doses ou a dose única de um imunizante.

Eis o caminho do País até a marca de 600 mil mortes:

  • 26 de fevereiro de 2020: o 1º caso registrado, em São Paulo;
  • 17 de março de 2020: a 1ª morte anunciada, em São Paulo;
  • 9 de maio de 2020: País chega a 10 mil mortes;
  • 8 de agosto de 2020: 100 mil mortes;
  • 7 de janeiro de 2021: 200 mil mortes;
  • 24 de março de 2021: 300 mil mortes;
  • 29 de abril de 2021: 400 mil mortes;
  • 19 de junho de 2021: 500 mil mortes.

Entre a 1ª morte e o registro de 100 mil óbitos, passaram-se 149 dias; entre 100 mil e 200 mil, 152 dias; entre 200 mil e 300 mil, 76 dias; entre 300 mil e 400 mil, 36 dias; entre 400 mil e 500 mil, 51 dias; e entre 500 mil e 600 mil, 112 dias.

Confira a seguir.

CartaCapital: 600 mil mortes. O que nos trouxe até aqui?

Miguel Nicolelis: Provavelmente, a nossa perda é bem maior que 600 mil, já. Existe uma clara subnotificação, tem gente estimando em 20% e 30%. O Brasil já perdeu próximo de 800 mil vidas. O Brasil teve um dos piores manejos da pandemia em todo o mundo. É só olhar todos os nossos indicadores: desde o início da pandemia, a escrita estava na parede, como a gente diz nos Estados Unidos.

Quando eu percebi que o governo federal não tinha nenhum interesse em criar uma mensagem, uma política de comunicação para esclarecer a população sobre a gravidade do que estava por chegar ao Brasil, eu já me dei conta de que a situação seria extremamente trágica aqui.

Há a falta de um comitê científico federal, independente, capaz de reunir os especialistas brasileiros na área para fazer recomendações de como combater a pandemia. Temos pessoas de alta competência e renome internacional na área, que poderiam ter ajudado o Brasil a estabelecer uma estratégia coordenada, multidimensional, tanto para os estados quanto para os municípios, tirando vantagem da existência do SUS. Na falta disso, ficou evidente, já em março do ano passado, que teríamos a maior tragédia humanitária do País. E, infelizmente, ficou muito claro que os políticos brasileiros não estão preparados para esse tipo de desafio do século XXI. O diálogo da ciência com a classe política foi muito difícil.

Aqui em São Paulo, com a expectativa de uma 3ª onda por causa da variante Delta, o comitê científico foi debandado pelo governador. Por todo o Brasil, depois da eleição [de 2020] simplesmente a maioria dos gestores deixou de seguir as recomendações corretas.

Nosso balanço é trágico e explicita duas vertentes debatidas no mundo inteiro: os sistemas de saúde pública em todos os países precisam ser reforçados, ampliados e contar com todo o apoio do Estado e da sociedade, porque eles são a única barreira contra eventos como essa pandemia. No mundo inteiro, o movimento está sendo de apoiar e reforçar o investimento público nos sistemas de saúde públicos. E a segunda é o questionamento da forma tradicional de fazer política, porque os problemas do século XXI vão requisitar uma mentalidade completamente diferente.

Aqui só se pensa nos calendários eleitorais, na disputa pelo poder, quando na realidade temos agora um problema que vai requerer uma governança global.

Os EUA chegaram a vacinar 4 milhões de pessoas em um dia. A liberação das máscaras e o clima de ‘já ganhou’ jogaram o país no abismo de novo

CC: Como o senhor avalia o atual estágio da pandemia no Brasil? É prematuro dizer que a variante Delta não terá um impacto devastador?

MN: É extremamente prematuro. É como comentarista de futebol que diz que o time que ganhou o último jogo da rodada é o melhor do Brasil. Os Estados Unidos cantaram vitória em maio, o presidente disse que seria ‘o verão da alegria’, porque eles estavam em média com menos de 12 mil casos e 200 mortes. Final de junho, começo de julho, a variante Delta explodiu. É totalmente prematuro. Não temos prova nenhuma de que a variante Delta é menos letal ou menos transmissível na América do Sul.

Nos Estados Unidos, quando a Delta explodiu, 52% da população tinha as duas doses. Na Inglaterra, mais de 65%. Torço para que seja verdade, espero que exista algum fator biológico, alguma interação que a gente desconheça, que faça o Brasil ser o único país a não ter problemas com a variante Delta, mas acredito que esse ufanismo, pelo menos do ponto de vista científico, não é justificado. A ciência sempre é cética em relação a fenômenos que não batem com exemplos similares em condições semelhantes. O Brasil tem um nível de vacinação baixo, caiu o crescimento do número de vacinas, temos uma cobertura ainda insuficiente comparada com outros países.

Eu acho que essa pandemia vai eventualmente acabar, ou pelo menos o vírus atingirá níveis mais baixos. Mas não me arrisco a cravar o fim

O índice de transmissão da variante é alto e não existe nenhuma demonstração científica de que a imunidade adquirida por quem teve a variante Gama, por exemplo, possa conferir uma imunidade permanente ou de longo prazo à variante Delta.

As pessoas estão cansadas, consigo entender, querem ver a luz no fim do túnel. Mas eu não compactuo. Não tenho problema nenhum, mesmo que seja a única voz a não compactuar, porque já vi isso acontecer em outros países.

CC: A baixa resistência a vacinas na comparação com países como os Estados Unidos pode jogar a favor do Brasil?

MN: Pode, se a gente já tivesse atingido um nível de vacinação mais alto. A nossa vantagem é que nós temos uma vacinação mais homogênea. A média nacional é homogênea. Nos EUA, eles tinham bolsões com índices de vacinação muito discrepantes.

Claro que ajuda a longo prazo, porque mais de 90% da população brasileira aceita a vacina, mas a questão aqui não é o índice de aceitação, é a velocidade com a qual você consegue vacinar integralmente a população. Poderíamos estar com mais de 60%, 70% já, se o governo federal tivesse tirado vantagem da grande experiência do SUS em campanhas de vacinação e agido com competência para comprar as vacinas em setembro ou outubro do ano passado. Mas não fez isso.

A menos que exista um fator desconhecido influenciando a dinâmica da Delta… A primeira hipótese que a gente testou no México era que a Gama pudesse competir com a Delta e impedir sua proliferação, mas foi por terra abaixo no México e no Brasil. Só que fazemos um sequenciamento muito baixo, ridículo, mesmo para nossa infraestrutura, que poderia sequenciar muito mais. O estado de São Paulo testa 600 amostras por semana. Mas nessas 600 amostras a Delta ganhou, como ganhou no México.

A América do Sul, neste instante, pode não ser a maior contribuinte, mas isso não quer dizer que esse quadro não possa, infelizmente, ser revertido. Os Estados Unidos deixaram de ser os maiores contribuintes de maio a junho, mas, de repente, são os responsáveis pela maior mortalidade do mundo neste momento. Essas análises pontuais em que você pega um retrato de um momento e usa como se fosse a definição da dinâmica completa da pandemia não fazem o menor sentido. A pandemia é dinâmica.

CC: É possível projetar os próximos meses? Há como cravar o fim da pandemia?

MN: Ao contrário da 2ª onda, em que o País sincronizou e a onda explodiu simultaneamente por causa das campanhas eleitorais e das aberturas prematuras, podemos ter uma situação como a dos EUA, em que algumas regiões do País estarão bem melhores que outras. Porque temos estados em que as vacinas não atingiram um nível semelhante à média nacional.

Todas as pandemias têm um fim, é óbvio, a história das pandemias mostra isso. Algumas levam mais tempo que outras. Eu acho que essa pandemia vai eventualmente acabar, ou pelo menos o vírus atingirá níveis mais baixos. Mas não me arrisco a cravar o fim.

Já me arrisquei bastante em fazer previsões que até o momento foram confirmadas porque eu tinha uma segurança clara nos modelos que estava usando. Eram interações lineares. Quando falei, em janeiro deste ano, que teríamos 3 mil mortes em março e 500 mil mortes no total até o meio do ano, eu estava bem seguro desses números. E, neste instante, eu não tenho essa segurança. Não sei quem tem essa segurança.

Não vejo gente que realmente considero extremamente competente em modelagem matemática e análise da dinâmica desses dados cravar nada. Está todo mundo em suspense, porque a gente não sabe direito. Você está falando da interação de múltiplas variantes, da interação com vacinas e das aberturas irrestritas.

Saiu uma matéria de capa no Guardian: 37% das pessoas que tiveram Covid no Reino Unido têm complicações crônicas. É uma coisa impressionante. Eu falo desde o começo da pandemia: esse é um vírus para não ter, porque você não sabe o que ele vai fazer com você, ninguém sabe. Essa fúria por voltar aos estádios, por fazer shows, por fazer festa… Onde isso foi feito prematuramente, até em lugares como Israel, houve consequências deletérias.

E essa proposta de acabar com as máscaras não faz o menor sentido. É a mesma coisa que o Centro de Controle de Doenças fez nos EUA. Naquele dia, eu dei uma entrevista para um veículo americano e um brasileiro dizendo que era a decisão mais absurda do CDC que eu vi em 30 anos morando nos EUA. Não deu outra. Explodiu tudo de novo – e olha que os EUA chegaram a vacinar 4 milhões de pessoas em um dia. A liberação das máscaras e o clima de ‘já ganhou’ jogaram o país no abismo de novo. Tanto que a popularidade de Joe Biden despencou.

Eu posso ser a única pessoa a falar isso: eu não decretaria a vitória agora de jeito nenhum.

CC: Todos os brasileiros deverão receber 3ª dose de vacinas?

MN: Acho que sim. Eventualmente vamos. Tem gente dizendo que esse vírus será como o da Influenza, que todo ano quem for acima de uma certa idade terá de tomar um reforço. O fato de o Brasil ter uma aceitação muito alta a vacinas, a longo prazo, evidentemente joga a nosso favor, na comparação com países como os EUA.

Todavia, veja como a Nova Zelândia se saiu bem. Nem está com a vacinação tão grande quanto a nossa, mas a política da primeira-ministra foi eliminar o vírus. E a gente pode dizer que, 18 ou 19 meses depois, ela pode vir a público e falar que deu certo. Porque quando tinha um caso em Auckland ela fechava a cidade e rastreava os casos.

É uma ilha, uma população bem menor, mas e o Vietnã, com 100 milhões de habitantes? Pobre, país pobre, muito mais pobre que nós. Como eles passaram de modo sensacional pela 1ª e pela 2ª ondas? Investiram em lockdown, em isolamento, no Estado ajudar as pessoas, as pessoas receberam auxílio financeiro, comida. O Vietnã entendeu que você só ganha essa guerra se agir de maneira coletiva. Não adianta cada um atirar para um lado, como aqui no Brasil.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo