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Montanhas movidas

Júlio Lancellotti celebra o plano do governo Lula para investir quase 1 bilhão de reais em políticas para a população em situação de rua

Imagem: Renato Luiz Ferreira
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Há tempos o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, sofre com o assédio de políticos reacionários, que mal conseguem disfarçar a repulsa aos desvalidos amparados pelo líder religioso. Depois do deputado estadual Arthur do Val, cassado em 2022 após ser flagrado, em áudio, dizendo que as refugiadas ucranianas “eram fáceis porque eram pobres”, foi a vez do vereador bolsonarista Rubinho Nunes chamar Lancellotti de “cafetão da miséria” e propor uma CPI para investigá-lo.

Indiferente aos ataques rasteiros, o padre prossegue com seu trabalho social e conquistou duas importantes vitórias neste ano. Primeiro, a regulamentação da Lei 14.489/2022, idealizada por ele, que proíbe a arquitetura hostil contra ­pessoas em situação de rua. Logo depois, o lançamento, pelo governo federal, do “Plano Ruas Visíveis”, a prever 982 milhões de reais em investimentos até 2026. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: O vereador bolsonarista Rubinho Nunes tenta emplacar uma CPI para investigar a sua atuação. O que está por trás dessa iniciativa?
Júlio Lancellotti: Essa pergunta deveria ser feita ao vereador. Não sei quais são os interesses dele, não o conheço pessoalmente. Primeiro, uma frente parlamentar requisitou a minha presença para prestar esclarecimentos, mas essa comissão não tem poder de fazer convocação, foi só um convite. Já a CPI tem esse poder, mas precisa estar instalada. Quando estiver funcionando, os vereadores têm o direito de me convocar. É um instrumento democrático previsto em lei. Uma vez convocado, irei à Câmara falar sobre as ações que desenvolvo com a população de rua.

CC: Recentemente, outro autointitulado “cidadão de bem” foi acusado pela Polícia Federal de desviar toneladas de produtos químicos usados na fabricação de crack. Afinal, quem se beneficia da miséria e da drogadição?
JL: Isso é que deveria ser investigado. Se existe um mercado de drogas, ele deve ser lucrativo, mas eu não tenho poder de investigação. Sobre a minha atuação, posso dizer que apoio a Missão Belém. Hoje, ela possui 2,2 mil pessoas em situação de rua acolhidas. Lutamos muito para manter esse trabalho, pois não temos convênio algum com a prefeitura. Aliás, acho bom que os vereadores estejam interessados em conhecer melhor o trabalho das ­ONGs. Poderiam verificar quantos convênios a prefeitura mantém, qual é o custo deles, quem administra esses recursos. Basta fazer uma consulta ao Portal da Transparência. Se fizerem isso, tenho certeza de que não vão encontrar meu nome ali, nem de qualquer entidade da qual eu faça parte. A Pastoral da População de Rua nem sequer possui personalidade jurídica. Algumas instituições da Igreja Católica, como o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, têm convênios com a prefeitura, mas eu não faço parte delas.

CC: Recentemente, o governo federal regulamentou a Lei 14.489/2022, idealizada pelo senhor, que proíbe a arquitetura hostil contra os sem-teto. Qual é a importância dessa nova legislação?
JL: A arquitetura hostil é um sintoma da falta de políticas públicas para a população em situação de rua. Como não há acolhimento adequado e suficiente, muitos continuam vivendo nas ruas e são enxotados de um canto para outro. Nosso objetivo não é manter as pessoas debaixo das marquises e viadutos. Ao vetar a arquitetura hostil, lutamos para que essa população seja tratada com dignidade e para que o Estado ofereça soluções adequadas. Daí a importância do “Plano Ruas Visíveis”, recém-lançado pelo governo federal.

Idealizada pelo padre, a lei que proíbe a chamada“arquitetura hostil” contra os sem-teto foi regulamentada em dezembro

CC: Muitas vezes os prefeitos argumentam que há vagas disponíveis, mas muitos preferem continuar nas ruas.
JL: Costumo dizer que vaga é coisa de estacionamento para carro. As pessoas não precisam de vagas, e sim de lugares dignos para viver. Muitas vezes o Poder Público dá a mesma resposta para toda a população em situação de rua, que é bastante heterogênea. Há numerosas situações que exigem soluções diferentes: mulheres com crianças pequenas, mulheres trans, pessoas com deficiência… É preciso levar em conta as peculiaridades.

CC: E costumam ser sempre respostas tuteladas, com regras rígidas, horários para entrar e sair. Não existem outras alternativas de moradia?
JL: Existe a locação social, a possibilidade de oferecer quartos em hotéis e pensões. Há vários modelos de moradia que respeitam a autonomia das pessoas, mas o Poder Público cria óbices burocráticos. Sugerimos, por exemplo, a criação de repúblicas autônomas para pessoas em situação de rua. Então logo aparece um burocrata para perguntar sobre a prestação de contas do dinheiro público nesse arranjo.

CC: O “Plano Ruas Visíveis”, que o senhor mencionou anteriormente, prevê quase 1 bilhão de reais em investimentos. É o suficiente?
JL: Não tenho condições de avaliar neste momento. Na verdade, nem sequer temos a garantia de que todo esse montante será disponibilizado. O próprio presidente Lula destacou, no lançamento do plano, que agora ele precisa correr atrás do dinheiro, o recurso não está guardado em caixa.

CC: Há tempos o senhor busca conscientizar os brasileiros sobre a aporofobia, medo ou aversão aos pobres. Como esse preconceito se manifesta em relação àqueles que nem sequer têm um teto para pernoitar?
JL: Em um ambiente como este (um restaurante), dificilmente pessoas em situação de rua podem entrar e se sentar à mesa. Já tive a experiência de levar comigo algumas dessas pessoas para tomar um sorvete ou comer algo na praça de alimentação de um shopping. Em todas as ocasiões, fomos seguidos de perto por seguranças. É uma coisa introjetada na sociedade. Até o acesso a banheiros costuma ser negado.

CC: Como mudar isso?
JL: Ah, é um processo longo, difícil. Não se resolve da noite para o dia. É um processo pedagógico, social, político, legislativo… Mas que precisa ser enfrentado. Vivemos em um país com uma desigualdade brutal. Isso afasta as pessoas, produz aporofobia, gera sentimento de medo e de rejeição.

CC: Mesmo entre aqueles que se declaram cristãos…
JL: Sim. Até pela nossa tradição europeia, estamos habituados a enxergar um Jesus loiro e de olhos azuis. Poucos conseguem ver a feição de Jesus em um homem maltrapilho e desdentado, em um Jesus real. Tem muitas coisas que não estão ao nosso alcance, dependem da ação do Estado. Por outro lado, também tem coisas que estão ao nosso alcance, como partilhar o pão, garantir acesso a água potável, ter carinho pelas pessoas. Isso todo mundo pode fazer. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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