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Luto sem-fim

As Mães de Maio querem uma lei contra a violência policial

Das ruas ao Congresso. O projeto do movimento coordenado por Débora Silva (acima) pretende dar efetividade a normas ignoradas pelo Estado – Imagem: Mães de Maio
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Edson Rogério Silva dos Santos voltava da casa da mãe de moto, quando ficou sem combustível e precisou abastecer. Nesse meio-tempo, o gari de 29 anos foi abordado pela polícia e assassinado ali mesmo, no posto, com um tiro certeiro. O crime aconteceu na Baixada Santista, em 2006. Não se trata de caso isolado. Entre 12 e 21 de maio daquele ano, outros 400 cidadãos foram assassinados, a maioria por PMs, no episódio que ficou conhecido como “Crimes de Maio”.

Santos deixou um filho de 3 anos, a família e a mãe, Débora Maria da Silva, hoje militante e pesquisadora forense na busca por justiça. A chacina foi uma retaliação policial ao PCC, para vingar a morte de um colega. “Centenas de mães perderam seus filhos trabalhadores, estudantes, e, mesmo que alguém fosse envolvido com o crime, não existe pena de morte no Brasil. O que existe é a criminalização de pobres”, desabafa Débora Silva, fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio.

Na luta por reparação, e também para evitar a repetição da tragédia, o movimento coordenado por Débora Silva protocolou na Câmara dos Deputados um projeto apelidado de “Lei Mães de Maio”, recepcionado por Orlando Silva, do PCdoB.  “A legislação não cria nada de novo, na verdade estabelece que as estruturas do Estado existentes, entre elas o Ministério Público e os serviços públicos de atendimento em Saúde, passem a olhar com atenção para essas famílias vítimas da violência do Estado. Hoje isso não acontece”, resume Francilene Fernandes, outra integrante da organização. Um projeto semelhante, diz Fernandes, foi apresentado em 2020 à Câmara de Vereadores de São Paulo pelo petista Eduardo Suplicy, mas acabou barrado pela “Bancada da Bala” municipal.  “Agora que conseguimos levar para o âmbito federal, temos esperança de avançar e fazer virar lei. Nós, as famílias do massacre de maio, não seremos mais beneficiadas, mas a gente luta para que outras não fiquem desamparadas como nós.”

O projeto estabelece, em linhas gerais, tratamento imediato às famílias vítimas do Estado. O acompanhamento deve começar na delegacia do bairro onde aconteceu o crime, porque nesse momento a coleta de provas é fundamental para o andamento da investigação. Além do empenho policial, o PL visa garantir atendimento psicológico especializado não só às mães, mas também a parentes diretos, como filhos, esposas, companheiros e irmãos. Quando ficar provado que a vítima era chefe da família, esta seria incluída em programas de renda básica existentes. O projeto exige ainda a mudança nos protocolos de abordagem da Polícia Militar em casos que envolvam crianças e adolescentes. Em operações policiais ostensivas, ficaria proibida a invasão de residências. As autoras também propõem campanhas educativas de conscientização a respeito da abordagem e da letalidade policiais, com vistas a proteger menores com base nas leis existentes destinadas a esse público.

O grupo nasceu após o massacre de 2006, banho de sangue com 400 vítimas

“O projeto estabelece um Programa de Enfrentamento aos impactos de violência institucional e revitimização de mães e familiares das vítimas e/ou vítimas sobreviventes de ações violentas, por meio da atenção social integral”, afirma Silva. Sua colega de Parlamento, Érika Hilton, do PSOL, também abraçou a ideia. No fim de maio, Hilton emplacou uma audiência na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial sobre o tema. “Foi a primeira vez que tivemos a oportunidade de ser ouvidas pelo Poder Público”, afirma Débora Silva. As Mães de Maio tiveram um mês intenso em Brasília. Foram recebidas pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, pela titular da Igualdade Racial, Anielle Franco, por um representante da pasta de Direitos Humanos e pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. Um encontro com Nísia Trindade, da Saúde, para tratar da saúde das famílias, acontecerá em breve.

Sobre esse ponto, aliás, as Mães de Maio são objeto de um estudo da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com a Universidade Harvard, a ser publicado em agosto. “Na pesquisa, descobrimos que o mais comum é as mães caí­rem em depressão e, sem nenhum acolhimento psicológico, acabam desenvolvendo outras doenças. Perdemos muitas lutadoras para o câncer, a gente percebe que há uma somatização da tristeza”, lamenta a coordenadora do grupo.

Fernandes encaixa-se nesse quadro. A militante enfrenta atualmente um câncer em estágio avançado. Não é a única na família: o pai também enfrenta a doença.  “Tivéssemos um acolhimento na sequência, não estaríamos hoje com câncer. É uma dor silenciosa”, acredita a assistente social. Durante a audiência, Hilton destacou: a Lei é “de suma importância para avançar numa discussão pública transversal e interseccional dos efeitos da violência do Estado sobre as mães e famílias e da responsabilidade do Estado em garantir uma estrutura de apoio às mães”.

O projeto de lei foi elaborado com apoio da ONG Conectas Direitos Humanos e, segundo Gabriel Sampaio, advogado e diretor de litigância e incidência da organização, o protagonismo das Mães de Maio para tornar o Estado menos letal contra a população pobre, negra e periférica precisa ser reconhecido. “De forma muito insistente, e sem nenhum apoio, essas mulheres têm levado essa agenda adiante. É importante registrar a força delas, que dão um impulso na luta contra a violência institucional no Brasil.” •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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