Sociedade

Estudos indicam aumento do trabalho infantil no Brasil

País está sem dado oficial desde 2019, mas pesquisas apontam que mais crianças e adolescentes exerceram atividades ilegais para sua idade na pandemia

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Mazela histórica com raízes sociais profundas no Brasil, o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil apresenta evidências de crescimento, segundo especialistas e estudos pontuais realizados nos últimos dois anos.

É uma tendência oposta à série histórica de 1992 a 2019, período no qual o número de crianças e adolescentes explorados por alguma forma de trabalho caiu de 7,8 milhões para 1,8 milhão. O dado de 2019 consta do último levantamento sobre o tema realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Pesquisadores dão como certo que uma próxima pesquisa do IBGE confirmará a piora desse cenário devido a uma conjunção de fatores: o enfraquecimento de políticas públicas de distribuição de renda, o aumento no desemprego de adultos e o arrocho salarial — situações que acabam favorecendo a evasão escolar e fazendo com que crianças e adolescentes precisem trabalhar para contribuir no sustento da casa – e a crise econômica geral acentuada pela pandemia de Covid-19.

Em 2020, um levantamento realizado pelo Unicef em São Paulo indicou um aumento de 26% no número de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos submetidos a trabalho infantil nos dois primeiros meses da pandemia. No ano seguinte, outro estudo do Unicef constatou que, no fim de 2020, havia mais de 5 milhões de menores de idade no Brasil sem acesso à educação, quadro agravado pela situação epidemiológica e pela falta de políticas públicas que deixou escolas fechadas e sem alternativas de ensino remoto. Tal cenário está intimamente ligado ao aumento do trabalho infantil, segundo pesquisadores.

“Embora o IBGE não traga novos dados nacionais [desde 2019], outros indicadores nos mostram que o trabalho infantil tem aumentado no Brasil”, diz a jornalista Bruna Ribeiro, gestora do projeto Criança Livre de Trabalho Infantil e autora do livro Meninos Malabares: Retratos do Trabalho Infantil no Brasil. “O trabalho infantil tem ligação direta com situações como estas: aumento da fome, da pobreza, crise humanitária, acirramento da desigualdade social, desemprego.”

“Os últimos dados são de 2019, demonstrando o desdém com que este governo [federal] trata a questão da exploração do trabalho infantil”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, membro da Comissão da Criança do Adolescente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “Está visível o aumento do trabalho infantil nas ruas. As crianças foram seriamente atingidas durante a pandemia pela fome, trabalho infantil, inclusive doméstico, suspensão das aulas e atividades e pela violência e acidentes nos ambientes domésticos e comunitários.”

Em 2002, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) instituiu o 12 de junho como Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. Cinco anos mais tarde, por lei federal, o Brasil firmou a mesma data como Dia Nacional Contra o Trabalho Infantil.

Descaso governamental

Um levantamento realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, pelo portal Siga Brasil e pela plataforma Smart Lab revela que a gestão Bolsonaro reduziu em 95% os gastos federais para o combate às formas de trabalho infantil de 2019 a 2021.

Se no primeiro ano de seu mandato foram aplicados R$ 6,7 milhões no setor, em 2020 e em 2021 o gasto ficou na casa dos R$ 300 mil por ano. Em 2021, o governo federal havia empenhado R$ 1,88 milhão para a rubrica e utilizou menos de 18% disso.

“O atual governo federal cortou orçamentos ou não executou os recursos nas áreas de enfrentamento ao trabalho infantil”, afirma Alves, para quem “o presidente [Jair] Bolsonaro e vários parlamentares da base dele no Congresso defendem a exploração do trabalho infantil”.

Além do corte drástico nos gastos com o tema, ele acrescenta que o governo federal “também cerceou a atuação dos auditores do trabalho no enfrentamento ao trabalho infantil nas áreas urbanas e rurais”.

Alves afirma que o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), criado em 1996 pelo governo federal e considerado “o mais bem-sucedido” para o enfrentamento dessa violência contra a infância, “foi abandonado pelos governos [Michel] Temer e Bolsonaro”.

Mentalidade pró-trabalho infantil

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro defendeu o trabalho infantil, reforçando uma mentalidade popular de que “é melhor trabalhar do que roubar” e de que “trabalho não mata ninguém”.

“São dois mitos que não correspondem à realidade. Morrem crianças em trabalho infantil no Brasil”, afirma o desembargador do trabalho João Batista Martins César, presidente do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil de seu tribunal e integrante da Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Infantil. “E praticamente 80% dos presos hoje no Brasil começaram a trabalhar precocemente, ou seja, o fato de começar cedo [a trabalhar] não quer dizer que não vai se envolver com criminalidade.”

“Uma das principais dificuldades é cultural e a mudança não ocorre de um dia para o outro: há uma crença no imaginário da sociedade brasileira que ‘o trabalho não mata ninguém’. Isso é uma mentira”, comenta o sociólogo Gabriel Rossi, professor da ESPM. “Oras, o trabalho infantil mata sim, e há relatos de crianças escravizadas, abusadas sexualmente, etc., e se mostra como um sintoma de nossas profundas desigualdades e da falta de coesão social. Ademais, boa parte das crianças e adolescentes envolvida em atividades criminais começou a trabalhar precocemente. Criança precisa estudar e se sentir protegida dentro da escola”, afirma.

Dados publicados em 2021 pelo Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil registraram um aumento de 30% em acidentes de trabalho envolvendo menores de 14 anos em 2020, em comparação com o ano anterior. De 2012 a 2020, foram 18,8 mil acidentes de trabalho envolvendo adolescentes de 14 a 17 anos, com 46 mortes.

Subnotificação

Bruna Ribeiro alerta também sobre a subnotificação dos casos, seja porque dentre as situações consideradas como “piores formas” de trabalho infantil estão atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, seja por falta de denúncias.

“Muitas formas de trabalho infantil são invisíveis. E como essa violência é muito naturalizada por parte da sociedade, não há a cultura de comunicar as autoridades”, frisa.

“Temos uma omissão [nas denúncias], uma falta de dados em relação a muitas formas de trabalho infantil, sobretudo nas ruas [mendicância e atividades como venda de bugigangas em faróis, entre outras], modalidade que vem tendo crescimento gigantesco, especialmente com a pandemia”, afirma a procuradora do trabalho no Ministério Público do Rio de Janeiro, Elisiane Santos, autora do livro Crianças Invisíveis: Trabalho Infantil nas Ruas e Racismo no Brasil.

Brasil longe da erradicação até 2025

São três as principais convenções internacionais que definem o trabalho infantil e asseguram as bases para o combate a essa situação: a das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e duas convenções da OIT.

No Brasil, a Constituição de 1988 proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz — a partir dos 14 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor desde 1990, corrobora a regra.

“Mas [as convenções e legislações] não são cumpridas em totalidade no Brasil, porque sabemos que, infelizmente, não há a proteção integral de todas as crianças”, afirma Ribeiro.

Para os especialistas, é muito reduzida a chance de o Brasil cumprir o compromisso firmado com a Organização das Nações Unidas de erradicar todas as formas de trabalho infantil até 2025.

“Esses compromissos assumidos pelo Estado brasileiro vêm sendo prorrogados. Não conseguimos cumprir as metas de erradicação”, diz a procuradora Santos.

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