Sociedade

Engolida pelas mudanças da Vila Madalena, Mercearia São Pedro pode fechar

O terreno onde fica o estabelecimento no famoso bairro de São Paulo teria sido vendido para construção de um prédio

Foto: José Diniz
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Não se sabe ao certo se a Mercearia São Pedro, histórico bar de jornalistas, artistas, escritores e publicitários na Vila Madalena, em São Paulo, será de fato fechada para dar lugar a um empreendimento residencial.

Um dos sócios, Marcos Benuthe, diz que sim. O outro sócio, Pedro, não se manifestou oficialmente, sinalizando possível celeuma familiar em torno do destino do imóvel herdado dos pais.

Enquanto se aguarda o desfecho da disputa entre irmãos, a realidade é que, fechada ou não, a Mercearia São Pedro já fazia parte do passado de uma Vila Madalena que não existe mais, embora o bar ainda mantenha a áurea e as características de um legítimo boteco.

Fundada como mercearia em 1968, o espaço transformou-se também em bar e mais adiante incorporou uma livraria e até uma vídeo-locadora. Tudo disposto de forma um tanto caótica, que era possível encontrar ao lado de produtos, como pacotes de papel higiênico e frascos de detergente, frequentadores em mesas com cervejas e tira-gostos, alguém perto folheando um livro tirado da estante e outro mais adiante passando os olhos nos filmes dispostos em uma prateleira.

Na primeira década do século atual, uma geração de escritores e cronistas foram habitués da Mercearia São Pedro, como Marçal Aquino, Andréa del Fuego, Marcelino Freire, Ivana Arruda Leite, Joca Reiners Terron, Daniel Galera, Marcelo Rubens Paiva, Índigo, Paulo Scott, Reinaldo Moraes, Xico Sá, Mário Bortolotto, Michel Laub, Matthew Shirts, entre outros, que se reuniam em rodas de conversa com gente ligada ao cinema, ao teatro, à televisão e à grande imprensa.

Havia lançamento de livros quase toda semana no bar – às vezes até dois. Alguns poucos shows ocorreram no local por causa da reclamação de barulho de vizinhos. Mas era possível encontrar de domingo a domingo, a qualquer hora, alguém da intelligentsia de São Paulo ou de passagem pela cidade no afamado bar.

A Mercearia foi ponto de encontro de gente culta por anos, ou pelo menos interessada em cultivar um bate-papo entre pessoas letradas na vida noturna paulistana.

Cerveja gelada

A cerveja em garrafa estupidamente gelada era o símbolo que ali se preservava a boemia ao pé da letra, diferente do que vinha ocorrendo no restante do bairro da Vila Madalena, com a chegada de bares de grupos de investidores e temáticos (não é porque se decora o bar com supostas referências do ambiente etílico e cultural do Rio de Janeiro que já se pode ser chamado de autêntico boteco), de comida cara, venda de chopp a preços escorchantes e muita espuma. O almoço self-service da Mercearia sempre foi inegavelmente o melhor custo-benefício da nobre região.

Mas a Mercearia São Pedro foi aos poucos mudando de público e os eventos literários foram rareando. Está certo que a festa de 50 anos do bar, em 2018, fechou até a rua para shows, com todo mundo lá das antigas, lançamento de livro e tal, mas foi um encontro nostálgico.

A galera letrada já estava indo a Mercearia São Pedro somente às segundas e terças. As quartas, quintas e domingos passaram a ser dos torcedores de bar, atraídos pelas televisões ligadas o tempo todo no futebol.

Às sextas e sábados o bar vinha sendo ocupado majoritariamente por universitários, que não se dispunham a sentar num estabelecimento modinha da muvuca da Vila Madalena (a Mercearia fica fora desse perímetro) e gastar tudo em dois ou três chopps com uma porção de mandioca com queijo ralado. Na Mercearia, mesmo sem encontrar mesa livre e tendo que beber em pé na calçada, era possível se divertir muito mais com menos, com a paquera rolando solta.

Verticalização

O perfil do morador da Vila Madalena também mudou bastante nesse tempo. De um bairro com alguns bares e casas, pequenos prédios e moradores antigos, passou a ter vários empreendimentos comerciais e condomínios de luxo.

A especulação imobiliária, apoiada muito no Plano Diretor de verticalização do bairro, chegava ao local de forma voraz, para atender um público com dinheiro no bolso querendo morar no chamado centro expandido de São Paulo – cita-se que a Vila Madalena está próxima do novo e cheiroso polo empresarial da capital paulista, a Faria Lima.

Nesse ritmo, vieram cafés e restaurantes frequentados por gente fina, elegante, mas não sincera. Os novos moradores passaram a reclamar do barulho da vida noturna, como se não soubessem o histórico do lugar antes de mudar para o bairro. Várias disputas com a prefeitura ocorreram por conta disso.

A Mercearia São Pedro resistiu até onde pôde a essas mudanças e com o tempo se tornou um enclave dentro da nova dinâmica local. Outros estabelecimentos históricos sucumbiram no bairro, como o também rústico Bom Motivo, que tinha música ao vivo todo dia. O Ó do Borogodó está se mantendo a fórceps, depois de uma bem sucedida campanha de ajuda financeira.

A pandemia, claro, colocou todo o funcionamento da Vila Madalena em cheque, com tantos estabelecimentos dependentes de aglomeração para sobreviver. A Mercearia São Paulo sofreu a fundo o aperto, vivendo de entrega de comida, inicialmente. O bar continua abrindo, mas agora parece esperar a data para fechar.

É uma pena, mas a Vila Madalena mudou – e muito. O bairro não merece mais a Mercearia São Pedro, muito menos os seus frequentadores de outrora.

O bar segue como um microcosmo na capital paulista, com seu aspecto etílico-cultural, embora hoje não existam mais estantes com livros, mas apenas cartazes de clássicos filmes na parede. É ainda um ótimo bar para se frequentar em meio a tantos bares estilizados pela cidade – e sem alma. Mas agora não se sabe até quando…

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