Justiça

assine e leia

Crise humanitária

Assombradas pela fome, 142 mil famílias correm risco de despejo com o término da vigência da ADPF 828

Crise humanitária
Crise humanitária
Sina. Mesmo com a decisão do STF, muitas famílias foram removidas durante a pandemia. O assentamento São Gregório, em Gameleira (PE), resiste desde 1995 - Imagem: Rafael Bertelli/Mandato Goura e MST/PE
Apoie Siga-nos no

Cosma Luísa da Conceição, conhecida como dona Coco, tem 102 anos e há nove meses vive na Ocupação 8 de Março, na zona sul do Recife. Ela e outros 500 mil brasileiros, além de não ter casa, podem ser despejados a qualquer momento, uma vez que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, concedida ano passado pelo Supremo Tribunal Federal e que proíbe despejos e desocupações em áreas urbanas e rurais em razão da pandemia da Covid-19, expirou na quinta 30 de junho. São mais de 142 mil famílias que vivem nesta situação, das quais pelo menos um terço é formada por crianças e idosos como dona Coco.

Os números constam no levantamento realizado pela Campanha Despejo Zero, formada por 175 entidades da sociedade civil, reunindo informações do início da pandemia até 31 de maio deste ano. Como se não bastasse, esse quadro se agrava ainda mais com a escalada da fome no País. São mais de 33 milhões de brasileiros sem ter o que comer, o que representa 15% da população, patamar similar ao de 30 anos atrás. Em meio a uma persistente crise sanitária, grande parte da sociedade também enfrenta a pandemia da falta de moradia e da fome. São os sem teto e os sem comida.

Estima-se que 500 mil cidadãos estejam em situação de rua no Brasil, e o número pode dobrar com o fim da ADPF 828. A medida foi adotada em junho de 2021, atendendo a um pedido de liminar do PSOL para proibir remoções de pessoas em situação de vulnerabilidade, com efeito retroativo a março de 2020. No primeiro momento, a medida tinha validade até dezembro e abarcava apenas imóveis urbanos. Com o fim do prazo, o STF estendeu até março deste ano e, depois, até 30 de junho, e incluiu os rurais. A liminar foi concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, que se baseou no decreto de emergência da pandemia, revogado em abril deste ano.

Agora, o PSOL e entidades como MTST e MST pedem nova prorrogação, temendo uma grave crise humanitária que o País pode enfrentar, considerando não apenas a continuidade da pandemia, mas também o aumento da fome e do desemprego, a dificuldade financeira que a grande maioria dos brasileiros enfrenta e ainda o clima de ódio e aumento da violência que se instalou no País, cada vez mais frequente com a proximidade das eleições. São Paulo, Pernambuco e Amazonas são os estados com o maior número de pessoas ameaçadas de perder sua moradia. (Nota da redação: Na quinta-feira 30, após o fechamento desta edição, Barroso prorrogou).

A população em situação de rua no Brasil pode dobrar com o fim da proteção

“A ADPF se encerra no auge da crise econômica, sem um programa habitacional no País e com recorde de população em situação de rua. Veremos cenas de calamidade nas cidades brasileiras”, alerta Guilherme Boulos, da coordenação nacional do MTST e candidato a deputado federal pelo PSOL. “Caso a ADPF não seja prorrogada, viveremos uma tragédia no Brasil, porque qualquer ação vira jogo eleitoral. Numa operação de despejo, a Justiça delega a reintegração de posse às polícias militar, civil e federal, corporações nas quais uma grande parcela não dialoga, é bolsonarista e age com truculência. Esperamos que o STF considere esse clima de ódio e se sensibilize com quem não tem moradia”, complementa Jaime Amorim, da direção nacional do MST e um dos coordenadores da Via Campesina Internacional. Amorim cita o exemplo do assentamento São Gregório, no município de Gameleira, em Pernambuco, onde mais de 120 famílias moram desde 1995. Com uma área de mil hectares, o local conta com escolas, igrejas e os moradores são agricultores familiares que dependem da produção. Já existe uma ação de reintegração de posse, suspensa por conta da ADPF.

Embora seja grande o número de pessoas vivendo sob ameaça de despejo, esse quadro poderia ser pior. A ADPF, associada à atuação dos movimentos sociais, conseguiu impedir a remoção de 24.231 famílias. Mesmo com a medida em vigor, mais de 31 mil famílias foram, porém, despejadas entre março de 2020 e maio deste ano. Foram implantadas outras medidas visando suspender desocupações no período da pandemia, como a Lei Federal 14.216/2021 – cuja validade foi até dezembro do ano passado, não incluía os rurais e chegou a ser vetada pelo presidente Bolsonaro, veto derrubado na Câmara dos Deputados –, resoluções do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, além de algumas legislações estaduais.

O déficit habitacional no Brasil alcança quase 6 milhões de famílias, situação agravada pela crise econômica. “São pessoas desempregadas ou com empregos precários, que não sabem se pagam aluguel ou botam comida na mesa. A população em situação de rua cresceu mais de 30% durante a pandemia nas principais capitais. Ou a gente coloca a reforma agrária e urbana no centro do debate ou a sociedade brasileira tende a entrar em colapso no próximo período”, destaca Rud Rafael, da Coordenação Nacional do MTST e integrante da Campanha Despejo Zero.

“Há oito meses não pago aluguel graças à ocupação. Antes ficava aperreada de um lado e de outro porque não conseguia pagar. Por enquanto, durmo e acordo tranquila porque tenho esse cantinho para morar. Mas depois do dia 30 não vou conseguir dormir bem, porque aqui são mais de 400 famílias como eu que não têm para onde ir. Precisamos de uma moradia digna e justa”, desabafa Dany Abravanel, moradora da ocupação 8 de Março.

Mobilização. O MTST, de Boulos, distribui marmitas, enquanto o MST compartilha o roçado com famílias em situação de vulnerabilidade – Imagem: Redes sociais e Quentin Delaroche

“O despejo, a qualquer momento, é um ato desumano. Deveria existir um processo de arrecadação de terra e uma política habitacional para que as pessoas não precisassem ocupar esses espaços para ter seu direito à moradia garantido. O que as ocupações rurais e urbanas revelam é a falta de acesso a uma casa digna e de política de distribuição de terra, o que torna a ocupação um direito legítimo enquanto morar, comer e ter direito à terra for um privilégio”, destaca Kelli ­Mafort, da ­Coordenação Nacional do MST. “Esse déficit de moradia é resultado do fim de programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida, ao mesmo tempo do agravamento da crise econômica. Aquela pessoa que tinha emprego e pagava aluguel, hoje não consegue mais. Com a escassez de alimentos, isso se agrava e estoura o orçamento familiar”, dispara Boulos. “Quem tem dado solução para o problema são os movimentos sociais, as cozinhas solidárias, as campanhas de distribuição de alimentos, porque não há política de segurança alimentar.”

De fato, a ausência do Estado e a falta de políticas públicas para assistir as pessoas em situação de vulnerabilidade têm levado a sociedade civil a assumir o papel do governo. Exemplos disso são as cozinhas comunitárias do MTST e MST e a campanha Ação da Cidadania contra a Fome. Segundo o mais recente Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) e divulgado em junho, 33 milhões de brasileiros passam fome, mas 125 milhões de cidadãos (58,7% da população) não têm acesso regular e permanente a alimentos. “Em 2020, com a Covid, piora muito a situação e a gente entende que tem que fazer uma campanha contínua de arrecadação e distribuição de alimentos e, aí, lança o Brasil sem Fome”, explica Kiko Afonso, da coordenação da Ação da Cidadania, que atuou fortemente no início dos anos 1990, quando a fome atingia 32 milhões de brasileiros.

Nos anos 2000, a campanha Ação da Cidadania foi suspensa porque os indicadores sociais tinham melhorado consideravelmente, ao ponto de, em 2014, o Brasil sair do Mapa da Fome. A partir de 2016, com o impeachment de Dilma ­Rousseff e o desmonte do Estado patrocinado pelo governo Temer, a iniciativa é retomada e se consolida em 2019, quando a fome já atingia quase 20 milhões de brasileiros. Afonso lamenta a pouca adesão por parte do empresariado e de agentes do Estado. “Tanto as empresas quanto a sociedade não entenderam a necessidade de resolver a questão da fome e da insegurança alimentar, no momento em que o País vive um governo que não tem nenhuma atuação neste sentido. A fome compromete, sobretudo, o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças.”

Diante da omissão do governo, ONGs e movimentos sociais reforçam as doações aos famintos no País

Além das cozinhas comunitárias, o MST conta com os roçados solidários em vários municípios do País, estimulando as pessoas a produzir alimentos para seu próprio consumo e a doar o excedente para quem tem fome. Do início da pandemia até janeiro deste ano, foram mais de 6 mil toneladas de alimentos doados pelos assentamentos de reforma agrária do movimento, que distribuiu também milhares de marmitas nas grandes cidades. “Para nós, a solidariedade é um valor humano que não abrimos mão. Mas, ao mesmo tempo, é também uma denúncia de uma falta de uma política pública. Fazemos aquilo que o governo se recusa a fazer”, salienta Mafort, destacando ações dos sem-terra em São Paulo, Curitiba, Fortaleza e Recife. “Desde o início da pandemia, nossos assentamentos e acampamentos produtivos deram início a uma grande campanha de solidariedade, aumentando a capacidade de produção de alimentos para doação.”

Em Pernambuco, do início da pandemia até junho deste ano, as campanhas Mãos Solidárias e Roçado Solidário distribuíram mais de 800 mil marmitas à população em situação de rua e 950 toneladas de alimentos para a população das periferias. Oito cozinhas comunitárias estão em atividade, dez hortas coletivas urbanas foram criadas e existem 32 bancos populares, que recebem as doações e repassam às comunidades pobres. No município de Moreno, região metropolitana do Recife, um dos assentamentos MST se transformou em roçado solidário e as próprias pessoas assistidas pelo programa são introduzidas no manejo de plantio e produção dos alimentos.

“Vendo que a fome e a Covid-19 se alastravam de forma acelerada, ampliamos nossas ações para os bairros de periferia e para acampamentos e assentamentos rurais”, explica Lívia Mello, da coordenação do Mãos Solidárias. “Sabemos que a campanha não vai resolver o problema da fome, mas tem amenizado. Muita gente não tinha nada para comer e, com o projeto, passou a ter ao menos a uma refeição garantida por dia”, diz Carolina dos Santos, líder comunitária da comunidade Brasília Teimosa, no Recife, que é beneficiária e voluntária do Mãos Solidárias. “O que o governo tem condições de fazer e não faz, o Mãos Solidárias chega junto e abraça todos”, completa Cristine Martins, também beneficiária e voluntária da campanha. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Crise humanitária”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo