Sociedade

Como policiais se espalham, ilegalmente, pelos serviços de segurança privada

Um estudo conduzido durante oito anos mostra que, em condomínios de luxo de São Paulo, agentes aproveitam o trabalho de segurança para coletar secretamente dados de moradores e funcionários

Lei sancionada por Bolsonaro beneficia militares. Foto: Tania Rego/Agência Brasil
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Mesmo proibidos por lei de participar do ramo de segurança privada, policiais brasileiros desempenham um papel-chave nesta indústria.

Dos donos de empresas de segurança aos guardas que ocupam guaritas e rondam os condomínios de motocicleta, agentes que trabalham em diversos postos deste mercado. A maioria dos oficiais usa o dia de folga dos plantões do serviço público para se dedicar ao trabalho extra.

O problema vai além. Em condomínios de luxo de São Paulo, policiais militares e civis da ativa aproveitam o trabalho de segurança para coletar dados privados de moradores, funcionários e visitantes, compartilhando-os com policiais.

Funciona assim: com o acesso a câmeras de vigilância, os agentes criam de um banco de dados de moradores e demais funcionários, posteriormente cruzado com o banco de dados da polícia e outras “redes de conhecimento” dos policiais, como grupos privados de WhatsApp. 

Os dados podem ser usados, secretamente, em casos de roubo, agressão e sequestro.

O cenário foi revelado pelo estudo “In the shadows of protection: Brazilian police in private security” (“Nas sombras da proteção: a polícia brasileira na segurança privada” — tradução livre), publicado em junho na revista especializada Policing and Society

As antropólogas Susana Durão e Paola Argentin, da Unicamp, e Erika Larkins, da Universidade Estadual de San Diego (EUA), conduziram por oito anos a pesquisa no estado. A segurança paulista, alertam, vive hoje uma situação de “ambiguidade sistêmica”, com conflitos de interesse. 

Uso de dados

Agentes entrevistados pelas pesquisadoras admitiram a ilegalidade do trabalho e do uso de dados públicos. O serviço é mais comum em condomínios horizontais de alto padrão. “Há moradores que são criminosos de colarinho branco, estelionatários e sonegadores de impostos, muitos dos quais estão sendo investigados pela Polícia Federal”, relatou ao estudo um agente de alta patente identificado como Julio*.

Guardas regulares, porteiros, recepcionistas e operadores de câmeras sabiam que seu trabalho estava sendo vigiado. Os residentes, por outro lado, não teriam ideia de que eles mesmos podem ser investigados e ter seus registros criminais nas mãos dos agentes de inteligência.

Os seguranças que cercam os condomínios redor não são diretamente identificados. O que os diferencia dos guardas comuns é o uniforme todo preto e o fato de atuarem em uma sala privada.

Poder, dinheiro e perigo

O Brasil tem mais seguranças privados do que policiais. No primeiro trimestre de 2022, segundo o mais recente Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha 1.096.398 vigilantes, contra 772.2022 agentes de segurança.

Estatuto dos Policiais Militares proíbe agentes da ativa a trabalharem em organizações e empresas privadas. O Tribunal Superior do Trabalho, porém, abre um brecha através da Súmula 386 e também pelo artigo 3º da CLT.

Na maioria dos casos, para tentar burlar a legislação, as empresas dos policiais são vinculadas a nomes de familiares. 

Policiais veem o esquema como “inovador”. “Uma combinação inteligente do que há de melhor nos mundos militar e civil. Do mundo militar, vem o sigilo e a hierarquia. O setor privado traz a flexibilidade, a comunicação e o senso comercial”, afirma Julio*.

Outro modelo que se populariza são as consultorias, não apenas para realizar um plano de segurança para empresas de vigilância, mas também para colocar à disposição uma equipe que envolve oficiais da mais baixa à mais alta patente, com garantia de sigilo.

“É muito mais interessante ter uma consultoria de segurança privada do que ter sua própria empresa de segurança privada”, explicou outro agente ouvido pelas pesquisadoras, o *Coronel Hilton, dono de uma empresa de segurança patrimonial. “Por que somos pagos pelo nosso conhecimento da prática e não precisamos ter capital financeiro para investir.”

Mais do que dinheiro extra, a confusão entre a segurança pública e privada, pode dar esses policiais “uma extensão infinita de poder, violência, empreendedorismo e influência política”, alertam as pesquisadoras.

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