Sociedade
Audiência, o ouro de tolo do jornalismo dos anos 2010
‘Tráfego’, livro de Ben Smith, conta a origem, ascensão e queda do BuzzFeed e outros veículos nativos digitais

Em junho de 2015, Jonah Peretti, fundador do BuzzFeed, foi à sede do New York Times explicar ao centenário jornal como essa coisa de internet funcionava.
Nas palavras do jornalista Ben Smith, então editor-chefe do braço de notícias do BuzzFeed, Jonah “era um mamífero explicando aos dinossauros como havia evoluído para além deles”.
O trecho ocupa um capítulo em Tráfego: Genialidade, rivalidade e desilusão na corrida bilionária para viralizar (tradução livre; ainda sem edição no Brasil), novo livro de Ben que conta a origem, ascensão e queda do BuzzFeed.
Durante boa parte dos anos 2010, o BuzzFeed pareceu o futuro do jornalismo, o modelo de transformação digital a ser seguido pela imprensa tradicional, ainda agarrada ao papel e às práticas do século XX.
Em algum momento, porém, as premissas do BuzzFeed e de seus pares se mostraram fajutas, as big techs — em especial a Meta/Facebook — passaram a rasteira em todo mundo e, no fim, são os dinossauros da mídia que provavelmente sobreviverão à extinção do BuzzFeed.
Como em toda boa história, Traffic traz um leque de personagens com características marcantes. Ben personificou em Nick Denton, o fundador da Gawker, uma rede de blogs de Nova York com uma proposta de transparência absoluta, o antagonista de Jonah na corrida bilionária a que o subtítulo do livro alude.
Nick era puro instinto. Jonah, racional — o cientista maluco explorando fórmulas para viralizar conteúdo na internet. Em comum, ambos eram obcecados por tráfego, por audiência pura. Ela era a medida do sucesso, a meta a ser batida, tudo que importava.
A internet comprou essa narrativa, o que levou o BuzzFeed a rejeitar uma oferta de US$ 450 milhões da Disney e, em algum momento, valer US$ 1,8 bilhão após sucessivas rodadas de investimento privado.
Só que a promessa de que tráfego seria o ouro da imprensa na era da internet não se sustentou por muito tempo. Quando o então Facebook descobriu que poderia lucrar muito mais mantendo os ciclos de viralização dentro dos seus domínios, em vez de abrir a mangueira de tráfego para fora, o futuro do BuzzFeed e de tudo que ele representava foi posto em xeque.
Curiosamente, segundo consta no relato de Ben, foi o maior evento da história do BuzzFeed que acendeu essa luz na cabeça de Mark Zuckerberg: “O Vestido”, um post descompromissado que perguntava à audiência a cor de um vestido preto e azul (ou branco e dourado?), responsável por gerar 37 milhões de visualizações.
Tráfego, como vieram a descobrir da pior maneira aquela leva de jornalistas e empreendedores progressistas, era ouro de tolo. Pior que não pagar as contas no fim do mês, a obsessão por tráfego gerava incentivos a conteúdos questionáveis.
Não foi com o Facebook, mas antes, ainda com o Digg, que esse alinhamento estranho ficou aparente, como conta Ben:
“O poder do Digg vinha de uma mistura opaca de comunidade e algoritmo, e ele estava começando a moldar não apenas o que era lido, mas como as notícias eram escritas. A cauda começou a abanar o cachorro; a história começou a perseguir o tráfego.”
Talvez quem melhor tenha entendido a nova dinâmica na internet tenha sido figuras a princípio coadjuvantes da história, como Andrew Breitbart, Steve Bannon e Benny Johnson. Eles participaram, de alguma forma, das histórias de BuzzFeed, The Huffington Post e Gawker. Anos mais tarde, usaram técnicas similares às empregadas por Jonah e Nick para radicalizar o debate político e eleger figuras abjetas como Donald Trump, Rodrigo Duterte e Jair Bolsonaro.
No livro, Ben faz um grande “mea culpa” a esse respeito:
“Na Casa Branca de Donald Trump em 2019, os direitistas celebravam a conversão de tráfego não em dinheiro, como Jonah e Nick haviam imaginado, mas em poder político em estado bruto.”
A internet de 2023 é muito diferente da que viu os impérios de Nick e Jonah crescerem. O New York Times e outros jornais de renome aprenderam a navegar pelo digital e fizeram uma aposta ousada — em assinaturas pagas — que se pagou lindamente em 2016, quando Trump chegou à Casa Branca.
A Gawker foi dizimada pelo dinheiro do Vale do Silício. Em um processo fantoche movido por Terry “Hulk Hogan” Bollea por um vídeo íntimo vazado pelo veículo, o mega-investidor conservador Peter Thiel torrou uma grana para tirar Nick do jogo.
Jonah, aos trancos e barrancos, sobreviveu à guinada do Facebook, que de uma hora para outra secou o tsunami de tráfego que enviava a sites externos — BuzzFeed entre os maiores beneficiários.
Em dezembro de 2021, o BuzzFeed abriu seu capital em um SPAC, instrumento financeiro que facilitou muitos IPOs, ainda que a maioria fosse de papéis ruins. Àquela altura, o BuzzFeed já era um mau negócio.
O valor de mercado do BuzzFeed, de US$ 1,7 bilhão no IPO, despencou já na primeira semana de negociações na bolsa. Em maio deste ano, o valor da ação caiu abaixo de US$ 1. Caso não reverta esse cenário até o fim do ano, o BuzzFeed será retirado da Nasdaq.
Após dissolver a premiada equipe de jornalismo e acabar com o BuzzFeed News (ironicamente, dias antes do lançamento de Traffic nos EUA), a nova aposta do BuzzFeed para voltar ao azul é usar inteligência artificial para gerar quizzes e guias de viagens em grande volume a um custo irrisório.
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