Entrevistas

‘Às vezes a gente se sente de mãos atadas, porque as ocupações estão cheias’

Líder de um dos principais movimentos pró-moradia de São Paulo, Carmen Silva fala a ‘CartaCapital’ sobre desafios da habitação na pandemia

Sob a liderança de Carmen Silva, o Movimento Sem-Teto do Centro assiste mais de 300 famílias desabrigadas em meio a pandemia (Reprodução / Redes sociais)
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Para Carmen Silva, líder do Movimento Sem-teto do Centro, uma casa não se resume a quatro paredes. Ter um lar é sinônimo de segurança, direito à alimentação, educação, vivência familiar e boa convivência com o espaço ao redor.

Com a chegada do coronavírus e a crescente taxa de desemprego, mais famílias encontram dificuldade em manter o direito à moradia. “O ônus muito excessivo entre o valor do aluguel em comparação ao ganho das famílias”, diz, tornou-se ainda mais explícito. “Quando falamos no Movimento Sem-Teto, são pessoas que vivem em ocupações e cortiços, sem casa própria, são solteiros e casados. É toda família que trabalha e quando chega o aluguel, não sabe se come ou se paga”.

Com a ausência do Estado e a difícil decisão de comer ou manter o teto, o apoio de movimentos como o MSTC se torna ainda mais necessário. Carmen coordena cinco ocupações no centro de São Paulo para garantir moradia digna a mais de 300 famílias em meio à pandemia.

As ocupações são feitas primeiro pela necessidade, segundo em denúncia contra a especulação imobiliária.

De acordo com o Observatório de Remoções, coordenado pelo LABCIDADE da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em parceria com outras universidades, entre 2017 e 2020 mais de 24 mil famílias foram removidas de seus lares no estado de São Paulo.

Entre março e dezembro de 2020, foram 25 ações de despejo coletivo na cidade, totalizando mais de 9 mil famílias desabrigadas em plena pandemia. Esse número não inclui casos individuais de despejo, como acontece pela falta de pagamento do aluguel.

Confira a seguir.

CartaCapital: Carmem, são mais de trinta anos à frente do Movimento Sem-Teto do Centro. Ao olhar para essa trajetória, como foi o crescimento do movimento e das ocupações?

Carmen Silva: O crescimento não é das ocupações, mas sim do próprio movimento. Ele vem criando legitimidade em participar efetivamente dos vários conselhos de habitação, das conferências, centrais nacionais e aí vamos legitimando a luta pela moradia digna. Então, as ocupações são feitas primeiro pela necessidade, segundo em denúncia contra a especulação imobiliária e o tanto de prédios vazios e abandonados. E isso com muita gente sem moradia.

CC: Houve um crescimento na busca pelas ocupações do MSTC?

CS: Sim, muito. Isso é recorrente. Agora na questão da pandemia, têm muita gente sendo despejada. Já havia um desemprego crescente e o alto custo dos aluguéis, né? Mesmo aluguéis em áreas como cortiços, que não são uma moradia decente.

Com a falta de emprego, as pessoas não têm mais condição de pagar o aluguel caríssimo. Existe um ônus muito excessivo com o valor do aluguel em comparação ao ganho das famílias.

CC: Como o aumento dessa procura afetou vocês?

CS: Olha, primeiramente nós não temos as ocupações como uma porta de entrada de moradia. Se não, nós teríamos mais uma imobiliária. Então nós temos uma formação.

Temos um cadastramento com as assistentes sociais, onde a gente vai informar que o movimento é um instrumento de luta. Dizer primeiramente  as questões da documentação e aí receber essas pessoas. Para você ter ideia, sábado recebemos duas pessoas que saíram de Goiás porque estão em uma situação ruim e vieram parar aqui na ocupação de São Paulo.

Não é só aqui que existe esse problema. Às vezes a gente se sente de mãos atadas, porque as ocupações estão cheias.

CC: A ocupação comummente acolhe famílias e trabalhadores cujo a renda mensal total é inferior ao custo de vida na cidade. A pandemia mudou esse perfil?

CS: Mudou. É muita gente que paga aluguel e não tem mais condição. Ele tem a opção: paga o aluguel e não sobra dinheiro para comer.

E existe outra situação recorrente com a pandemia: aquele que ainda paga aluguel e que às vezes vai para fila de doações, porque se mantém o aluguel e não tem o que comer. Por isso temos vários grupos atendendo a essas comunidades em situações de vulnerabilidade.

CC: O MSTC intervém nos despejos dessas famílias em áreas vulneráveis?

CS: Nós estamos trabalhando na campanha do despejo zero, tivemos várias ameaças de reintegração de posse, mas a gente se mobilizou e conseguiu suspender algumas reintegrações de posse.

E a liminar do próprio TSE dizendo que durante a pandemia não pode haver reintegração de posse. Mas você sabe, vulnerável infelizmente tem também o despejo administrativo, que são a GCM e a subprefeitura que fazem sem precisar da liminar de reintegração. Então ficamos sempre em alerta, porque a toda hora, mesmo com a pandemia, tem ameaça e tem reintegração de posse. No que podemos ajudar, entramos com a liminar e acionamos a defensoria, o próprio MP e todos os grupos da campanha despejo zero.

CC: Há uma estimativa de quantas famílias, vítimas da pandemia, ainda estão esperando por uma vaga nas ocupações?

CS: Atualmente nós estamos dividindo em quatro turmas de cinquenta pessoas. São duzentos cadastros de pessoas que batem na nossa porta, e é óbvio que tem aqueles que estão em uma situação mais emergencial, que a gente tá procurando fazer uma avaliação. No caso de idosos, pessoas que, infelizmente, foram despejadas e não tem nem para onde ir, não tem família, não tem nada. Nós estamos avaliando pela urgência.

É muito duro a pessoa ter sua vida montada, estabilizada e de repente se vê em uma situação de ter que se desfazer ou até mudar toda hora

CC: Em que momento a senhora viu esse número de pessoas que procurava por uma vaga crescer?

CS: Primeiramente nós lançamos a campanha de combate à fome. Então, com as doações de cesta básica, começou a aparecer mais gente. Entre março e julho de 2020, nós atendemos quase seiscentas pessoas. E eles viram as ocupações, então deixaram de ser tímidos e falaram também dos seus problemas de moradia. Descobrimos moradias de coabitação, aquelas moradias em que várias famílias moram juntas. Mas neste momento também começou a verba emergencial, o que deu uma estabilizada.

Naqueles três meses o pessoal usou aquele dinheirinho, se manteve. Mas agora essa procura está aumentando novamente. Nesse mês de março, nossa, nós tivemos muita gente procurando.

CC: Os despejos da pandemia atingem famílias que tinham uma vida estável e se viram repentinamente desamparadas. Famílias com casa montada: eletrodomésticos, móveis e pertences, tudo que compõe um lar, menos as paredes.

Como é conciliar essa nova realidade dentro das ocupações?

CS: Todas as pessoas que procuram a ocupação de certa forma têm a casa montada, seja simples, eles tinham suas casas montadas. Eles tinham uma vida.

O que é dureza? Quem não aguenta pagar o aluguel e é despejado se desfaz de muitas coisas. Nos dois sentidos. Eu sei que é muito duro você não poder manter sua casa e perder seus pertences. É muito duro a pessoa ter sua vida montada, estabilizada e de repente se vê em uma situação de ter que se desfazer ou até mudar toda hora. Porque não é fácil manter um aluguel, os contratos muitas vezes são de três anos, dois anos e meio. Num cortiço, essas locações que são por intermediário, sem um contrato definido, se atrasa tem que sair.

CC: O MSTC consegue prestar amparo psicológico?

CS: Nós temos assistentes sociais que fazem a triagem, a porta de entrada e conversam diretamente com as famílias. É uma conversa para entender a situação e encaminhar para a nossa rede de psicólogos, que estão sempre atuando conosco. E não só psicólogos, mas também advogados. O MSTC procura ter um trabalho técnico social desde a assistente social, para encaminhar para a rede e prestar esse suporte de saber como é a vida da família, como é a vida da pessoa, e se necessário um suporte jurídico.

CC: Com o crescimento devido a pandemia, vocês receberam auxílio de alguma ONG ou outras entidades para seguir atuando?

CS: Conseguimos. No ano de 2020, nós conseguimos pela Fundação Tide Setubal, que mantém um projeto de costura, no qual empregamos quase oitenta costureiras durante quatro meses para fazerem máscara. Tivemos uma ajuda também para a compra de cesta básica e kits de higiene e até insumos agrícolas de pequenos agricultores. E também da própria sociedade civil.

Nós, do MSTC, fazemos parte também do cadastro no Cidade Solidária, lançado pela prefeitura de São Paulo, que é a distribuição de cesta básica.

CC: O projeto “cidade solidária” já deu retorno para vocês?

CS: Já teve, inclusive no ano passado,  por conta das eleições ele foi suspenso. E agora retornou, e nós já distribuímos cerca de duas mil cestas básicas. Também existe um pacto de solidariedade com a sociedade civil, e é isso que têm mantido. Embora esse ano não tenha tanta integração, como foi em 2020. Está muito difícil, esse ano são as pessoas anônimas que estão mantendo e permitindo a continuidade do nosso suporte

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