Sociedade

A incerteza permanente sobre o amanhã: um quadro da população de rua de São Paulo

Ora vista como incômodo à circulação nas ruas, ora tão grande que parece criar uma cidade dentro da metrópole, a população em situação de rua de São Paulo enfrenta retirada de barracas e demanda acolhimento

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Sob o frio tímido de uma tarde de outono na cidade de São Paulo, Luiz, 40 anos, agradece por ter uma manta para se cobrir na noite que virá. “Pelo menos eu tenho a minha, e quem não tem?”, questiona. Na rua há mais de três anos, Luiz hoje dorme sobre as calçadas do Largo do Arouche, na região central da cidade.

O cobertor foi um dos poucos objetos que lhe restou. No início de abril, ele, como outros cidadãos em situação de rua, teve sua barraca confiscada pela prefeitura da capital paulista. Os agentes da Guarda Civil Metropolitana (CGM) responsáveis pela remoção, lamenta, sequer negociaram a retirada. “Isso é o que mais me dói, entendeu? Quando eles chegaram, eu comecei a gritar com os caras, pedindo para não levarem minhas coisas. Mas eles não querem nem saber”. 

Dentro da barraca, guardava os poucos pertences pessoais, documento de identidade e um item em especial. “A única foto da minha neta”.

O relato de Luiz se junta ao de Moisés, 35 anos, natural do Maranhão, que chegou a São Paulo em 2014 para tentar a vida como cabeleireiro em São Paulo. Ele chegou a atuar na área, mas, depois de ficar desempregado, passou a viver nas ruas. Sentado no meio-fio da rua Vieira de Carvalho, a poucos metros da Praça da República, ele acompanha o olhar atento do seu cachorro sobre os carros apressados da maior cidade do país.

“Minha barraca ficava bem ali”, diz Moisés, apontando para a lateral da sede da Secretaria estadual de Educação, na República, onde outros cidadãos como ele se amontoam na calçada larga.

Ele conta que “gente da prefeitura” levou a sua barraca na primeira semana de abril, depois que ele saiu, por volta do meio-dia, para juntar papelão e lata. Quando voltou do trabalho, a barraca não estava mais lá. “Eles esperam a hora que a gente sai”, diz Moisés, resignado. Segundo ele, não foi a primeira vez que os agentes levaram a sua barraca sem sequer perguntar se podiam fazê-lo ou, ainda, sem oferecer um destino a ele. Dessa vez, entretanto, retirada “na surdina”, como afirma Moisés, o fez perder os seus documentos. “O prejuízo todo é esse”, diz ele, e se pergunta: “como é que eu vou fazer agora?”.

Essa não é, entretanto, a versão que a prefeitura de São Paulo dá sobre as abordagens. Quando a Justiça de São Paulo concedeu uma liminar que liberou a remoção, no dia 3 de abril, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), disse que o trabalho seria feito de forma humanizada, “convencendo as pessoas de que não é possível permitir que haja barracas nas ruas, porque temos que respeitar o direito de todos de transitar e usar as calçadas”. 

Uma população inteira para ser acolhida

Há três eixos centrais envolvendo a população em situação de rua em São Paulo: o tamanho e as diferentes condições socioeconômicas e de trajetória dessa população; as abordagens das forças de segurança nas retiradas das barracas; e, finalmente, que tipo de estrutura para acolhimento é oferecida.

Segundo dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, a cidade de São Paulo concentra 52.226 cidadãos nessa condição, por volta um quarto dos 206 mil que existem no país. Há dez anos, eram menos de 11 mil. Segundo os cálculos das prefeitura, cerca de 600 pessoas se juntam a essa legião todos os meses na capital.

Igor de Souza Rodrigues, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e que pesquisa o tema há quase quinze anos, reconhece a complexidade do quadro e afirma que medidas simplistas não resolvem o problema.

Rodrigues destaca que os cidadãos em situação de rua buscam, no acolhimento, conforto e segurança. “Morar não é só estar debaixo de um teto, morar é pertencer”, aponta Rodrigues. Para ele, políticas de alta exigência, como horários fixos e falta de individualidade, impedem o sucesso das políticas públicas.

A maneira como as políticas públicas para cidadãos em situação de rua vêm sendo desenhadas, avalia, representa um prenúncio “para a eliminação social”. A ideia, segundo Rodrigues, não é somente expulsar as pessoas do local, mas “eliminá-las”. “Não se está fazendo um convite, em que se retira as pessoas de um lugar e as convida a saírem, colocando-as em um outro panorama: se está buscando a expulsão pela eliminação.”

Luiz e Moisés já estiveram em centros de acolhida em São Paulo. Ambos relatam que preferem estar nas ruas, uma vez que os centros – antigamente, conhecidos como “albergues” – são sujos e impõem a seus frequentadores regras rígidas demais.

“Se eu dormir aqui na calçada, no papelão, eu não sofro tanta picada como lá [o centro de acolhida]. Aqui não tem pernilongo. E lá tem muito bicho, mano, você não consegue nem dormir, tem que ficar sentado”, conta Luiz. Moisés, por sua vez, narra que, quando estava no centro de acolhida, era acordado às 6 horas da manhã, sob o grito de “acabou a pernoite!”

Os problemas na estrutura de acolhimento dos cidadãos em situação de rua fazem Igor Rodrigues questionar: “Como convencer um indivíduo de algo que não tem atratividade?”. Segundo o pesquisador, “se transfere a culpa de uma política mal formulada para o próprio indivíduo”.

Entre erros e desafios: com qual estrutura a população em situação de rua pode contar

O secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Carlos Bezerra Júnior, diz à CartaCapital que a retirada das barracas deve ser integrada à rede de acolhimento que, segundo ele, a prefeitura disponibiliza. 

De acordo com Bezerra, São Paulo conta com 315 “equipamentos para pessoas em situação de rua”, principalmente centros de acolhida. Segundo o secretário, “a maioria dos equipamentos atende de maneira digna”. Ele admite, porém, a necessidade de “corrigir as exceções”, a exemplo do número elevado de pessoas em cada centro. O secretário aponta que a  gestão vem fazendo intervenções nos centros de acolhida. “Ao invés de um único centro acolher seiscentas pessoas, como fazia, estamos dividindo em grupos de, no máximo, duzentas pessoas, distribuídas em três centros”. 

Ele reconhece, como o faz Igor Rodrigues, que a população em situação de rua é heterogênea. Por isso, as abordagens e a rede de acolhimento devem ser adequadas aos diferentes perfis. O secretário conta que um dos efeitos sociais da pandemia foi o aumento de 111% no número de famílias em situação de rua, entre 2019 e 2021, na cidade. “Isso nos mostrou um caminho para que a gente pudesse oferecer respostas distintas para a população de rua”.

Para além dos tradicionais centros de acolhida, São Paulo inaugurou um programa intitulado Vila Reencontro, ligado ao projeto “Ampara SP”. CartaCapital visitou a unidade Cruzeiro do Sul da Vila Reencontro, na Zona Norte da capital, inaugurada em dezembro de 2022. Composta por casas modulares de 18 metros quadrados, que são oferecidas a famílias com crianças. Para ter acesso ao local, é feito um processo de seleção, com foco nas pessoas em situação de rua há menos de três anos. Também é oferecida aos contemplados uma estrutura para qualificação profissional, para que eles possam ter condições de trabalhar e adquirir autonomia.

Jucimara é moradora da Vila. Ela conta que foi selecionada quando ainda vivia em um Centro Temporário de Acolhimento (CTA) e que, atualmente, prefere a vida que tem. “Aqui é melhor na liberdade, na privacidade, e na questão de poder ter um canto para ficar com a minha família”. Ao lado do marido e das duas filhas – uma delas, recém nascida -, ela narra que, de fato, sente mais autonomia no novo local, inclusive pelo incentivo que passou a ter para estudar e pela chance que as duas filhas tiveram de serem matriculadas em creches na região.

Vale destacar, entretanto, que a moradia é temporária: segundo a secretaria, o tempo de permanência pode variar entre 12 e 24 meses. Uma pergunta importante, que poderá começar a ser respondida no futuro, é se a maioria das pessoas acolhidas, de fato, alcançará a autonomia desejada. Além disso, atualmente, apenas 80 famílias são atendidas pelo programa. A promessa da gestão municipal é gerar 1.200 vagas até o final do semestre, chegando a mil módulos no final da gestão. A conferir se a expansão do programa acompanhará a multiplicação da própria população em situação de rua de São Paulo.

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