Justiça

‘A gente se sente bandido sem ser’: A vida das famílias ameaçadas pelos conflitos em Anapu

Dezessete anos depois do terror do assassinato da irmã Dorothy Stang, a cidade ainda colhe os amargos frutos da violência agrária

As famílias ameaçadas do Gleba Bacajá - Foto: CTP
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Ainda era meio-dia de quarta-feira, 11 de maio, quando o barulho de caminhonetes e sons de tiros assustaram famílias do Lote 96, em Anapu, no interior do Pará. Cerca de dez homens encapuzados, portando armas de grosso calibre, invadiram as casas e, sob o pretexto de executar uma reintegração, coagiram moradores a ir embora com seus pertences. Duas moradias foram queimadas por completo. 

A Gleba Bacajá, região onde fica o Lote 96, é alvo de disputa entre as famílias de agricultores e herdeiros do fazendeiro Antônio Borges Peixoto, morto em abril. Os ataques sucederam sua morte, em abril de 2022.

Dezessete anos depois do terror do assassinato da irmã Dorothy Stang, Anapu ainda amarga a violência agrária. Na região foram ainda executados, em 2019, os líderes camponeses Paulo Anacleto, Márcio Rodrigues dos Reis e Marciano dos Santos.

“A gente não dorme direito, não tem paz. A gente não deve, mas se sente um bandido sem ser”, conta Dona Elizete, agricultora que presenciou o segundo tiroteio, na madrugada de 09 de junho. “Acordamos às 3h da manhã já escutando os tiros e aproximando cada vez mais perto do nosso barraco”. 

Ela e o marido raramente dormem em casa. Na área moram cerca de 54 famílias e as ‘roças’ não ficam próximas umas das outras, logo, em várias ocasiões os agricultores vão dormir na casa de conhecidos para evitar serem alvos de violência. 

Naquela noite, Elizete pegou apenas algumas roupas, documentos e deixou a casa – o medo era de voltar e encontrá-la queimada. “Já fica tudo no jeito porque nós estamos sobressaltados, a gente sabe que a qualquer hora a gente pode ser atacado”, conta. 

Eles ficaram o restante da madrugada escondidos nas plantações e só conseguiram pedir ajuda ao vizinho mais próximo, a mais de 4km de distância, às 5h da manhã, quando ainda podiam escutar os sons dos tiros. 

A situação também amedrontou a família de Dona Baiana. Ela e o esposo saíram correndo às 2h da manhã depois de escutar 15 tiros perto da sua casa. 

Além de dormirem em outras casas, as famílias priorizam o trabalho conjunto. Quando alguém precisa sair, eles vão em grupo e quem fica, também não pode estar sozinho. Dessa forma, eles conseguem alertar uns aos outros em caso de invasão ou tiroteio.   

Em ambos ataques, dos dias 11 de maio e 9 de julho, não houve mortos, nem feridos. No entanto, neste último, era suposto que a região estivesse guarnecida de proteção da Polícia Militar, contou à CartaCapital a defensora pública agrária de Altamira, Bia Albuquerque.

O recurso tinha sido solicitado pela Defensoria Pública da região e autorizado pelo Tribunal de Justiça. 

Antes do primeiro ataque também era suposto existir alguma forma de proteção para os moradores, já que as ameaças foram denunciadas para a Polícia Federal pela liderança local, Erasmo Alves Teófilo. 

“Circulou um áudio […] que dizia que o grileiro Peixoto tinha falecido, a comunidade não tinha respeitado o luto e que estariam invadindo o restante da propriedade e essa era uma chamada pedindo para que eles se unissem para tomar uma ação imediata”, relata Teófilo, que recebeu o arquivo uma semana antes do ataque e realizou a denúncia no mesmo dia. 

O áudio ainda dizia que “invasor tinha que ser tratado ou na porrada, mas o certo mesmo era na bala”, se referindo aos agricultores do Lote 96. 

Ao receber a informação que estavam realizando uma reintegração de posse irregular, ele foi junto com outros moradores ao encontro das famílias ameaçadas pelos pistoleiros. “Só não me executaram porque eu estava com a guarnição da PM”. Teófilo faz parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Pará. 

Ele já foi alvo de três tentativas de execução nos 11 anos em que mora na região. Desde então, precisou reduzir seu deslocamento e é acompanhado para todos os lugares que precisa ir. Em 2020, chegou a deixar Anapu. 

Ao saber dos riscos de morte que enfrenta, Teófilo pretende deixar de imediato a liderança da comunidade e se mudar da região, antes que as perseguições fiquem ainda mais difíceis de controlar. “Quem vai garantir nossa vida? O que resta pra gente é denunciar, cobrar e esperar que aconteça alguma coisa”, desabafa. 

Ele pede ajuda via vaquinha para sair da região em que mora com a esposa, dois filhos, a mãe e o pai, que sofre de Alzheimer. 

O terceiro ataque dos pistoleiros estava previsto para o dia 22 de junho. Dessa vez, Teófilo fez uma denuncia em vídeo para alertar sobre a ocasião. 

“Infelizmente não estamos tendo resultado a condição de cessar essa situação […] Até quando pessoas têm que morrer para justificar ações. Vamos tomar providências hoje, imediatas, agora. Canso. Chega. Não estamos mais dormindo, não estamos mais produzindo, não estamos fazendo nada. Estamos servindo de zumbis e sendo ameaçados 24h por toda essa situação. Hoje o Lote 96 não dorme. Hoje nós não dormimos. Hoje nossas crianças vão ficar em claro sem saber se vão ver a luz do dia amanhã”, disse.

Nesse dia, a Polícia Militar fez a escolta evitando um novo tiroteio e o acirramento do conflito. 

Em seguida, a Justiça Federal de Altamira determinou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, criasse um assentamento nos lotes 96, 39, 41 e 97. O assentamento agroflorestal recebeu o nome da irmã Dorothy Stang.

No entanto, essa conquista dos trabalhadores e trabalhadoras rurais não excluiu as perseguições. 

Nesta quinta-feira 7, em contato com CartaCapital, Teófilo conta que a criação do assentamento gerou uma rebelião dos grileiros contra as famílias, que neste momento estão fechando a rodovia Transamazônica, principal via que dá acesso do extremo leste do Nordeste, em Cabedelo na Paraíba ao extremo oeste da região Norte, em Lábrea no Amazonas. “A situação aqui está em qualquer momento de acontecer uma tragédia”, conta. 

O vídeo divulgado mostra Abimael da Silva Ramos, pastor e líder do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Anapu se manifestando contra a medida do Incra, especialmente pedindo o afastamento dos funcionários Danilo Hudson e Danilo Lima, que segundo ele, estão ‘tomando terras’ e ‘tocando o terror’ contra produtores rurais. “Anapu vai parar, nós vamos fechar a BR-230 para que as autoridades ouçam nosso apelo, chega dessa guerra, desse derramamento de sangue”. 

Ramos concorreu em 2020 ao cargo de prefeito em Tomé-Açu pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). “Queremos que mude a jurisprudência do Incra de Anapu para Marabá pois se torna mais parto, fica 700km daqui para a regional em Santarém. É um apelo nosso, as autoridades nos ouçam ou vai parar Anapu e a transamazônica […] Pessoal todos estão avisados, Anapu vai parar, ou nos ouve, ou vai acontecer o que estamos avisando“.

Diante das ameaças, os moradores ainda preveem um projeto para instalar câmeras de segurança nas terras para que possam ter registros dos ataques e, consequentemente, obter respostas da Justiça quanto à punição dos envolvidos.   

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