Sociedade

A força das mulheres

A revolta feminina é também a revolta de um povo humilhado

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Para avaliar a importância das manifestações protagonizada pelas mulheres no Brasil inteiro no sábado 29, precisamos recuperar a memória do ataque à democracia realizado a partir de 2013.

Sem este pano de fundo, sua extraordinária importância se torna incompreensível, assim como Jair Bolsonaro só é compreensível partindo-se deste mesmo contexto.

O grande veículo do ataque à democracia foi a gigantesca fraude chamada Operação Lava Jato, apoiada pela mídia venal e que logrou acanalhar o STF e o Estado de Direito.

A Lava Jato foi a ponta de lança do ataque seletivo e exclusivo primeiro contra a política e a soberania popular e depois contra o PT e Lula como representante das classes populares.

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Não houve ainda qualquer debate público amplo que permitisse um real aprendizado acerca das causas e consequências desse fato. Ainda que debatido em mídias alternativas, o ganho reflexivo para o público de forma geral é limitado.

Para este público, o golpe fede e todos sentem o mal cheiro. Existe algo de podre no ar, mas o corpo não foi exumando. O fétido cadáver do golpe ainda está na sala e quem vela o defunto são os seguidores da mensagem de ódio do candidato abertamente fascista.

Nas diversas entrevistas que realizei com os seguidores de Bolsonaro para meu novo livro “A classe média no espelho”, a ser lançado nas próximas semanas, um aspecto salta aos olhos.

Se seus seguidores da “alta classe média” representam o velho cinismo de classe e o ódio aos pobres, na “massa da classe média” o perfil é muito distinto.

Eles formam, em boa medida, os perdedores diretos do golpe. Muitos são os que decaíram socialmente pelo empobrecimento geral do País. Entrevistei engenheiros da Petrobras que se tornaram motoristas do Uber, ou ex-empresários que dirigem carros de luxo para eventos.

A imensa maioria das trajetórias descendentes nas minhas entrevistas com a baixa e a média classe média é de fervorosos seguidores de Bolsonaro.

Como são socializados dentro da ideologia de mercado e crias da ideologia do capitalismo financeiro, que põe a culpa do fracasso produzido socialmente no próprio trabalhador, renomeado de “colaborador” ou empresário de si mesmo”, o bolsonarista agride para não se deprimir e não se desesperar.

Para evitar que a frustração, e a agressividade que ela cria, seja dirigida contra si mesmo, o que o levaria ao alcoolismo, ao desespero e à depressão, o bolsonarista externaliza sua raiva e frustração em um alvo socialmente aceitável: o antipetismo cevado pela mídia e pela Lava Jato durante os últimos cinco anos.

O antipetismo se manifesta de duas maneiras: como desculpa social para o empobrecimento relativo e como objeto externo para canalizar a frustração e o medo da proletarização.

Ainda que este não seja o único nicho de seguidores, ele foi, na minha pesquisa, um padrão que se repetia. Os bolsonaristas são, em grande medida ao menos, as “viúvas do golpe”, seja no sentido econômico, seja no sentido de sua legitimação moral para a vida.

Jair Bolsonaro, para seus seguidores, é simplesmente Sérgio Moro armado com um fuzil. O moralismo de fachada, dirigido contra os pobres e contra a soberania popular, que se recusa a morrer como um vampiro, sempre assumindo novas vestes.

Da toga acanalhada pelo moralismo postiço para a barbárie explícita do ódio dos desesperados. Não se compreende Bolsonaro sem saber que ele é a continuação mais perfeita de Moro, tanto para quem odeia os pobres quanto para quem se aproximou da pobreza.

Como reagir? Como reconquistar a inteligência de um povo inteiro que há cem anos é enganado por sua elite e por seus intelectuais cooptados? Como evitar a compulsão à repetição de uma sociedade consumida pelo moralismo barato?

Moro e sua perseguição a Lula não é mais do que a repetição de Carlos Lacerda e sua perseguição a Vargas. Quando vamos, enfim, aprender a não sermos mais enganados por pilantras, oportunistas e justiceiros? Quem não aprende repete a sua história.

Como um povo não aprende em uma sala de aula, ainda mais com uma mídia tão vil, o aprendizado tem que começar com o estopim das emoções. Daí a extraordinária importância do belíssimo movimento iniciado pelas mulheres brasileiras contra o fascismo e contra o ódio bestial e covarde, que teve adesão internacional e se espalhou pelo País.

O reaprendizado democrático que a sociedade brasileira tem de realizar para sobreviver precisa começar em algum lugar e de algum modo. Tem que existir um fogo inicial, uma ignição para dar a partida neste motor.

Depois de começado, o aprendizado coletivo não mais pode ser detido. Uma curiosidade puxa a outra, e um direito ofendido lembra o outro. Ninguém consegue mais deter o rastilho de pólvora depois de aceso.

No caso brasileiro, que parecia sem solução, começou do modo mais bonito que poderia começar. O barulho ensurdecedor do lindo coro de vozes femininas no Largo da Batata em São Paulo e em todas as grandes cidades brasileiras foi a melhor coisa que aconteceu desde muito tempo.

A luta das mulheres mostra que as tiranias privadas são o outro lado da moeda das tiranias públicas. A apologia do estupro, do rebaixamento e da humilhação consentida da mulher, é apenas o outro lado da apologia da tortura e da desumanização do pobre transformado em bandido a ser morto impunemente. Um é inseparável do outro e um vem sempre acompanhado do outro.

Por conta disso, a revolta das mulheres é também a revolta de todo um povo humilhado e perseguido e que teve sua opressão “moralizada” e legitimada pelo moralismo de fachada.

As mulheres iniciaram um processo de aprendizado coletivo, o qual, quero crer, não pode mais ser detido. Um processo suprapartidário, como tem que ser todo grande movimento de libertação real, de reconstrução democrática e de renovação social.

Um povo explorado e saqueado por sua elite econômica e jurídica como se fosse inimigo e inferior, uma opressão “moralizada” pela covardia da humilhação sistemática de um povo que já teria nascido “corrupto”, pode agora renascer com o orgulho altivo e lutador.

E isso tudo graças, antes de tudo, às mulheres que lutam como só uma garota sabe lutar.

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