Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

Bolsonarismo, antipetismo e #EleNão

Movimento puxado por mulheres é um vento separado que corre em paralelo à dita polarização

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Centenas de cidades no Brasil e no exterior tiveram manifestações de repúdio a Bolsonaro no sábado 29, que congregaram uma miríade de pessoas das mais diversas origens, raças e credos, somando evidências contrárias à percepção errônea de que pautas identitárias causam divisão.

O movimento ganhou tração a partir do engajamento de mulheres online, com o uso da hashtag #EleNão, mas sobretudo a partir do grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, criado pela baiana Ludmilla Teixeira no Facebook há um mês, e que recebe cerca de 10 mil pedidos de entrada por minuto.

Em entrevista a Renata Cafardo (Estadão), Teixeira diz: “O que eu sei é em quem eu não vou votar”, representando a insatisfação de muitas brasileiras não somente com o candidato do PSL, mas também com o quadro eleitoral.

Mulheres são chave analítica das eleições e até mesmo no debate de domingo 30/09 isso ficou explícito. Nem todos os candidatos mencionaram suas vices ou propostas para as brasileiras, mas nenhum deixou de comentar o protagonismo das mulheres nos acontecimentos do final de semana.

As manifestações, enormes e históricas, lotaram as ruas de gente demonstrando repúdio a misoginia, racismo, homofobia, transfobia e outros preconceitos arraigados no imaginário nacional, demonstrando que há muita gente disposta frear o futuro sombrio que paira sobre o Brasil.

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No Parque Farroupilha, em Porto Alegre, a versão de Bella Ciao feita para o evento era a que mais contava com o coro da multidão. O trecho “Somos mulheres, a resistência, por um Brasil sem fascismo e sem horror! Vamos à luta pra derrotar o ódio e pregar o amor”, cantado a plenos pulmões e repetidamente indica qual era o propósito do evento – que se repete no dia 06 de outubro.

No ato, mulheres eram sem dúvida a maioria, o que era esperado visto que chamamos o movimento. Mas eram também as protagonistas: havia homens aliados e toda sorte de gente amiga, mas mulheres somavam o maior número de corpos e palavras de ordem.

Havia idosas, adolescentes, deficientes, brancas, negras, indígenas, de muitas classes sociais, filiações religiosas e inclinações ideológicas, e apesar das diferenças estávamos unidas, aguerridas, e destemidas diante da possibilidade de retrocesso e destituição de nossos direitos e dignidade. No evento havia bandeiras, partidos e candidatas, porém não houve nenhuma tentativa de cooptar o que é, de verdade, a manifestação concreta de uma revolução feminista, puxada online e materializada em tantas ruas e praças no sábado.

Unidas contra o que o capitão representa, mulheres estão dispostas a seguir na luta contra esse fascismo patriarcal que histórica e sistematicamente tenta nos aniquilar. E não é de hoje a participação das mulheres em lutas políticas e sociais: como lembrou a pesquisadora feminista Landa Ciccone, em seu perfil no Facebook, quem trabalha com a história do pensamento – e a participação das mulheres nela – sabe que foram protagonistas reais e fundamentais de muitos eventos antes desse.

Como a Revolução Francesa (1789), a Comuna de Paris (1871), o Motim das Mulheres Mossoroenses (1875), a Revolução Russa (1917), a Guerra Civil Espanhola (1936), as Mulheres Contra a Censura/Ditadura (1968) e a Marcha das Mulheres Sobre Washington (2017), para citar apenas alguns.

Landa também nos lembra que mudanças significativas na sociedade ocorrem por causa do levante de mulheres, que garantem não somente os nossos direitos, mas também operam mudanças de consciência, visto que conosco sempre se levantam outros grupos marginalizados.

Tenho pensado que a força de nossas vozes nos últimos dez ou quinze anos – bastante exponencializada pela nossa ocupação de mídias online, o que colabora com a amplificação e alcance dos discursos feministas – pode fazer com que esse seja o período do “último baile da ilha fiscal” do patriarcado.

Sempre estivemos aqui, porém nunca tão munidas da possibilidade do registro de nossa participação social e política na História. Hoje disputamos palavras e narrativas como nunca antes pudemos, e penso que não será mais possível convencer ninguém – ao menos não sem muita violência – de que somos meros objetos decorativos, animais domesticáveis, criaturas belas, recatadas, do lar.

Somos sujeitos e nunca não fomos sujeitos políticos. E somos líderes de uma verdadeira revolução. Uma revolução feminista, horizontal, orgânica e capilar, que no Brasil se move como um vento separado, driblando a polarização reducionista que acachapa diferenças e aglutina ódio. O que propomos é um resgate da política. Estamos aqui para sustentar a democracia, afirmando juntas os direitos das mulheres e de toda a população brasileira, em sua imensa diversidade.

“Não foi partidário nem apartidário; foi civilizatório” foi a excelente síntese do evento feita por Elenara Vitoria Cariboni Iabel, uma das fundadoras da Themis Gênero Justiça e Direitos Humanos, ONG que atua pelo empoderamento legal de mulheres há 25 anos. Esse discernimento é crucial para compreender o fenômeno #EleNão.

Porém não é o único: é necessário também discernir entre a sanha antipetista, o antipetismo, e posturas críticas ao PT. Esses dois últimos são bastante lúcidos e pautados em fenômenos da concretude do real, e permitem diálogos e a apresentação de perspectivas múltiplas, enquanto a sanha se baseia em pouco além de ódio e da recusa a ouvir ou enxergar quaisquer posicionamentos divergentes.

É essa sanha uma das coisas que mais impede as pessoas de quererem ou conseguirem enxergar que o movimento #EleNão transcende a polarização ideológica (esquerda/direita) ou partidária, pois apresenta uma terceira clivagem: gênero.

Este movimento se organiza não a favor de um ou outro candidato, mas a partir da recusa não só do machismo e racismo que Bolsonaro encarna, mas também do projeto autoritário, antidemocrático, violento e genocida que sua chapa representa. #EleNão não é campanha para ninguém: é um grito da sociedade brasileira, puxado por mulheres, mas que contempla todas as identidades, contra a possibilidade de elegermos democraticamente alguém que não tem nenhum compromisso com a democracia.

Essa é uma eleição bastante dura, e a complexidade da vida não cabe em simplificações como “#elenão é petê disfarçado”. Quem fala isso só expõe seu parco entendimento do complicado cenário político de hoje. É bastante triste e desesperador que seja tão difícil explicar isso, e infelizmente não há como mostrar o que olhos não querem ver, não há fala que alcance ouvidos fechados. A violência, incluso a manifesta por quem apoia esta candidatura, começa na recusa absoluta da perspectiva do Outro.

O grupo identitário que mais declara querer eleger Bolsonaro são homens cis, brancos e heterossexuais, e muita gente endinheirada anuncia seu apoio irrestrito à chapa. Gente formalmente instruída, que vem mostrando que a educação não parece ser suficiente para sobrepor o privilégio que carregam. Estudam e se qualificam, e aprendem muita técnica, mas quase nada sobre o social. Não aprendem a se enxergar como recipientes de uma série de benesses que privilégios como ser branco e ter dinheiro conferem.

Tenho dificuldade em acreditar na simplificação de que essas pessoas só “odeiam”, no entanto. Pode ser mesmo que o ódio – de classe, de raça, de gênero – seja motor de suas decisões eleitorais, mas penso que dois conceitos podem explicar melhor esse fenômeno de gente rica e teoricamente educada apoiar um projeto tão explicitamente excludente: a noção de “pacto narcísico”, que Cida Bento usa para descrever a branquitude ,mas que pode ser aplicada a outras operações de poder e privilégio, e a de “banalidade do mal”, que Hannah Arendt propõe para salientar que a maldade floresce na ausência de reflexão crítica.

Dois conceitos, por sinal, propostos por mulheres racializadas. A marginalização é uma potente ferramenta para entender o poder, que marginaliza justamente para permanecer nas mãos de quem já o tem.

Durante o ato em Porto Alegre, Juliana Strassacapa entoou o que já pode ser considerado um hino feminista, sua canção “Triste, louca ou má”. Todas cantamos junto. Porém cantamos felizes e lúcidas, pelo bem da nação. E naquele momento tive muito orgulho de ser brasileirA. Obrigada, mulheres. Avante, mulheres!

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