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Otimizar o massacre

O exército de Israel encontrou os meios e os métodos. Inverteu as recomendações no atendimento aos feridos

Sob o pretexto de destruir túneis do Hamas, Israel explode hospitais – Imagem: Ali Jadallah/Anadolu Agency/AFP
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Estou escrevendo como médico. E como médico, durante muitos anos, fui membro do Serviço de Emergência do Hospital das Clínicas da USP, centro avançado de cuidado de pacientes com trauma. Anos de pesquisas, estudos, experimentos, testes e análises nos orientaram, e orientam ainda hoje a todos os especialistas e os centros dedicados ao atendimento de emergências, principalmente as traumáticas. Vejamos o que dizem os cientistas no mundo e o que ocorre, todos os dias, na trágica situação de Gaza.

Recomendam os especialistas que, para otimizar o atendimento aos pacientes traumatizados, alguns passos devem ser sempre realizados.

1. No mundo: atendimento imediato ao paciente. Cada minuto com paciente sangrando ou sendo esmagado por um deslizamento ou um prédio destruído, acarreta acelerada piora das condições clínicas e da viabilidade de órgãos vitais. Em Gaza: bombardear milhares de prédios e acertar centenas de pacientes ao mesmo tempo inviabiliza qualquer tentativa de alcançar os feridos e iniciar atendimento médico e paramédico rápido e adequado. Fica a cargo de cada familiar desenterrar seus filhos debaixo dos escombros e carregá-los para algum lugar com mínimas condições de atendimento.

Todas as medidas médicas consagradas no resto do planeta são sistematicamente bloqueadas na Faixa de Gaza

2. No mundo: transporte pronto e acelerado dos feridos tem de ser realizado por equipes treinadas e em ambulâncias com prioridade de passagem em vias públicas. Vários estudos demonstram que as chances de sobrevida de cada paciente dependem de cada minuto (literalmente) de ­demora em alcançar um centro de trauma adequado. Em Gaza: ruas interditadas por escombros e multitude de feridos simultâneos, espalhados pelas cidades e pelos bairros, bombardeios incessantes, além de escassez de viaturas equipadas e times de médicos e paramédicos (muitos já feridos ou mortos no conflito) e da falta de combustíveis, tornam o transporte de cada pessoa traumatizada uma aventura muitas vezes fatal. Aliás, hoje o exército israelense bombardeou ambulâncias que tentavam transportar feridos, matando doentes, médicos e paramédicos, justificando esta ação como legítima neutralização de possível transporte de algum membro do Hamas.

3. No mundo: durante o transporte pelas ambulâncias, o contato direto dos paramédicos com o centro de trauma a receber o paciente é crucial, para que a equipe médica de plantão esteja pronta, com especialistas para cada tipo de trauma (neurocirurgião, se houver traumatismo craniano; ortopedista, se tiver lesões e fraturas nos membros e na coluna; cirurgião cardiotorácico, se o tiro ou o impacto atingirem o tórax; oftalmologista…). Em Gaza: cortadas as comunicações (internet, telefones etc.) não há como avisar as condições dos pacientes transportados, nem seu número, muito menos a gravidade de suas lesões. Ao chegarem ao hospital (quando chegam) os médicos (enquanto conseguirem sobreviver às bombas) têm de adivinhar a real situação em poucos minutos. Lembrem-se que cada minuto conta!

4. No mundo: os pacientes devem receber imediatamente os melhores tratamentos, para reduzir as chances e a evolução do estado de choque. Aliviar o sofrimento, reduzir a dor e iniciar prontamente procedimentos de reparo às lesões e contenção do estrago (famoso damage control) podem significar a diferença entre a vida e a morte para cada paciente em questão. Em Gaza: nos hospitais faltam medicamentos, falta eletricidade, falta combustível para os geradores, faltam especialistas (muitos mortos pelas bombas), e faltam (pasmem) anestésicos! Aliviar o sofrimento dos feridos, crianças e adultos, ficará para o segundo plano. Tratamento com o que sobrou. Como justificar a falta de tudo isso? O exército de Israel evitaria assim que medicamentos ou combustíveis sejam utilizados por (ou em) algum membro do Hamas. Os outros milhares de pacientes são meros colaterais desta tragédia.

Faltam lugares para os feridos nas alas médicas, além das condições mínimas de atendimento aos pacientes – Imagem: Mahmud Hams/AFP e Bashar Taleb/AFP

5. No mundo: realizados os atendimentos, os procedimentos e as cirurgias, pacientes graves devem ser levados a Unidades de Terapia Intensiva, utilizando os aparelhos de suporte à vida mais sofisticados para recuperação adequada e manutenção dos sinais vitais até a cura e a alta. Em Gaza: novamente, sem eletricidade, sem água e sem vagas (os leitos das UTIs estão superlotados pelo número astronômico de pacientes graves). Para piorar um pouco mais, o exército de Israel recentemente mandou esvaziar os hospitais do norte de Gaza, já lotados com doentes graves e orientou levá-los aos poucos hospitais no sul da Faixa de Gaza (estes também superlotados), pois os hospitais serão bombardea­dos em poucas horas. Os médicos não souberam o que fazer com as dezenas de pacientes em ventiladores elétricos nestes hospitais. E não têm muito o que fazer. Somente esperar pelas bombas e pela morte certa. Sem remédios, sem água e sem eletricidade, as bombas mudariam muito pouco nas ínfimas chances de sobrevida destas vítimas.

6. No mundo: ao transferir um paciente grave de uma instituição para outra, as equipes médicas dos dois hospitais têm de se comunicar, expor a situação clínica corrente de cada paciente, solicitar leito apropriado e coordenar o transporte em ambulâncias equipadas com ventiladores para suporte de vida e equipe de saúde treinada. Somente então, e com todas esses pré-requisitos satisfeitos, os pacientes poderão ser transportados. Em ­Gaza: vide acima. Nada disso está disponível. Mais uma vez, um comboio de ambulâncias hoje transferindo feridos para os hospitais do sul de Gaza (conforme solicitado e orientado pelo exército de Israel) foi bombardeado e muitos dos pacientes e seus socorristas, mortos.

7. No mundo: doentes muito graves, com lesões complexas, deveriam ser transportados pelo ar, geralmente por helicópteros até centros mais adequados, especializados ou equipados, mesmo para outras cidades vizinhas e até outros estados, se necessário. Em Gaza: helicópteros? Nem pensar. Vizinhos? Bloqueio total às fronteiras. Também nem pensar.

Como disse, e repetiu, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, esta será uma guerra longa. Nos dias seguintes, seus ministros e generais afirmaram que, durante esta guerra, o cerco a Gaza será completo, cortando fornecimento de água, alimentos, eletricidade e combustível a mais de 2 milhões de pessoas. E assim foi feito. Quem não morrer de balas e bombas, ou esmagado por prédios destruídos, certamente morrerá de fome e sede. Justificativa do exército de Israel para esses absurdos “danos colaterais” de civis mortos aos milhares: o ­Hamas poderia estar usando crianças e mulheres como escudos humanos. Logicamente, quando todas as crianças e as mulheres de Gaza estiverem mortas, não haverá mais onde o Hamas se esconder. Será fácil então eliminá-lo e cantar vitória.

“Estamos usando vinagre para desinfetar as feridas”, desabafou o cirurgião Ghassan A. Sitta, voluntário em Gaza

Como a maioria dos pobres habitantes de Gaza morrerão de bombas, fome ou sede, também não faz sentido ter um hospital para tratar doenças crônicas. Com esta lógica, o exército de Israel acabou de bombardear e interditar o único hospital para doentes com câncer em Gaza. Problema resolvido.

Hoje, o cirurgião britânico doutor Ghassan A. Sitta, voluntário nos hospitais de Gaza, desabafou: “Estamos usando vinagre para desinfetar as feridas. Sem luz e sem combustível para geradores, os hospitais estão se transformando em cemitérios. Os pacientes estão morrendo nos corredores. Desastre. Tragédia humana”.

O exército de Israel encontrou os meios e os métodos ideais para otimizar o massacre. Inverteu todas as recomendações que o mundo (inclusive Israel) deveria seguir no atendimento aos feridos. Cessar fogo ou pausa humanitária? Para quê? E os “líderes” do mundo continuam assistindo a esta tragédia nas telas de seus televisores ou celulares, provavelmente comendo pipoca! •

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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