Saúde

Imunização em massa demora pelo menos 8 meses, preveem ex-ministros da Saúde

José Gomes Temporão, Alexandre Padilha, Nelson Teich, Humberto Costa e Arthur Chioro analisam os desafios e perspectivas do combate à Covid

Foto: MAURO PIMENTEL/AFP
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por Maurício Thuswohl

Os erros cometidos pelo governo federal na aquisição de vacinas contra a Covid-19 farão com que, na melhor das hipóteses, a imunização dos cerca de 120 milhões de brasileiros aptos a se vacinar se estenda por até oito meses. Esta é a conclusão do debate que reuniu virtualmente, na noite da quarta-feira 20 cinco ex-ministros da Saúde: José Gomes Temporão (2007-2010), Humberto Costa (2003-2005), Alexandre Padilha (2011-2014), Arthur Chioro (2014-2015) e Nelson Teich (2020). Também participou a empresária Maria Luiza Trajano, representando a sociedade civil.

Os cálculos são do ex-ministro Temporão. Segundo ele, em condições normais, Fiocruz e Butantan teriam condições de entregar ao Ministério da Saúde a partir de março 30 milhões de doses por mês.

Como nem jovens nem mulheres grávidas poderão ser vacinados, sobram 150 milhões de brasileiros. “Vamos colocar aí uma cobertura de 80%, o que seria excepcional. Precisamos, então, vacinar 120 milhões de pessoas e ter 240 milhões de doses, duas por pessoa. Ao ritmo de 30 milhões de doses produzidas por mês, só teríamos a quantidade de doses necessária ao final de oito meses.” O prognóstico, lamenta, não é dos melhores. “Está muito distante, temos que tentar encurtar. Quanto mais se joga pra frente esse horizonte, mais internações, mais infecções e mais óbitos.”

Arthur Chioro projeta um cenário ainda mais difícil: “Eu hoje apostaria que, dada as condições vigentes, não conseguiremos garantir uma cobertura vacinal suficiente para o controle da Covid-19 no País antes do final do ano que vem”, disse o ex-ministro, também médico. Se nós, por exemplo, tivermos só a vacina do Butantan, que tem a capacidade de produção diária de um milhão de doses, demoraremos 440 dias para vacinar a população brasileira”. 

A culpa por esse drama, diz Chioro, é do governo Bolsonaro: “As decisões desde o início foram absolutamente equivocadas, não temos nenhuma garantia de que teremos vacina”. A longa espera pela imunização comunitária, diz ele, colocará o Brasil no fim da fila do retorno à normalidade. “Com custos políticos, sociais, econômicos e sanitários terríveis.”

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde

O problema do Brasil não logístico, garantiu Temporão, que há uma década comandou a vitoriosa vacinação em massa contra a H1N1 no país: “O Brasil tem uma gigantesca competência e tradição. Nosso Programa Nacional de Imunização é, de longe, o melhor do mundo. Em 2010 nós vacinamos 80 milhões de pessoas em três meses. Então, não é falta de capacidade logística”, diz.

Segundo o ex-ministro, o PNI enfrenta agora três obstáculos inéditos aos seus 50 anos de existência: “O primeiro é a falta de coordenação, liderança e legitimidade do gestor federal. Nós nunca tivemos uma vacinação em massa sem que o Ministério da Saúde tivesse papel de liderar, coordenar, planejar e dar apoio técnico, logístico e de insumos aos estados e municípios”, enumera. “O segundo é que, pela primeira vez, vamos iniciar uma campanha de vacinação com uma máquina de fake news contra as vacinas. Isso nunca aconteceu”.

O terceiro obstáculo, segundo Temporão, é de natureza científica: “Em todas as outras epidemias respiratórias nós já tínhamos vacinas pré-existentes ou foi possível, como no caso do Influenza, rapidamente dispor de uma vacina. Desta vez, estamos usando vacinas de plataformas tecnológicas novas”, diz.

O debate foi organizado e mediado pelo deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). Padilha, que se tornou ministro tempos depois da epidemia de H1N1, lembrou a campanha contra a doença para mostrar que, se houvesse competência federal, o Brasil poderia realizar uma imunização rápida e vitoriosa contra a Covid-19. “Já mostramos que é possível vacinar 80 milhões de brasileiros em três meses. Hoje, isso significaria imunizar todos os profissionais de saúde, idosos, toda a população indígena e quilombola, todos os profissionais de educação, da segurança pública, do transporte público, de manutenção das cidades, todas as pessoas com deficiência”.

 

A comparação com o H1N1, pontou Temporão, também mostra um outro erro do General Pazuello, atual ministro da Saúde. “Desde o começo, sabíamos que a única possibilidade de virar o jogo era dispor de uma ou mais vacinas. Deveríamos ter negociado desde maio com outros fornecedores. Na vacinação contra o H1N1, o Butantan produziu 60 milhões de doses, mas nós precisamos adquirir outras 40 milhões fora. Hoje, por exemplo, temos aí a Sputnik V, que a Argentina está usando. Poderíamos ter planejado melhor”, disse.

Os ex-ministros previram meses difíceis pela frente: “Não há perspectivas da própria garantia do suporte de vacinas em quantidades adequadas e em um prazo adequado para garantir a proteção coletiva”, afirmou Arthur Chioro. Para Humberto Costa, o país vive o ápice da doença. “Vamos ter que trocar esse pneu com o carro andando”, disse, lembrando a tragédia em Manaus. “Mesmo com toda a tragédia, o Amazonas teve apenas 18% da população infectada. A imunidade de rebanho está longe”, alertou. Os ex-ministros brasileiros querem agora enviar uma carta aos ministros da Saúde da China e da Índia, fazendo um apelo pela agilidade do processo da aquisição de vacinas e insumos.

Estranho no ninho

Único dos ex-ministros da Saúde presentes a ter trabalhado no governo Bolsonaro (embora por menos de um mês), Nelson Teich não se furtou a condenar a condução do programa de vacinação pelo atual ministro da Saúde, embora não tenho citado o nome de Pazuello: “O grande desafio hoje é executar um plano de vacinação bem estruturado. Vai envolver muita coisa, como trazer o IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) da China. Isso é o que vai definir quantas pessoas mais a gente poderá perder”.

Ao contrário de Temporão, Teich previu dificuldades logísticas para executar a vacinação em massa: “A Covid vai sobrecarregar o nosso PNI. Minha preocupação é que se subestime a dificuldade. O PNI tem tido dificuldades. Nos últimos dois anos, não conseguimos bater as metas. Desde 2017 não conseguimos vacinar o que é proposto contra o sarampo. Se tiver realmente que acrescentar 300 milhões de doses, vamos ter um PNI absolutamente sobrecarregado”, disse.

Teich lembrou que estava à frente do Ministério da Saúde quando as negociações com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca começaram: “Quem trouxe a vacina de Oxford fui eu. Na época, a pesquisa estava começando e se aproximar de Oxford era uma oportunidade de seguir com a pesquisa aqui se a vacina desse certo, além de trazer a vacina mais rapidamente ao País”. E alfinetou: “Faz a diferença ter alguém da área da Saúde na liderança, porque esta pessoa enxergará a importância daquele momento. Um leigo, não.”

O ex-ministro da Saúde, Nelson Teich. Foto: Júlio Nascimento/PR

Diplomacia fracassada e a vacina russa

Além do próprio presidente Bolsonaro e do ministro Pazuello, foi alvo de duras críticas o Itamaraty, comandado pelo ministro Ernesto Araújo: “Nós poderíamos ter reservado até 212 milhões de doses do consórcio liderado pela OMS. Por questões ideológicas, por miopia, estreiteza e descompromisso, nós só a reservamos, e no final da fila, para apenas 10% da população”, disse Chioro.

E completou: “Apostamos todas as fichas em uma única vacina com um instituto muito caro a todos nós: a Fiocruz. Mas, jamais em um país superpopuloso e que tem um sistema nacional de vacinação como o nosso, poderíamos ter cmetido um erro tão crasso de planejamento.”

Temporão ressaltou o mal-estar diplomático com a China: “O governo conduziu muito mal essa questão, ofendendo a China, que produz insumos para tudo: testes, medicamentos, genéricos, vacinas. Qualquer coisa que você precisar de equipamento de diagnóstico é a China que produz. Diplomacia rasteira, agressiva e incompetente. A diplomacia na saúde despareceu e a respeitabilidade que o Brasil tinha se evaporou por culpa do governo”.

O nó envolvendo a aquisição das vacinas produzidas pela Rússia também foi citado pelo senador Humberto Costa (PT-PE), que fez cobrança à Anvisa: “Nós temos que cobrar que a Anvisa rapidamente tome posição. O Consórcio Nordeste encomendou 55 milhões de vacinas produzidas pela Rússia e a Anvisa, na primeira reunião, não quis sequer admitir a possibilidade de iniciar uma fase de testes aqui no Brasil. O Supremo tem que se impor. Se a Argentina já está vacinando com a Sputnik V, por que aqui no Brasil não podemos fazer o mesmo?”, indagou.

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