Retrospectiva 2018

O Rio de Janeiro após a intervenção: medo ou otimismo?

Número de tiroteios cresceu 56% desde quando os militares assumiram o controle da segurança pública do Estado, em fevereiro

(Foto: Fernando Frazão/EBC)
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Mesmo no Rio de Janeiro, acostumado com a violência, esta é uma cena incomum para o início de dezembro: no meio de um culto religioso, policiais invadem a igreja Assembleia de Deus localizada na rua São Miguel, via principal do Morro do Borel. O objetivo, segundo a polícia, é prender um traficante de drogas que eles suspeitam estar no local.

“Dentro da igreja, dentro da casa de Deus! O que é isso?”, grita alguém, horrorizado. E então o culto se transforma num inferno. Dos morros vizinhos, traficantes disparam contra policiais entrincheirados dentro da igreja, que atiram de volta pelas janelas.

Dias depois, ainda persiste um silêncio pouco natural no Morro do Borel. Policiais com coletes à prova de balas e armamento pesado patrulham nas entradas da favela, observando os moradores com desconfiança. Se alguém pergunta o que aconteceu, a resposta, em geral, é silêncio. “Aqui normalmente é calmo”, diz Henrique, de 65 anos, que mora há 30 ao lado da igreja. “Quer dizer, de vez em quando acontece alguma coisa, um episódio esporádico.”

Os tiroteios no Rio, contudo, não são nada esporádicos. Desde meados de fevereiro, quando os militares assumiram o controle da segurança pública do Estado sob ordem do presidente Michel Temer, o número de tiroteios aumentou em 56%. Foram mais de 8 mil até agora, nos quais 161 pessoas foram atingidas por balas perdidas.

Mas o dado mais assustador da intervenção federal talvez tenha sido o aumento do número de pessoas mortas pela polícia: segundo o Instituto de Segurança Pública, órgão vinculado à Secretaria de Segurança do governo estadual, até novembro, foram 1.444 vítimas – o índice mais alto já registrado no Rio e 40% maior que o do ano passado. “Isso é um escândalo”, afirma a socióloga Julita Tannuri Lemgruber. “Vamos fechar o ano com 1.500 pessoas mortas pela polícia.”

A organização de direitos humanos Human Rights Watch também critica a política linha dura. “Operações militares que deixam um rastro de morte nas comunidades carentes não melhoram a segurança pública”, diz Daniel Wilkinson, diretor da ONG. “Pelo contrário, fazem com que os moradores das comunidades fiquem com medo da polícia e com muito mais receio de cooperarem com ela no combate ao crime.”

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Olhando para trás, é possível ver como é grande o retrocesso na área de segurança pública. Em 2008 o governo estadual passou a implantar nas favelas cariocas as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Até 2013 os índices de violência no Rio caíram, e cresceu a esperança de que finalmente a espiral de violência acabasse.

Porém, a partir de 2014, a polícia nas favelas passou a perder cada vez mais o apoio da população. Além disso, a recessão que saqueou o Rio acabou tornando sensíveis os efeitos da crise orçamentária. Os policiais não tinham sequer peças de reposição ou gasolina para suas viaturas, e tanto as gangues do tráfico como as milícias estavam melhor armados.

Desde então, travou-se no Rio uma sangrenta batalha entre policiais, milicianos e traficantes. No início da intervenção, os militares prometeram dar mais importância a métodos investigativos de inteligência. No entanto, tiroteios violentos nas favelas acabaram tendo mais vez.

“A intervenção federal pelas Forças Armadas não resolveu os problemas estruturais da segurança pública do Rio”, resume um relatório do Observatório da Intervenção, organização civil que acompanha e divulga os desdobramentos e impactos da intervenção federal no Rio. “O que vimos foi a reafirmação da estratégia de confrontos armados, gastos concentrados em grandes operações e ausência de uma reforma estrutural da política de segurança.”

Militares chegaram à Rocinha, no Rio de Janeiro. Muitos moradores apoiaram a intervenção

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Inicialmente a maioria dos habitantes das favelas apoiou a intervenção militar. Em meados de fevereiro, Temer tirou do governo estadual o controle sobre o aparato de segurança pública e as prisões, nomeou o general Walter Souza Braga Netto como interventor e disponibilizou 1,2 bilhão de reais para que ele equipasse as forças de segurança.

Mas nem o dinheiro rendeu bons frutos. Até o início de dezembro, Braga Netto havia conseguido gastar apenas metade das verbas. A culpa teria sido da completa incapacidade do Estado de realizar as licitações. Mesmo para a compra de armas, a burocracia ficou sobrecarregada. “Eu não esperava tamanha perda de capacidade do Estado”, disse Braga Netto recentemente.

“Acho que a intervenção serviu para mostrar que os problemas do Rio de Janeiro são muito graves e profundos, e que alguém que chega de fora não consegue resolvê-los com boas intenções e recursos financeiros”, afirma a socióloga Lemgruber. “A situação do Rio não é algo que se muda da noite para o dia.”

A intervenção conseguiu ao menos reduzir os assaltos a caminhões. Esse índice caiu 14,4%, segundo um balanço do Observatório da Intervenção divulgado neste mês. Na imprensa, generais comemoraram a conquista – para Lemgruber, porém, a celebração não foi apropriada. “Acho um absurdo que a intervenção esteve preocupada, ao longo deste ano, com crimes contra o patrimônio.”

Por outro lado, os militares não conseguiram esclarecer nem o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol), crítica feroz da intervenção, nem as ameaças contra seu colega de partido Marcelo Freixo. A principal suspeita é de que as milícias paramilitares estejam por trás do crime, mas nada está muito claro. Especialmente a morte de Marielle, uma ativista dos direitos dos negros, em março, colocou forte pressão sobre a intervenção, porque há suspeitas de que o crime esteja ligado à militarização no Rio.

As investigações fracassadas também mostraram que a cooperação entre as várias organizações policiais e os militares não funciona, observa Lemgruber. Eles não confiam uns nos outros, e também não querem dar poder a outros grupos. Além disso, as milícias há muito tempo estão infiltradas na política e entre as autoridades de segurança. “A gente sabe que esses grupos têm ligação com políticos e com os comandos dos batalhões da Polícia Militar.”

Sobre os próximos governos do Rio e federal, que assumem o poder em janeiro, a socióloga demonstra ceticismo. “As coisas vão piorar bastante, pois tanto o governo estadual quanto o federal estimulam a violência, e quem vai sofrer vai ser o povo da favela”, opina.

No Morro do Borel os moradores já temem drones que efetuam disparos, com os quais o governador eleito, Wilson Witzel (PSC), quer eliminar os jovens traficantes de drogas. “Drones são meio perigosos”, diz Henrique, que vive ao lado da igreja com buracos de bala nas paredes. “Já temos troca de tiros, agora imagine um drone atirando do alto.”

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