Política
Transição justa
Não basta reduzir as emissões de carbono, é preciso assegurar a requalificação e a inclusão dos trabalhadores na economia verde


Polo que chegou a atrair 100 mil novos trabalhadores com carteira assinada nos anos de euforia do pré-sal, o município fluminense de Macaé é um perfeito exemplo de como as sucessivas crises – econômica, política e sanitária – enfrentadas pelo Brasil na última década atingiram em cheio algumas cadeias produtivas locais em todo o País. Outrora palco de festas e eventos promovidos pela indústria de óleo e gás, a principal praça da cidade do Litoral Norte do Rio de Janeiro carrega hoje a alcunha de “praça dos desempregados”, dada a grande quantidade de trabalhadores, muitos deles qualificados, que ali se concentram em busca de novas oportunidades.
O caso macaense, repetido em outros setores da indústria e nas demais regiões do País, mostra como é urgente para o governo brasileiro adotar novas estratégias tanto para a adaptação das cadeias produtivas quanto para a requalificação técnica e profissional dos trabalhadores. E também se adaptar a um cenário econômico internacional que, por conta do enfrentamento ao aquecimento do planeta, promete sofrer o impacto de profundas mudanças ao longo do século XXI.
Mas como fazer com que, ao mesmo tempo, o Brasil não perca o bonde do desenvolvimento econômico sustentável, garanta aos estados e municípios condições de adaptar suas cadeias produtivas e requalifique milhões de trabalhadores de modo a não os deixar à margem das transformações em curso? A resposta pode estar na implementação do processo de “transição econômica e socioambiental justa”, definido em 2015 no âmbito do Acordo de Paris. Segundo esse conceito, a transição para uma economia de baixo carbono passa pela construção de meios de produção locais alternativos e sustentáveis que potencializem a inovação tecnológica e a geração de riqueza e empregos de qualidade. “É necessário oferecer aos trabalhadores as condições necessárias para uma inserção produtiva digna em uma economia orientada para o desenvolvimento sustentável”, diz o documento firmado sob a égide das Nações Unidas.
O Acordo de Paris aponta os caminhos para a “inserção produtiva digna”
Inspirada por casos bem-sucedidos de transição ecológica em curso na Europa e também pelo objetivo de impulsionar a mobilização de governos locais, empresas e associações de trabalhadores no Brasil, a Agenda Pública lançou no ano passado a Plataforma para uma Transição Justa, que promove “espaços qualificados de diálogo” entre as partes e busca estabelecer intercâmbios com parceiros internacionais. Além de oferecer apoio técnico, jurídico e consultivo a trabalhadores, empresários e agentes públicos, a iniciativa possibilita oportunidades de financiamento e subsídios para projetos de planejamento regionais ou setoriais: “A transição ecológica é mais do que uma obrigação. Precisamos de atividades econômicas menos intensivas em carbono, que contribuam menos para o aquecimento global e que gerem os empregos do futuro”, diz Sérgio Andrade, diretor-executivo da ONG. Ele avalia que o Brasil deve promover a transformação de sua base energética, como vêm fazendo os EUA e a União Europeia.
Na comparação com as nações desenvolvidas do hemisfério Norte, o Brasil tem uma matriz energética significativamente limpa, com grande participação do setor hidrelétrico. Ainda assim, o atraso em diversos setores é fonte de preocupação. “Precisamos descarbonizar o agronegócio, a siderurgia, a mineração, o setor de óleo e gás e tantos outros. Com isso, teremos oportunidades de gerar emprego e renda, promover inovação industrial e atrair investimentos”, avalia Andrade, para quem o futuro exige a diversificação da economia nacional, a manutenção dos empregos e a modernização das políticas de desenvolvimento econômico.
As áreas de Meio Ambiente e de Ciência, Tecnologia e Inovação caminham de mãos dadas quando são imaginadas as cadeias produtivas do futuro. “Há que se pensar esses dois pilares. No Brasil, estamos com um desemprego tecnológico visível e há setores industriais que precisam incorporar novas tecnologias. O País tem condições de assumir o posto de potência ambiental e dar ao mundo exemplos de empresas que têm responsabilidade ecológica na sua produção, mas que também geram o emprego de qualidade que nós precisamos”, observa. Para que isso se torne realidade, acrescenta Andrade, é fundamental a adoção de políticas de desenvolvimento econômico que “promovam inclusão, tragam oportunidades para as empresas que temos aqui e gerem fontes de receitas estáveis para os municípios no futuro”.
Caminhos. A ONG liderada por Andrade oferece apoio técnico a trabalhadores, empresários e gestores públicos – Imagem: iStockphoto e Acervo Pessoal
O financiamento à inovação tecnológica é um dos caminhos a ser trilhado pelo governo federal em busca de uma transição justa. “Estamos trabalhando, tanto do ponto de vista da subvenção de projetos vinculados às universidades e aos institutos de pesquisa quanto no financiamento de empresas, para preparar a economia brasileira ao que o governo chama de neoindustrialização”, afirma Celso Pansera, presidente da Finep, agência de fomento à pesquisa subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Neste ano, a entidade conta com o valor recorde de 10 bilhões de reais para investimentos. Esta reindustrialização, emenda Pansera, considera um sistema de transição para uma economia limpa, de baixo carbono, mas também justa do ponto de vista da relação com o ser humano, sobretudo com aquelas pessoas que dependem do Estado para o financiamento de melhores condições de vida. “Isso significa adotar regras de trabalho justas e pensar em novas formas e jornadas de trabalho”, diz o ex-ministro.
O governo promete anunciar em julho o aguardado Pacote Verde, conjunto de medidas e novas políticas em estágio final de elaboração pelo Ministério da Fazenda, que coordena um grupo de trabalho composto por outros nove ministérios. O pacote fincará os pilares da “neoindustrialização” brasileira em seis eixos: transição energética, incentivos econômicos, novas tecnologias de produção, adaptação da estrutura industrial às mudanças climáticas, tratamento de resíduos e bioeconomia. Outro aspecto fundamental do pacote é a regulação no Brasil do mercado de carbono, um mecanismo de medidas compensatórias às emissões de gases causadores de efeito estufa, também estabelecido no Acordo de Paris. O compromisso global brasileiro é neutralizar suas emissões até 2050, após reduzi-las à metade em 2030, e o mercado de carbono no País deverá, nas contas do governo, atingir cerca de 5 mil empresas que atualmente liberam na atmosfera mais de 25 mil toneladas de gás carbônico.
Após o lançamento oficial do Pacote Verde, avalia Andrade, o governo terá à disposição diversos instrumentos de financiamento em nível global. Ele cita como exemplos o Mapa Bilateral de Investimentos que o Brasil firmará no âmbito do acordo entre o Mercosul e a União Europeia e o acordo de “cooperação bilateral em finanças verdes” que vem sendo costurado com o governo da China. “O Brasil tem a possibilidade de emitir títulos de dívida lastreados pelos investimentos que fará na descarbonização de sua economia. É uma possibilidade de atração de investimentos para o País”, diz o fundador da Agenda Pública. Dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente, Rubens Born revela as incertezas do setor: “Há discursos, tanto do presidente Lula quanto de seus ministros, dizendo que estão empenhados em impulsionar as políticas públicas para essa transição. Lamentavelmente, o Congresso Nacional ainda é formado por pessoas que não reconhecem a gravidade da crise”, diz.
“O País tem condições de assumir o posto de potência ambiental e dar exemplo ao mundo”, afirma Sérgio Andrade, da ONG Agenda Pública
Born ressalta que a transição almejada é hoje a principal tarefa civilizatória da humanidade: “Ela implica em mudanças estruturais da sociedade na economia, na cultura, na legislação e na gestão democrática para garantir que todos os agrupamentos da civilização humana tenham dignidade em suas condições de vida”. Para a transição ser de fato justa, pondera, “isso implica reconhecer as iniquidades e desigualdades e superá-las ao mesmo tempo que se faz a transição energética, a recuperação das áreas biodegradadas e a diminuição da poluição”.
Outro elemento importante é a temporalidade. “Quanto mais demorar para se iniciarem ações robustas de transformação, piores serão os impactos e os ônus, inclusive os custos, de fazer essa transição, reconhecendo que nós enfrentamos uma grave situação climática no mundo todo”, diz o experiente ambientalista. A pressa, nesse caso, pode ser amiga da perfeição. “Dadas as perversidades e injustiças na distribuição das benesses do chamado progresso, que deixa à margem milhões de pessoas passando fome, é preciso agir para ontem”, diz Born. Por aqui, após a tragédia da gestão de Bolsonaro, a urgência é redobrada: “O Brasil passou por um governo negacionista em relação à crise climática, à perda da biodiversidade e ao respeito aos direitos humanos. Por isso, tem que acelerar muito essa transição”. •
Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Transição justa’
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