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Lula cobra cooperação de seus ministros para atenuar os estragos causados pela Câmara nas políticas ambientais e dos povos indígenas

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Na Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo, a Tropa de Choque da PM dispersou manifestantes indígenas com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo – Imagem: Rovena Rosa/ABR e Allison Sales/AFP
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Resiliência para suportar e se adequar a mudanças que parecem incontornáveis em um primeiro momento, união para redefinir e redistribuir tarefas e atribuições de modo a conquistar o objetivo almejado e determinação para reagir onde for possível contra as dificuldades colocadas pelos adversários. Estas são palavras que poderiam constar de um ­manual de autoajuda ou de uma palestra motivacional para equipes esportivas, mas traduzem a estratégia do governo federal e dos movimentos sociais para enfrentar os resultados daquela que foi definida por ambientalistas como “a pior semana para a política de meio ambiente no Brasil”. Sob a batuta de um desafiador Arthur Lira, a Câmara aprovou, na terça-feira 30, o Projeto de Lei 490, conhecido como PL do Marco Temporal, que restringe o direito à demarcação de suas terras apenas aos povos indígenas que efetivamente ocupavam o território reivindicado em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Na quarta-feira 31, foi a vez de os deputados confirmarem em plenário as alterações na Medida Provisória que definia a estrutura organizacional do governo. Com isso, sacramentaram o esvaziamento de funções dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Meio Ambiente (MMA), que perderam suas respectivas competências para demarcar novas TIs ou gerir as políticas nacionais de recursos hídricos e cuidar do Cadastro Ambiental Rural.

Em conversas com sua equipe ao longo da semana, o presidente Lula deixou claro que a missão do governo agora é minimizar o estrago nas políticas públicas ambientais e o consequente prejuízo político que o cenário desenhado pela Câmara trará em um momento no qual o País busca retomar seu protagonismo nas discussões climáticas globais. A estratégia, ajustada em reuniões com Marina Silva (Meio Ambiente), Sônia Guajajara (Povos Indígenas), Flávio Dino (Justiça e Cidadania) e Rui Costa (Casa Civil), inclui o estabelecimento de parcerias entre os ministérios para permitir às pastas esvaziadas ainda atuar em suas áreas afins. Dino levantou ainda a possibilidade de uma reação presidencial para minimizar o desmonte: “Sobre as controvérsias acerca das competências de órgãos do Poder Executivo, é importante lembrar o que diz o artigo 84 da Constituição Federal. Compete privativamente ao presidente da República dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal quando isto não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”.

O governo acredita que a tese do Marco Temporal não vai prosperar no Senado nem no Supremo

Uma das parcerias aventadas envolve justamente o Ministério da Justiça, para onde retornou a prerrogativa de coordenar o processo de demarcação das Terras Indígenas. Este foi um dos argumentos de Lula para tranquilizar Sônia Guajajara após a própria existência do MPI ter sido colocada em xeque pelos deputados: “Tendo um ministro parceiro e compreensivo com as questões indígenas, vamos trabalhar juntos para continuar avançando e fazer com que a demarcação não fique paralisada como ficou nos últimos quatro anos. Vamos trabalhar para seguir normalmente com os processos em curso”, disse a ministra a CartaCapital. Dino demonstra a mesma disposição: “Do ponto de vista do compromisso com relação à Justiça, para os povos originários garanto que nada muda. Esse compromisso não é da ministra Sônia ou meu, mas do presidente Lula”. O ministro deixa clara sua disposição de atuar em sintonia com a colega: “Quando da transição, nós fizemos esse debate. Evidentemente, se você cria o Ministério dos Povos Indígenas, os processos de demarcação devem lá nascer”.

Em relação ao marco temporal, o governo espera que uma possível definição do STF contrária ao decidido na Câmara facilite a tarefa de derrubar o projeto no Senado. O Supremo volta a deliberar sobre o tema na semana que vem. “Vamos aguardar a retomada do julgamento em 7 de junho, para então ver quais serão as próximas providências”, diz Guajajara, que também se reuniu com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD, para pedir que o tema não seja pautado antes da decisão final do STF. A ministra definiu como “um genocídio legislado” o PL relatado pelo deputado Arthur Maia, do União Brasil, que, entre outras barbaridades, permite a construção de rodovias e hidrelétricas nas TIs e o fim do respeito ao isolamento dos povos sem contato com a sociedade para a execução de projetos de “defesa e soberania nacional”. Guajajara ressalta que tarefas permanecem sob gestão do MPI, como a etapa da Portaria Declaratória, primeiro passo para a demarcação. “Temos também outras atribuições, como proteger os territórios já demarcados que, apesar dessa condição, ainda têm processos violentos de invasão e exploração ilegal de madeira e minério”, diz. Outra meta é a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial, criada este ano: “Já estamos articulando para formar o Comitê Gestor e buscar as condições para implementar essa política nos territórios indígenas. Trabalhamos com políticas sociais, educacionais, culturais e em articulação com as políticas de saúde”.

Marina Silva e Sônia Guajajara estão dispostas a resistir à ofensiva dos ruralistas na Câmara – Imagem: Fernando Frazão/ABR

No movimento indígena, a ordem é contestar a constitucionalidade do PL do Marco Temporal. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou que evocará no STF o artigo 231 da Constituição, a determinar que “os direitos fundamentais estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais”. Já o Ministério Público Federal, por intermédio da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, órgão vinculado à Procuradoria-Geral da República, reafirma a inconstitucionalidade do projeto aprovado. Segundo a Carta Magna, acrescenta uma nota pública do MPF, “o estatuto jurídico de Terras Indígenas não pode ser alterado por lei ordinária”. O documento alerta ainda que “a Constituição garante aos povos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e que “fixar um marco temporal que condicione à demarcação pelo Estado viola frontalmente o caráter originário dos direitos territoriais indígenas”.

Uma manifestação de indígenas Guaranis contra o PL fechou uma pista da Rodovia Bandeirantes, em São Paulo, no início da manhã da terça-feira 30, e foi debelada com bombas de gás e balas de borracha pela Tropa de Choque da Polícia Militar. A mobilização social será fundamental para reverter o esvaziamento do MPI e do MMA, avalia Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Precisamos unir a sociedade organizada, a opinião pública e os nossos parceiros internacionais. Vamos continuar a mobilizar os movimentos sociais e os artistas e a fazer denúncias na imprensa”, diz. Embora reconheça que “a judicialização foi um meio muito utilizado contra toda a destruição ambiental nos quatro anos do governo Bolsonaro”, Astrini pondera que esse caminho pode não ser o ­ideal no momento, sobretudo no que diz respeito ao MMA. “Existem advogados que acham que não funcionaria procurar no Supremo uma reversão dessa decisão do Congresso. Outros acham que sim. Existem muitas dúvidas se a judicialização é um caminho para questões específicas”, afirma, citando como exemplo o caso do Cadastro Ambiental Rural, que, após a aprovação da MP 1.154 relatada pelo deputado Isnaldo Bulhões, do MDB, passará a ser executado pelo Ministério da Gestão.

A situação é mais complicada no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, mas Flávio Dino garante que nada muda

O ambientalista avalia que o governo pode readequar suas estruturas de trabalho para conter os efeitos da MP. “Obviamente, não é o ideal, mas, uma vez que o Congresso fez alterações, o governo pode se adequar inaugurando uma espécie de gestão compartilhada do CAR. A mesma coisa valeria para as Terras Indígenas, com maior presença e instrumentalização do MPI dentro do processo de demarcações, com mais espaço e protagonismo.” Ouvido por CartaCapital, um integrante da Advocacia-Geral da União afirma que tudo depende da decisão de Lula, mas aponta como possível alternativa a publicação de um novo ato normativo de organização interna do governo. O texto está sendo alinhavado e trará pontos como compartilhamento de funções, redistribuição de atribuições e normatização infraconstitucional. “O caminho escolhido pelo governo será o do meio ambiente”, assegura.

Especializado em Direito Ambiental, o advogado Rogério Rocco pontua as diferenças nos casos do MPI e do MMA: “A liberdade de o presidente da República dispor sobre a organização do governo por decreto existe, mas não alcança novos ministérios criados, que precisam de aprovação por lei. Assim sendo, no caso do MPI, não há saída por se tratar de um ministério que não existia. Ele depende da Medida Provisória, assim como todos os 14 novos ministérios”. Na pasta de Meio Ambiente, Lula poderia vetar as alterações nos órgãos e programas já existentes. Com o veto presidencial, diz, essas questões voltam à alçada de competência do Chefe do Executivo, de acordo com o artigo 84 da Constituição citado pelo ministro Dino: “Apesar de o cenário na Câmara ter sido muito ruim, no caso do MMA há ainda uma sobrevida de alternativas, para que o governo consiga estruturar o ministério dentro dos moldes que ele próprio estabeleceu”.

Isnaldo Bulhões, do MDB, é o autor da peça que amputou braços do Ministério do Meio Ambiente – Imagem: Najara Araújo/Ag.Câmara

Procurada pela reportagem, Marina Silva preferiu não comentar a semana nefasta para o meio ambiente na Câmara. Dias antes da decisão final dos deputados, durante debate na Comissão de Meio Ambiente da Casa Legislativa, a ministra disse que as mudanças aprovadas “fecham as portas” para o Brasil e podem “prejudicar acordos comerciais como o estabelecido entre o Mercosul e a União Europeia”. A impressão da ministra é ­compartilhada pelo Observatório do Clima: “O governo precisa deixar claro que pretende usar todos os instrumentos necessários para não permitir o retrocesso que o Congresso tenta impor. Isso é muito importante para honrar os compromissos de Lula”, diz Astrini. Para o ambientalista, a visão destrutiva cultivada pelo governo anterior agora se mudou para o Congresso, mas não pode ser hegemônica. “Se o Congresso der as cartas nas questões relacionadas aos povos indígenas, ao meio ambiente e ao clima, o Brasil vai sofrer no cenário internacional o mesmo rechaço que o governo Bolsonaro sofreu.” •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

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