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Guerra aberta

Arthur Lira aponta a arma para Lula, enquanto é sitiado pelo STF

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Lira realiza as vontades da bancada ruralista, maneira de fustigar a agenda progressista do Palácio do Planalto – Imagem: Pablo Valadares/Ag. Câmara
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Em 10 de fevereiro de 2012, o servidor público Jaymerson José Gomes de Amorim foi pego pela Polícia Federal com 106 mil reais em dinheiro no aeroporto em São Paulo. Amorim viajaria a Brasília com passagem paga pelo deputado de quem era secretário parlamentar. Seu chefe tinha só um ano na capital federal e já era o líder do partido ao qual era filiado, o PP. Em depoimentos posteriores às autoridades, o secretário deu duas versões para a bolada. Primeiro, disse tratar-se de uma comissão pela venda de terras. Depois, que era o salário guardado por anos. O empregador negou, perante as autoridades, saber da viagem e das razões de o auxiliar carregar a quantia em dinheiro vivo. Em 2018, a Procuradoria-Geral da República concluiu que o montante tinha sido entregue a Amorim pelo então presidente da ­CBTU, a estatal federal de trens, Francisco Carlos Caballero Colombo, em troca de apoio do líder do PP à permanência do executivo no cargo. E denunciou à Justiça o servidor e seu patrão. Nome do ­deputado acusado: Arthur Lira.

O fantasma de mais de uma década voltou a assombrar o poderoso presidente da Câmara. É o resultado de uma sede insaciável de poder desse símbolo do “parlamentarismo à brasileira” construído desde 2013 com as digitais do ex-deputado Eduardo Cunha, fonte de inspiração de Lira. A acusação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro contra o deputado alagoano será examinada de novo pelo Supremo Tribunal Federal nos próximos dias. O exame, etapa um pouco mais avançada do processo, começou em 2019 e há votos suficientes para converter Lira em réu de uma ação penal. A decisão tinha sido interrompida naquele ano a pedido de José Dias Toffoli, que queria pensar mais. O ministro liberou a ação na quarta-feira 31. Ser carimbado como réu deixará Lira mais fraco politicamente.

Ainda na quarta 31, outro juiz do STF, André Mendonça, tomou mais uma decisão desfavorável ao deputado, sinal dos humores da Corte em relação a Lira. Este havia movido, no ano passado, uma ação na 1ª Vara Criminal Brasília contra o senador Renan Calheiros, do MDB, adversário na política alagoana. A queixa foi motivada por afirmações do emedebista nas redes sociais, como esta: “Lira é ladrão já condenado por desvios na Assembleia (Legislativa de Alagoas). Segue roubando no orçamento secreto, metendo as mãos sujas”. Há algumas semanas, o senador recorreu ao Supremo para brecar a ação. Por ser congressista e ter foro privilegiado, alegou, só poderia ser processado no STF. Requeria uma liminar. Mendonça, a quem o recurso havia sido distribuído, atendeu o pedido.

Por pouco a MP dos Ministérios não caduca. Nascimento é discípulo de Lira. Cunha, a inspiração – Imagem: Ana Volpe/Ag.Senado, Lula Marques/Ag. PT e Toninho Barbosa/União Brasil na Câmara

No dia seguinte à liminar, a Polícia Federal deflagrou pela manhã uma operação em Alagoas, a Hefesto, contra fraudes na compra de kits de robótica para escolas locais. Houve duas prisões temporárias, além de buscas em endereços em Maceió. É outra história capaz de esquentar a brasa sob o presidente da Câmara. A polícia mira um esquema que, de 2019 a 2022, teria superfaturado em 8,1 milhões de reais a aquisição de equipamentos destinados às escolas. As compras foram feitas com verba federal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, controlado pelo PP de Lira na era Jair Bolsonaro. Em abril de 2022, a Folha de S.Paulo mostrou que o fornecedor dos kits era a Megalic, que tem como sócio o pai (Edmundo Catunda) de um vereador de Maceió (João Catunda) aliado de Lira. Por se tratar de verba federal, a Controladoria-Geral da União, órgão do governo, escarafunchou os repasses e abasteceu a PF.

A batida policial foi autorizada pela 2ª Vara da Justiça Federal em Alagoas, o que significa que entre os alvos não havia parlamentares (se houvesse, só o STF poderia autorizá-la). Ou seja, Lira não foi alvejado diretamente, mas o andamento das investigações pode se voltar contra ele. A, digamos, maré de azar do deputado não para. Há quem jure que a ex-mulher do parlamentar, Jullyene Lins, prepara uma denúncia. Ela deu pistas nos últimos dias. Em 29 de maio, tuitou ter sido vítima de “violência física” do ex-marido. “Jamais poderei me calar diante das investidas desse covarde”, escreveu. O comentário foi compartilhado por Calheiros, que completou: Lira teria dado uma “surra de 2h” na “mãe de seus filhos”.

Lira atribui as derrotas do Palácio do Planalto à falta de articulação política, mas o Congresso tornou-se mais “ideológico”

O cerco ao deputado coincide com os desafios lançados por ele contra o Supremo e o governo Lula. Na terça-feira 30, Lira comandou a aprovação de uma lei com a qual os ruralistas pretendem neutralizar um julgamento marcado pelo STF para 7 de junho sobre terras indígenas. É um tema caro à presidente da Corte, Rosa Weber. O julgamento tratará de um caso específico em Santa Catarina, mas traz embutida uma tese que valerá, ou não, para demarcações em geral. Essa teoria, inventada por advogados de fazendeiros, sustenta que para reivindicarem uma área os indígenas têm de provar que a ocupavam na data da promulgação da Constituição em 1988. Pelo que se conhece da maioria dos juízes, é improvável o Supremo chancelar a tese. Por isso, Lira e os ruralistas correram para aprovar o Projeto de Lei do chamado “marco temporal”. Placar da votação: 324 a 131 votos.

Foi, por tabela, uma derrota do governo. Lula prometera na campanha retomar a demarcação de terras indígenas e, desde o início do mandato, tomou decisões nesse sentido. A lei do “marco temporal” não era, no entanto, suficiente para saciar Lira e cia. No dia seguinte, o deputado atormentou o governo com a ameaça velada de não colocar em votação uma Medida Provisória baixada em 1º de janeiro que define o número dos ministérios e suas atribuições. O Congresso tinha até a quinta-feira 1º para votar a MP, do contrário, ela morreria. Sumiriam, por exemplo, as pastas dos Esportes, da Cultura e dos Povos Indígenas. O desenho da Esplanada voltaria a ser aquele imposto por Bolsonaro. Depois da deliberação da Câmara, faltaria a análise do Senado.

Lira e seu grupo, o “Centrão”, usaram a votação da MP para chantagear o presidente. Queriam mais poder, mais espaço na definição de políticas governamentais. Na véspera, havia circulado em Brasília que o deputado condicionara a votação à demissão do filho de Renan Calheiros do cargo de ministro dos Transportes, fofoca negada por Lira. À reportagem, um articulador político do Palácio do Planalto também negou. Segundo ele, o presidente da Câmara não tinha feito chegar a Lula nenhum pedido de nomeação ou demissão de ministro, mas um alerta: o governo não pode conversar diretamente com deputados, toda negociação tem de passar por ele, Lira. Uma disputa por influência. Quem os deputados devem ouvir e seguir? O presidente da Câmara ou o governo?

A articulação política do Palácio do Planalto depende da intervenção de Lula, muito focado nas relações internacionais – Imagem: Anderson Riedel/PR

Na noite da quarta-feira 31, o alagoano chegou ao Congresso com aquele misto de empáfia e autoritarismo peculiares. “É importante que as pessoas saibam que a realidade do Congresso não é mais a mesma”, disse. “Há uma insatisfação generalizada dos deputados e talvez dos senadores com a falta de articulação política do governo.” E arrematou: se a MP dos Ministérios não fosse aprovada, não seria culpa do Parlamento, mas do Palácio do Planalto. Ao longo do dia, o parlamentar havia falado por telefone com Lula, depois de o presidente ter convocado uma reunião de emergência com alguns ministros e congressistas governistas para discutir o risco de a MP caducar.

O pepista e o petista tiveram cinco conversas do tipo tête-à-tête. Três neste ano, uma em novembro, logo após a eleição, e outra em 18 de dezembro, no hotel em Brasília no qual Lula se hospedava antes de voltar à Presidência. A conversa no hotel ocorrera às vésperas de o Supremo concluir um julgamento sobre o famigerado orçamento secreto, uma das fontes de poder de Lira na era Bolsonaro. Quem cuidava do processo era a presidente da Corte, Rosa Weber. Quando Lira foi a Lula, faltava um voto para enterrar o que o petista chamava de “excrescência”. Consta que o deputado adotou o figurino chantagista. O petista não cedeu. Um dia depois, Ricardo Lewandowski, recém-aposentado do tribunal e próximo a Lula, deu o voto que faltava contra o orçamento secreto.

Ao que parece, deu-se algo parecido novamente. Lula não cedeu à chantagem de Lira, e o Supremo, igualmente desafiado pelo deputado, entrou em cena e vai retomar o processo que tende a transformar em réu o “rei” da Câmara. A notícia da decisão do tribunal circulava quando Lira comandou a sessão que aprovou a MP dos Ministérios por 337 votos a 125. O pepista parecia outro, sem a empáfia de pouco antes. Memória do que aconteceu com Cunha? Recorde-se: o Supremo afastou o emedebista do comando da Câmara em 2016, embora o tenha feito só após o então deputado aprovar a abertura do impeachment de Dilma ­Rousseff e remeter o processo ao Senado. A propósito, o STF acaba de anular os 16 anos de condenação por corrupção aplicados a Cunha por Sergio Moro na Lava Jato.

Entre 2016 e 2022, o valor de emendas sob controle total dos parlamentares saltou de 9 bilhões para 27 bilhões de reais

Cunha foi quem botou em marcha aquilo que o economista Marcio ­Pochmann chama de “parlamentarismo à brasileira”. Um fenômeno que pode ser descrito como um parlamentarismo que não existe na lei, mas é visto na prática e tem a chantagem como método. E que ganharia a letra da lei, se dependesse de Lira. O deputado tem na gaveta, desde o ano passado, uma proposta de instituir o semipresidencialismo a partir de 2030.

No “parlamentarismo à brasileira”, os deputados tentam mandar no País sem precisar de milhões de votos para chegar ao Planalto. A marcha começa no início do governo Dilma, presidente pouco afeita às conversas políticas. Em 2011 e 2012, a petista cortou todas as emendas parlamentares, a fim de cumprir metas fiscais. A reação veio em 2013, quando Cunha liderava o MDB e o presidente da Câmara era Henrique Alves, anterior líder da legenda. Este fez andar a proibição de o governo bloquear emendas individuais incluídas no orçamento por congressistas, por meio de uma mudança na Constituição proposta no Senado em 2000 pelo falecido Antônio Carlos Magalhães. Cunha arrematou a aprovação em fevereiro de 2015, ao suceder a Alves no comando da Câmara.

Em 2019, primeiro ano de Bolsonaro, outro presidente avesso às conversas com o Congresso, a proibição de o governo bloquear emendas parlamentares foi estendida àquelas inseridas coletivamente no orçamento. A proposta surgira na Câmara em fevereiro de 2015, com Cunha, mas ficara parada em meio à confusão do ­impeachment e da Lava Jato. Coube ao sucessor de Cunha, Rodrigo Maia, tirá-la da gaveta. Cunha e Maia, dois quadros da direita neoliberal, embora o primeiro seja um radical em temas comportamentais, ao contrário do outro. Maia hoje está à frente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras.

O presidente do Senado em 2019 aderiu ao “parlamentarismo à brasileira”. Era Davi Alcolumbre, do Amapá, político ainda com muito poder na Casa graças aos favores realizados a colegas via orçamento secreto. Alcolumbre aprovou as emendas impositivas coletivas e aproveitou-se de uma ideia de 2015, da petista Gleisi Hoffmann, que havia proposto a facilitação do repasse de verba federal a estados e municípios. Nasceu aí a “Emenda PIX”. A tacada final do Congresso na tomada do poder foi justamente o orçamento secreto, também em 2019. Tudo somado, hoje em dia jorra verba de emenda para os parlamentares. A bolada saltou de 9 bilhões em 2016 para 27 bilhões no ano passado, o triplo, segundo ­Neuriberg Dias, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Resultado: um deputado ou um senador não precisa apoiar o governo para conseguir repasse para as bases, basta bajular os presidentes do Senado e da Câmara.

No Senado, comenta-se que Alcolumbre, atualmente no União Brasil, tinha brigado com Lira, mas se entendeu com ele e tentará voltar ao comando da Casa em 2025, na sucessão de Rodrigo Pacheco, do PSD, a quem o presidente da Câmara também desafiou, por causa do rito de votação de Medidas Provisórias, uma disputa por poder. Em 24 de maio, Lula recebeu, no Planalto, Calheiros e o líder do MDB no Senado, Eduardo Braga, do Amazonas. Ouviu alertas sobre Alcolumbre e a importância de manter boas relações com Pacheco. O petista, segundo relatos, telefonou ao senador e o convidou para viajar no dia seguinte a São Paulo. Na capital paulista, em um evento na Fiesp, Lula comentou, a propósito das derrotas impostas por Lira: “Agora começou o jogo, agora nós vamos jogar, vamos conversar com o Congresso e vamos fazer a governança daquilo que a gente precisa fazer. O que a gente não pode é se assustar com a política”.

Pacheco é um aliado importante de Lula no jogo bruto do Congresso. Temer cedeu ao “parlamentarismo à brasileira” – Imagem: Jefferson Rudy/Ag. Senado e Marcos Corrêa/PR

A mudança no rito das MPs é outro fator de fortalecimento do Congresso, ao lado dos nacos gigantes de verba orçamentária. É um enredo iniciado em 2001, penúltimo ano de Fernando Henrique Cardoso. Resumo da ópera: de lá para cá, o governo foi obrigado a recorrer menos às MPs. Do total de leis aprovadas em 2012, menos da metade (43%) nasceu de propostas dos parlamentares. Em 2021, foram 64%. Estatísticas apuradas pela consultoria Action. “O governo não tem mais o poder de pauta nem de orçamento que tinha antes”, diz João Henrique Hummel, diretor da entidade. “O voto hoje é mais ideológico.” É uma avaliação com a qual concorda o senador petista Humberto Costa, de Pernambuco, preocupado com as amarras ao governo Lula difíceis de driblar. “A gente vive um semipresidencialismo que tem um componente fisiológico (emendas), mas também um componente ideológico.”

Como os parlamentares não precisam mais de cargos no governo para buscar a reeleição, a posição nas votações reflete cada vez mais suas convicções ideológicas. E o “parlamentarismo à brasileira” erigiu um Congresso direitista. Algo que Lira adora repetir. Ao participar, em 9 de maio, de um evento em Nova York, o deputado declarou que o eleitor pode até ter eleito um presidente progressista, mas “escolheu um Congresso majoritariamente conservador e liberal”. “O Brasil, presidente Temer, é um país de sistema presidencialista que quem manda é o Parlamento”, afirmou. Michel Temer estava na plateia. Foi o mandatário pós-Dilma que dizia fazer um governo “semipresidencialista”. Prosseguiu Lira: “A principal reforma pela qual o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente é a reforma de não deixar retroceder tudo o que já foi aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é mais liberal”.

Para ele, o Legislativo é um bunker contra alguns planos de Lula, entre eles a reestatização da Eletrobras, o fim da autonomia do Banco Central, a revisão da reforma trabalhista e a mudança na Lei do Saneamento. Foi mais ou menos esse o recado dado pelo deputado e por aquele que desponta como seu candidato para presidir a Câmara a partir de 2025, o baiano Elmar Nascimento, do União Brasil, durante um almoço na casa de Rodrigo Pacheco em 23 de maio. O almoço contou com a presença de empresários como André Esteves, do banco BTG, e João Camargo, da CNN Brasil e do think tank empresarial Esfera Brasil. Os comensais foram convidados pelo ex-ministro das Comunicações de Bolsonaro Fábio Faria, desde março diretor de Relações Institucionais, vulgo lobista, do BTG. Esteves é bastante próximo de Lira e tem merecido comentários desabonadores de Lula a portas fechadas.

A ver como Lira e seu time político e econômico do “parlamentarismo à brasileira” vão reagir nas próximas semanas. •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

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