Economia
Terra arrasada
Com os recursos reservados por Bolsonaro para 2023, os serviços socioassistenciais só funcionam por uma semana


No início de dezembro, o IBGE divulgou um estudo alarmante, a confirmar o empobrecimento dos brasileiros. Em 2021, quase 30% da população se encontrava em situação de pobreza, ou seja, 62,5 milhões de cidadãos. Desses, ao menos 17,9 milhões (8,4%) estavam na extrema pobreza. Os números são os maiores da série histórica, iniciada em 2012, e representam um aumento considerável em relação a 2020. Em apenas um ano, a pobreza cresceu 22,7% e a miséria, 48,2% – um resultado influenciado, sobretudo, pela suspensão do auxílio oferecido pelo governo na pandemia. O público mais atingido é formado por nordestinos, mulheres e pessoas negras. Curiosamente, o relatório do IBGE menciona a pesquisa divulgada no meio do ano pela Rede Penssan, a revelar um contingente de 33 milhões de famintos no Brasil. Durante a campanha, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes tentaram negar e desqualificar o dado, ora ratificado pelo principal fornecedor de dados oficiais do País.
A verba deixada pelo ex-capitão permitiria pagar o Vale-Gás só até o meio do ano
Se a revelação por si só é preocupante, a situação agrava-se quando se considera o desmantelamento promovido pelo governo Bolsonaro na rede de proteção social. Informações levantadas pelo Grupo de Trabalho de Desenvolvimento Social e Combate à Fome da equipe de transição de Lula mostram um corte de 96% do orçamento destinado a serviços socioassistenciais. O Ministério da Cidadania limitou-se a administrar o Auxílio Brasil e o Vale-Gás, segundo a senadora Simone Tebet, do MDB, integrante do GT. “Cidadania engloba muito mais que alimento. Todas as políticas públicas relacionadas a emprego, renda, emancipação, qualificação, inclusão, construção de cisternas e distribuição de alimentos em períodos de calamidade pública ficaram em segundo plano”, denunciou Tebet, em entrevista coletiva. A ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, acrescenta a CartaCapital que Bolsonaro não deixou recursos sequer para esses dois programas. “Com o valor reservado no Orçamento, só dá para pagar o Vale-Gás até meados de 2023. No caso do Auxílio Brasil, seria possível pagar apenas um benefício de 405 reais, e não de 600 reais, valor prometido pelos dois candidatos que disputaram o segundo turno.”
Na área socioassistencial, a situação é de calamidade. Nos 5.570 municípios brasileiros, há um conjunto de equipamentos mantidos com recursos do governo federal, em regime de copartipação com prefeituras e governos estaduais. “São abrigos de crianças e idosos, atendimento de jovens em conflito com a lei, mulheres vítimas de violência, trabalho infantil, trabalho escravo, tudo isso deságua direta ou indiretamente na rede de assistência social que foi desmontada”, enumera Campello. Na avaliação da ex-ministra, para atender à demanda seria necessário, no mínimo, uma receita de 2,5 bilhões de reais. “Esse valor é só para abrir as portas dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e atender a população com limites, de forma precária”, diz a economista, lembrando que, em sua gestão, o orçamento disponível era de 8 bilhões de reais, em valores corrigidos pela inflação.
Cegueira. Eis o cenário que Bolsonaro e Paulo Guedes se recusam a enxergar – Imagem: Raimundo Paccó/AFP
No Orçamento de 2023, Bolsonaro reservou para os serviços socioassistenciais somente 49 milhões de reais, cifra que, nos cálculos da ex-ministra, só cobre os custos de sete dias. Neste ano, o orçamento para a área foi em torno de 600 milhões de reais. “O programa de cisternas, por exemplo, que a gente chegou a gastar 1 bilhão de reais por ano, tem 2,6 milhões de reais previstos. Isso é só para não fechar a dotação, não dá nem para abrir um contrato com esse dinheiro. Ninguém vai concorrer a uma coisa, mobilizar, treinar pedreiro e tudo mais por esse valor. Seria inviável no Nordeste.” Campello recorda uma metáfora usada por Bolsonaro durante a campanha para justificar a gastança de dinheiro público na tentativa de se reeleger. Na ocasião, ele disse que não iria “deixar o tanque cheio” para o próximo governo. “Na verdade, eles estão entregando o carro com o tanque vazio, a centenas de quilômetros de qualquer posto de gasolina, e com os quatro pneus furados.”
Diversos contratos relacionados aos programas de proteção social vencem logo nos primeiros dias de janeiro, quando a equipe de Lula começar a preencher as gavetas vazias dos gabinetes. É o caso da compra de cestas básicas para distribuição em situações de emergência, caso das famílias afetadas por enchentes ou deslizamentos de terra durante as chuvas de verão. “O contrato para o fornecimento dessas cestas vence em 5 de janeiro, e eles não se moveram para renovar”, queixa-se Campello. “Os recursos disponíveis despencaram de quase 400 milhões de reais, em 2022, para 18 milhões no próximo ano.”
Fonte: Síntese dos Indicadores Sociais de 2022 / IBGE
O desastroso cenário é confirmado pela também ex-ministra Márcia Lopes. “Temos uma situação de terra arrasada, um cenário de muita fome e, considerando a extensão do Brasil, a diversidade territorial, racial, étnica, das comunidades indígenas, de fronteira, dos migrantes, enfim, de mulheres, crianças, de todo o ciclo de vida, encontramos um quadro de absoluta calamidade e desespero”, afirma a assistente social. “A situação é grave do ponto de vista orçamentário, da concepção do Estado Democrático de Direito, da construção da intersetorialidade entre as políticas. Tudo aquilo que a coordenação do Fome Zero, depois do Brasil Sem Miséria, que integrava as políticas públicas na área de segurança alimentar, na alimentação escolar, na vigilância nutricional, com a presença dos municípios pelas escolas, pelas UBS, pelos Cras, pelos Creas, isso tudo está absolutamente fragilizado.”
Priscila Cordeiro, do Conselho Federal de Serviço Social, lembra que o desmonte da rede de assistência social começou no governo Temer, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, quando o repasse de recursos para a área caiu drasticamente e a participação popular passou a ser praticamente nula. O problema foi acentuado no governo Bolsonaro, enterrando de vez uma política pública que reconhecia uma série de direitos da população em vulnerabilidade. Ela acrescenta que a lógica implantada nos governos petistas de assistência e proteção social foi invertida, dando lugar ao chamado “primeirodamismo”, um retrocesso que remete aos governos militares. “Em quatro anos, retrocedemos quatro décadas, para antes da Constituição de 1988, valorizando o trabalho social da primeira-dama, a articulação com as igrejas, o apelo ao voluntariado, típico do regime militar. Tudo isso em detrimento à lógica de direitos e de cidadania que o Sistema Único de Assistência Social (Suas) vinha consolidando.”
“Bolsonaro está entregando o carro com o tanque vazio e os quatro pneus furados”, lamenta Tereza Campello
Na avaliação da especialista, tão grave quanto o corte orçamentário foi a desarticulação do sistema. “O Suas imprimia a lógica de um serviço público contínuo, ofertado como um direito e não objeto de barganha, que atendia aos preceitos da coisa pública. Tudo tinha de passar pelo Conselho Municipal, com um controle e participação social muito forte”, explica a assistente social, lembrando que, nos primeiros cem dias de governo, Bolsonaro assinou um decreto extinguindo os conselhos que não eram assegurados por lei e esvaziou os que tinham aparo legal. Shirley Samico, da Frente Nacional do Suas e membro do Conselho Regional de Serviço Social de Pernambuco, defende a reestruturação da rede de assistência social a partir de um olhar amplo, que assegure a proteção e a humanização no atendimento. “O cenário para o ano que vem não é fácil. É preciso pensar políticas para o salário mínimo, para a proteção continuada, que hoje é um benefício constitucional e que tem uma fila de espera enorme, pensar políticas de segurança alimentar e nutricional. Essas são tarefas urgentes e é preciso ter um Estado forte para assegurar.”
Susto. A ex-ministra está perplexa com o estrago causado pela atual gestão – Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR
Um dos maiores desafios na recomposição da rede de assistência social do governo Lula será a reconstrução do cadastro único, totalmente desmantelado pela equipe de Bolsonaro. Pelo CadÚnico, o registro das pessoas assistidas passava pelas prefeituras, valorizando a questão da territorialidade e envolvendo uma rede profissionalizada local para atender a população. Com o esvaziamento do recurso, o atual governo passou a cadastrar as pessoas por aplicativo, e apenas para a oferta do auxílio emergencial na pandemia e, meses depois, do Auxílio Brasil, o substituto do Bolsa Família. O novo sistema é alvo de críticas do Tribunal de Contas da União, que identificou pagamentos indevidos a milhões de brasileiros, entre eles 79 mil militares. O rombo estimado pelo órgão de controle é superior a 5 bilhões de reais. Nos cálculos da equipe de transição de Lula, o prejuízo pode ter alcançado 6,6 bilhões. “Houve uma inexplicável multiplicação de famílias unipessoais, compostas de uma só pessoa, nos últimos meses. O Auxílio Brasil de Bolsonaro paga um valor fixo por família, não importa o número de integrantes dela, e muitos brasileiros, por uma estratégia de sobrevivência, declararam viver sozinhos para que o cônjuge também pudesse receber. Como não houve campanha de esclarecimento, não podemos acusá-los de fraude. Muitos foram induzidos ao erro pelo governo, mas também há numerosos casos de fraude, envolvendo pessoas que nunca foram pobres, como aquele empresário que insultou Gilberto Gil no Catar.”
A ex-ministra lembra que, nos últimos anos, os programas de transferência de renda passaram por pelo menos oito mudanças, que geraram graves distorções. Em 2018, antes de Bolsonaro assumir, havia 1,8 milhão de famílias unipessoais no cadastro do Bolsa Família. Esse número saltou para 5,5 milhões em julho de 2022, um aumento de 197%. A movimentação foi maior a partir de novembro de 2021, quando o programa petista foi extinto e substituído pelo auxílio bolsonarista. Essa discrepância não se repetiu entre os beneficiários com mais de dois integrantes na família, onde o aumento foi de 21%: saiu de 40,9 milhões para 49,3 milhões. •
ALÍVIO IMEDIATO
A campanha Natal Sem Fome busca atenuar o sofrimento de quem não aguenta mais esperar pelo amparo do Estado
Socorro. “A ajuda veio em boa hora“, celebra Rosângela – Imagem: Breno Lima/Ação da Cidadania
Com uma renda familiar de apenas um salário mínimo, Rosângela, Edilson e seus dois filhos estão inseridos na estatística definida pelo Banco Mundial de pessoas que vivem na linha da pobreza, cujos rendimentos mensais per capita são inferiores a 486 reais. Como a receita da família não é suficiente para suprir a necessidade do casal e filhos, eles recorrem a doações para sobreviver e têm como principal fonte o trabalho desenvolvido pela Ação da Cidadania, uma referência em projetos sociais que, ao longo dos anos, vem minimizando os impactos da fome no Brasil. “Sou dona de casa, não tenho renda e nossa situação está muito difícil. Só meu marido trabalha e o que ele recebe não é suficiente para cuidar de duas crianças”, diz Rosângela, que é indígena e vive na periferia de São Paulo.
Rosângela e milhares de outras famílias estão cadastradas para receber as doações do projeto Natal Sem Fome, organizado pela Ação da Cidadania, que este ano chega à sua trigésima edição. A campanha de 2022 foi lançada em outubro e contabiliza até agora cerca de mil toneladas de alimentos e 5 milhões de reais em dinheiro. Os donativos começam a ser distribuídos no próximo dia 16 e a expectativa é de que as doações aumentem e superem as de 2021, quando foram arrecadados 1,5 tonelada de alimentos e 10 milhões de reais. Durante a eleição, quando o debate da fome estava na pauta, o ritmo das doações foi bom, mas depois estagnou. A tendência, com a aproximação do Natal, é de que as doações voltem a crescer.
“A fome é o pior problema do Brasil neste momento e não será solucionado a curto prazo. Sempre que o tema sai da mídia, a sociedade diminui radicalmente as doações. Mas nossa expectativa é de que agora, em dezembro, tenhamos um crescimento grande de arrecadação, para que a gente possa chegar ao máximo possível de pessoas. Nosso desejo é superar o ano anterior, porque a demanda tem aumentado e quanto mais pessoas a gente conseguir atender, melhor”, salienta o diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Kiko Afonso. As doações para o Natal Sem Fome podem ser realizadas pela internet até o fim do ano na página da campanha (www.natalsemfome.org.br) ou pelo Pix: doe@natalsemfome.org.br.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terra arrasada “
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