Justiça

TCU enterra apuração de acordo entre MPF e Transparência Internacional sobre a leniência da J&F

A Corte de contas endossou sua área técnica e afastou ilegalidades no memorando de entendimento, mas reforçou que só o Estado pode gerir recursos públicos de leniências

TCU enterra apuração de acordo entre MPF e Transparência Internacional sobre a leniência da J&F
TCU enterra apuração de acordo entre MPF e Transparência Internacional sobre a leniência da J&F
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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O Tribunal de Contas da União decidiu, por unanimidade, arquivar uma apuração sobre possíveis irregularidades em um memorando firmado entre o Ministério Público Federal e a ONG Transparência Internacional em 2017, ligado à gestão de 2,3 bilhões de reais pagos pela J&F em seu acordo de leniência.

A avalição do plenário do TCU é que não houve ilegalidade no termo assinado. A Corte levou em consideração o fato de que o memorando de entendimento expirou em dezembro de 2019 sem resultar em danos aos cofres públicos, uma vez que a pessoa jurídica que seria criada para gerenciar o dinheiro não saiu do papel.

Há, no entanto, ressalvas sobre as sugestões da TI para a utilização das verbas provenientes de acordos de leniência em casos de corrupção. Segundo o acórdão do julgamento, a adoção das recomendações apresentadas pela ONG elevaria o risco de cooptação de dinheiro por agentes externos ao acordo. Também aumentaria a chance de conflitos de interesse e de desvio de recursos.

O TCU ainda ressaltou que a previsão de gestão de verbas por uma instituição privada em acordos de leniência afronta o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal.

Em nota divulgada após o julgamento, a Transparência Brasil reforçou divergir da análise técnica do TCU sobre as sugestões e alegou que o modelo de governança proposto tinha “um conjunto robusto de mecanismos de integridade”.

“Apesar da discordância técnica e pontual, a Transparência Internacional – Brasil reconhece a legitimidade das preocupações levantadas e valoriza o debate público sobre modelos de reparação social em casos de corrupção, prática recomendada por organismos multilaterais e já adotada em diversos países”, diz um trecho do comunicado.

Na mira do Supremo

Em fevereiro de 2024, o ministro do STF Dias Toffoli decidiu abrir uma investigação sobre a Transparência Internacional. Ele pediu, em linhas gerais, que a Procuradoria-Geral da República encaminhasse uma série de documentos sobre a atuação da ONG no Brasil, a fim de apurar “eventual apropriação indevida de recursos públicos” por parte da entidade.

O caso, porém, não nasceu no STF.

Em 2021, o deputado federal Rui Falcão (PT-SP) acionou o Superior Tribunal de Justiça para cobrar a abertura de uma investigação do MPF e do TCU sobre a TI, por sua participação em acordos de leniência assinados no âmbito de operações como a Lava Jato e Greenfield.

Na petição, Falcão argumenta que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot teria incentivado o envolvimento da TI na administração e na aplicação de recursos bilionários provenientes dos acordos de leniência.

Para o petista, já seria “escandaloso” o fato de o Ministério Público admitir a atuação de uma entidade internacional na discussão de verbas para investimentos em “projetos sociais”. Mais grave, segundo ele, seria o fato de que o montante negociado chegava a 2,3 bilhões de reais.

A petição reproduz trechos de diálogos mantidos entre procuradores da Lava Jato e obtidos pela Operação Spoofing. Parte desse material deu origem à série de reportagens conhecida como Vaza Jato. Em uma das conversas, o então chefe da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, teria mencionado a intenção de envolver a TI em um “asset sharing” com autoridades dos Estados Unidos, em relação à repartição de valores negociados.

Falcão também reproduziu uma mensagem de 29 de novembro de 2018 que, em sua interpretação, indicaria que os procuradores buscavam um caminho para “evitar passar pelo TCU”, ao falarem sobre uma reunião com a FGV e a TI a respeito dos 2,3 bilhões de reais.

A mensagem, cujo autor não é identificado, dizia ainda que o estudo não deveria ser repassado à Petrobras naquele momento, pois a TI “tem receio de ficar fora da possibilidade de receber recursos”.

O que está nas mãos do STF

Uma série de documentos do MPF faz parte dos autos do processo em que Toffoli emitiu sua decisão sobre a Transparência Internacional. Um deles é o Memorando de Entendimento entre o Ministério Público, a TI e a Amarribo Brasil, entidade que se diz “pioneira no combate à corrupção”.

O objetivo oficial do memorando seria estabelecer uma “cooperação entre as partes, visando aprimorar a qualidade da informação e o compartilhamento de conhecimento técnico relativo às áreas de prevenção de corrupção, participação social e transparência pública”.

Uma das cláusulas previa a realização de congressos, seminários e outros eventos supostamente relacionados a prevenir a corrupção. Outra projetava a organização conjunta de campanhas sobre o tema, além do desenvolvimento de atividades em defesa de vítimas e denunciantes de corrupção.

Outro documento que compõe os autos é uma carta da TI ao MPF na qual a ONG diz que busca restabelecer sua presença permanente no Brasil para trabalhar no “apoio aos ativistas e às organizações sociais brasileiras que se dedicam à luta contra a corrupção”.

Nesse ofício, a Transparência Internacional propõe uma “orientação geral para a designação de parte dos recursos oriundos de acordos de leniência firmados pelo MPF – e outros órgãos estatais – a projetos de prevenção e controle social da corrupção”.

Em mais um documento encaminhado pela TI ao MPF, a entidade saúda Rodrigo Janot por destinar a “projetos sociais” uma parte dos recursos oriundos do acordo de leniência com a J&F. “Ainda mais alvissareira é a informação de que um dos temas prioritários desses projetos sociais será o combate à corrupção”, diz a carta.

A ONG chegou a expressar em detalhes o que imaginava ser prioritário na destinação das verbas”: 50% para “qualificação, proteção e promoção do controle social” e 50% para “iniciativas que promovam novas formas de participação democrática, conscientização política, formação de novas lideranças e inclusão de minorias e grupos excluídos na política”.

Meses depois, a TI voltou a se corresponder com o MPF e disse ser necessário “o estabelecimento de um sistema de governança, estratégia de investimento e monitoramento que garantam o máximo de integridade e eficiência à utilização do recurso”.

“Neste sentido, a Transparência Internacional colocou-se à disposição, em reuniões com as partes signatárias do acordo, para apoiar neste processo de estruturação e, posteriormente, de monitoramento do cumprimento das obrigações de financiamento social do acordo”, reforça o documento.

Na resposta, Rodrigo Janot afirmou à TI “reiterar a importância da definição do plano de investimento na área temática da prevenção e controle social da corrupção”. Essas correspondências ocorreram ao longo de 2017.

Aras entra em cena

Em 2020, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, mandou um ofício à 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF sobre os acordos entre o órgão e a Transparência Internacional. Ele destacou a previsão de que a TI “especifícará as ações necessárias para qualificação e estruturação de uma entidade para atender a imposição dos investimentos sociais, como previsto no acordo de leniência”.

“Evidente que uma organização privada irá administrar a aplieação dos recursos de R$ 2,3 bilhões nos investimentos sociais previstos no Acordo de Leniência, sem que se submeta aos órgãos de fiscalização e controle do Estado“, escreveu Aras. “A Transparência Internacional é uma organização não-governamental (ONG) internacional sediada em Berlim. Cuida-se de instituição de natureza privada cuja fiscalização escapa da atuação do Ministério Público Federal.”

Em 2023, a número 2 da gestão de Aras, Lindôra Araújo, pediu ao então presidente do STJ, Humberto Martins, o envio do pedido de Rui Falcão contra a TI ao Supremo, devido à relação com processos derivados da Operação Spoofing.

O outro lado

Em nota divulgada após a decisão de Toffoli em 2024, a Transparência Internacional afirmou que “são falsas as informações de que valores recuperados através de acordos de leniência seriam recebidos ou gerenciados pela organização”.

“A Transparência Internacional jamais recebeu ou receberia, direta ou indiretamente, qualquer recurso do acordo de leniência do grupo J&F ou de qualquer acordo de leniência no Brasil. A organização tampouco teria – e jamais pleiteou – qualquer papel de gestão de tais recursos”, diz o comunicado.

A ONG sustenta ter produzido e apresentado um estudo técnico com diretrizes e as melhores práticas de governança para destinar “recursos compensatórios” em casos de corrupção. Diz também que “tais alegações já foram desmentidas diversas vezes pela própria Transparência Internacional e por autoridades brasileiras, inclusive pelo Ministério Público Federal”.

“Reações hostis ao trabalho anticorrupção da Transparência Internacional são cada vez mais graves e comuns, em diversas partes do mundo”, prossegue a nota. “Ataques às vozes críticas na sociedade, que denunciam a corrupção e a impunidade de poderosos, não podem ser naturalizados.”

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