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Sem escape

Acabou a chicana da casa-grande: a injúria racial agora será punida como racismo, crime inafiançável e imprescritível

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A equiparação das condutas é uma velha reivindicação do movimento negro - Imagem: Nelson Almeida/AFP
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Em março de 2022, um turista de São Paulo foi preso em flagrante após chamar um homem de “macaco” em um restaurante em Arraial d’Ajuda, na cidade de Porto Seguro, ao sul da Bahia. Os clientes aplaudiram quando policiais militares deram voz de prisão e conduziram o agressor à força para a viatura, após ele se recusar a acompanhá-los. Na delegacia, o autor do ataque foi indiciado por injúria racial, desacato e resistência. Prestou depoimento e acabou liberado após pagar fiança de 5 mil reais. Por uma cortesia da Polícia Civil, o nome do acusado foi preservado, embora as imagens do grotesco episódio de racismo tenham corrido as redes sociais.

O turista paulistano acabou beneficiado por uma formalidade jurídica que há tempos salva o pescoço dos racistas no último país das Américas a abolir formalmente a escravidão. Até pouquíssimo tempo, a legislação brasileira previa uma curiosa distinção de conduta: a injúria racial seria a ofensa direcionada a um indivíduo específico, ao passo que o crime de racismo atingiria uma coletividade, toda uma raça, sem especificação do ofendido.  A interpretação sobre o que era uma coisa ou outra caberia ao delegado, num primeiro momento, e depois ao promotor e juiz. Raríssimas vezes as autoridades entendiam tratar-se do segundo caso, mesmo quando o argentino ­Leonardo Ponzo, torcedor do Boca Júniors, imitou um macaco para torcedores do Corinthians, durante uma partida da Libertadores. Indiciado por injúria racial, pagou fiança e foi liberado. Quem seria, então, o indivíduo específico ofendido, senão todos os negros presentes no estádio?

A diferenciação entre uma conduta e outra também tinha implicações na pena. Quem pratica injúria racial pode ser condenado de 1 a 3 anos de reclusão, mas ninguém cumpria pena em regime fechado. Quando a sentença é inferior a quatro anos, o apenado migra automaticamente para o regime semiaberto e pode ­pleitear a prestação de serviços comunitários. Já a prática de racismo, prevista na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, prevê até cinco anos de reclusão, além de se tratar de um crime imprescritível e inafiançável. Em outras palavras, nem o turista paulistano nem o torcedor argentino poderiam ter sido liberados tão facilmente se o delegado tivesse interpretado a conduta deles de maneira diversa no momento da prisão em flagrante.

A condescendência das autoridades com os racistas é notória. No estado de São Paulo, 84% dos crimes raciais são registrados como injúria, e não como racismo, revela um recente estudo da Fundação Getulio Vargas. Ao sancionar a lei que equipara as duas condutas, na quarta-feira 11, durante a cerimônia de posse das ministras Anielle Franco, da Igualdade Racial, e Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas, Lula atende uma histórica reivindicação do movimento negro. O texto havia sido aprovado pelo Congresso em dezembro de 2022 e representa um passo decisivo na punição dos racistas. Agora, não há mais dúvida: qualquer ofensa, piada ou manifestação de cunho racista terá o mesmo rigor da lei.

“O racismo recreativo terá pena ainda maior”, celebra Moreira – Imagem: Redes sociais

Um dos avanços trazidos pela mudança é o fim da prescrição dos crimes de injúria racial, observa o advogado Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade­ de Coimbra. “Essa discussão em torno do crime contra honra e o crime de racismo já existia há muito tempo, o problema é que era extremamente comum a prescrição no caso de crime de injúria e o agressor ficava impune. A partir do momento que houver mais condenações, eu acredito que a repercussão disso pode ter um efeito dissuasivo.” Antes, a falta de punição fazia com que muitas vítimas não se sentissem impelidas a procurar a Justiça, acrescenta. “Há uma espécie de pacto de branquitude, entre um Judiciário composto em sua maior parte por agentes de Justiça brancos e agressores brancos. Isso colabora para um ambiente institucional com pessoas sem sensibilidade para compreender crimes de racismo.”

Uma das principais referências em Direito Antidiscriminatório no Brasil, o advogado Adilson Moreira, professor da Faculdade de Direito da Universidade ­Mackenzie, segue nesta mesma linha de Caldas: “Como nosso sistema judiciário é composto fundamentalmente por pessoas brancas de classe alta, que não têm contato com negros, nunca sofreram preconceito racial nem estudaram sobre o tema na faculdade, essas pessoas não conseguem diferenciar as formas de discriminação nem possuem conhecimento adequado. Diante da hegemonia da doutrina da ‘democracia racial’, juízes e juízas brasileiras fazem todo o possível para desqualificar tanto a existência do crime de racismo como também da injúria racial”.

Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Harvard e pós-doutor pela Universidade de Berkeley, Moreira é autor do livro Racismo Recreativo, crime que também será punido com mais severidade. “Haverá acréscimo de um terço na pena quando a injúria racial ocorrer para promover a descontração de determinadas pessoas”, celebra. “O racismo é um sistema de dominação social que tem como propósito garantir vantagens competitivas para pessoas brancas e também garantir que a respeitabilidade social seja um atributo exclusivo de pessoas brancas. Isso significa que esses indivíduos não estão fazendo piada. Eles estão promovendo a degradação moral de pessoas negras para que possam continuar tendo um acesso privilegiado a oportunidades sociais.”

A cantora e compositora Leci Brandão, hoje deputada estadual de São Paulo pelo PCdoB, alerta ser preciso manter a mobilização. “Não dá mais para aceitar que o racismo seja relativizado. Agora, o desafio será fazer com que delegacias e tribunais respeitem a lei.” O apelo é ecoado por Frei David Santos, diretor da Educafro, entidade dedicada à inclusão de pessoas negras no ensino superior. O religioso lembra que uma lei obrigou o ensino de História do Povo Negro nas escolas em 2013, mas até agora somente 10% das instituições de ensino cumprem a determinação. “A magistratura é branca demais e não tem a sensibilidade que deveria para a demanda do povo negro. Consequentemente, não leva a sério e não exige nossos direitos.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem escape “

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