Política

“Se estivéssemos em uma democracia, Bolsonaro não seria mais presidente”, diz Mara Telles

Para a cientista política, cenário atual é fruto de ataques às instituições representativas desencadeado pela Lava Jato

Foto: MAURO PIMENTEL / AFP
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*Nicolau Soares

O Brasil vive um momento político delicado, que junta violência por causas político-eleitorais e risco de ruptura institucional. O presidente Jair Bolsonaro (PL) é o principal responsável pela situação, mas não o único. Muitas mãos colaboraram para o desgaste das instituições representativas brasileiras – incluindo a maior parte do espectro político nacional, que não soube reagir à altura dos desafios que enfrenta desde 2015.

Esse é o diagnóstico de Mara Telles, cientista política, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel), apresentado em entrevista ao Brasil de Fato.

Sobre o atual Bolsonaro, Telles é taxativa: “se estivéssemos em uma democracia, Bolsonaro não seria mais presidente”.

“Ele fechou com louvor a prova de improbidade. Ele cometeu não só crimes de improbidade administrativa como de corrupção, de incitar o ódio, estimular a violência, atacar todas as instituições, desde as universidades passando pelo TSE, pelo STF”, enumera.

“Me estranha estarmos aqui hoje em uma situação de normalidade, como se a realidade estivesse suspensa. Eu acho algo distópico: enquanto um presidente diz que vai dar um golpe, prepara o golpe, apresenta o golpe ao mundo na presença de cerca de 70 diplomatas, nós estamos aqui verificando se vai ou não ter não o golpe, mas a produção de um discurso golpista.”

“O governo dele é a produção da violência”, diz Mara Telles sobre Bolsonaro
Foto: UFMG

Violência atual extrapola até os padrões brasileiros

A análise da cientista política, uma das primeiras analistas a apontar a possibilidade de vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, parte do assassinato do petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, pelo bolsonarista Jorge Guaranho, que para Telles se diferencia da violência que já existe no país. “A violência no Brasil é estrutural e a violência política já existe no Brasil há muitos anos. O número de prefeitos e vereadores mortos no Brasil é algo estarrecedor”, pondera.

Contudo, a violência atual é diferente por ser “estruturada em cima de uma ideologia” que se organiza em torno da figura e do discurso do presidente. “A gente vê um presidente que muito antes de ser candidato já promovia o discurso de ataque às instituições, onde, no lugar das instituições, nós teríamos a produção e reprodução do ódio. Na medida em que ele estimula esse ódio, essa violência, muito embora ele diga que seja uma metáfora, os seus apoiadores tomam aquilo como uma verdade e agem. Ele não age, mas ele estimula a ação”, sustenta.

Ela avalia que esse discurso belicoso, que desumaniza os opositores, tem levado a um aumento da violência em geral. “Você tem um estímulo à violência por parte do presidente. Quando a gente pensa em violência no Brasil, pensa em feminicídio, na execução das pessoas nos morros, como aconteceu recentemente no Complexo do Alemão, no Jacarezinho. Só que isso vem aumentando os casos de feminicídio no brasil, de invasão nas comunidades – que não é invasão, é execução”, analisa.

“Normalmente, nesses casos, mesmo de feminicídio, aquele que está executando a mulher, uma parte significativa é de policiais. Como aconteceu em Foz do Iguaçu, onde a vítima era um guarda municipal e a outra arma era também de um policial.”

Esse discurso gerador de violência se ramifica de várias formas, seja na celebração de chacinas cometidas por policiais ou nas medidas para facilitar e incentivar a compra de armas de fogo pela população. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas com licenças para armas de fogo subiu de 117,4 mil em 2018 para 673,8 mil em junho deste ano – um aumento de 473% durante o mandato de Bolsonaro. Segundo dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), vinculado à Polícia Federal, o número de armas registradas no Brasil disparou de 637 mil em 2017 para quase 1,5 milhão em 2021.

O governo dele é a produção da violência. E sobretudo agora em que ele se encontra em uma situação não muito favorável para as eleições de 2022, ele tem radicalizado os ataques às instituições, ao TSE, e estimulado a violência não por parte dele, mas de seus seguidores“, acusa Telles. “Tem um ditado que todo mundo conhece: eu não tenho medo da chefia, eu tenho medo do guarda da esquina. Que é aquele que tem a arma e é quem vai executar esse discurso promovido pela presidência.”

Democracia x rompimento das instituições

De volta à morte de Marcelo Arruda, a cientista política refuta a narrativa de que o ocorrido seria fruto de uma polarização política entre Lula e Bolsonaro, que acirraria os ânimos de ambos os lados. “Ficou bastante claro que aquela morte não foi derivada de uma polarização. Polarização é quando ambos os lados estão armados e matam. No caso, tem alguém que mata e tem alguém que morre”, sustenta.

A professora avalia que houve de fato uma polarização – na verdade, quase uma bipartidarização – entre PT e PSDB a partir de 1994, mas que a situação é diferente do que ocorre agora. “A polarização não é com o PL, o Partido Liberal. De um lado são pessoas tentando defender a democracia, o funcionamento institucional, e de outro lado um grupo de extrema-direita que se distribui em vários partidos e que quer romper as estruturas institucionais. Não é um processo de polarização dentro de um ambiente democrático, mas entre democracia versus autoritarismo”, conclui.

Mau perdedor

A construção desse cenário de risco de ruptura institucional não foi um processo simples nem rápido, na opinião da cientista política. Ela enxerga as raízes da atual desestruturação exatamente no PSDB, mais precisamente na figura de Aécio Neves, candidato da sigla à Presidência da República derrotado por Dilma Rousseff (PT), em 2014.

“Esse processo de ruptura institucional começa quando a elite não adere às normativas democráticas. Quando o candidato derrotado Aécio se nega a reconhecer os resultados, pede recontagem de votos, entra na Justiça para que Dilma não fosse diplomada, ali nós abrimos a caixa de Pandora”, avalia.

Naquele momento, o PSDB aliou-se a grupos mais radicais para derrotar, fora das regras do jogo, o PT. No entanto, esses mesmos grupos se voltam contra os tucanos e outras forças da direita, desembocando na eleição de Jair Bolsonaro.

Lava Jato amplificou a antipolítica

Outro capítulo desse processo foi a operação Lava Jato, amplamente apoiada mídia corporativa que, mesmo diante de evidência de abusos, tratou com todas as honras figuras como Sérgio Moro e Deltan Dalagnol.

“Houve um empoderamento de todas as instituições não representativas. Durante a Lava Jato o discurso foi antipolítica, antissistema, todos os partidos e instituições democráticas e representativas foram atacadas, o que desaguou, portanto, em uma eleição, em 2016, em que a esquerda perdeu parte significativa de seus eleitores nas prefeituras e nas Câmaras Municipais. Justamente porque os outsiders conseguiram, com esse discurso antissistema, eleger inúmeros vereadores, prefeitos etc.”

Telles avalia que as próprias mídias perceberam que o resultado desse processo não foi positivo, uma vez que os “jornalistas estão sendo atacados em sua própria liberdade de expressão” pelo presidente durante as entrevistas.

Eu as vejo [as mídias] assustadas com esse quadro, mas sem fazer a autocrítica. Então, assim como o PT tem que fazer autocrítica em função de inúmeros erros e até da conivência com alguns erros, a mídia muito mais, porque ela deu a faca e o garfo para que a operação Lava Jato empoderasse a polícia e, consequentemente, empoderasse instituições não representativas”, analisa.

Leitura equivocada da esquerda

As forças de esquerda, principais alvos da Lava Jato, que abriu espaço para o golpe contra Dilma Rousseff (PT), também têm sua parcela de responsabilidade nesse processo, avalia Telles. Para ela, esse grupo não soube reagir aos ataques contra o sistema democrático. Isso vale tanto para as ilegalidades cometidas pela Lava Jato e protegidas pela mídia, que deveriam ter sido coibidas, quanto para ataques diretos promovidos por militantes da extrema direita que se fortalecia nas manifestações pelo impeachment.

“Eu me lembro, porque estudo esse tema, que a primeira manifestação em 2015, em março, a presidente Dilma foi na televisão informar que temos aqui manifestações democráticas, quando já se mostrava várias cenas de cartazes, de papeletas com placas [com pedidos] de intervenção militar“, recorda.

“É ali que a autoridade presidencial, que os ministros da Justiça deveriam ter interrompido, não as manifestações, porque nem todos que foram estava exibindo esses cartazes de intervenção, mas aqueles que exibiam deveriam ter sido imediatamente punidos. Acho que o governo não soube ler, não soube interpretar a conjuntura política e não agiu com o devido rigor constitucional e jurídico em relação ao que se alastrava no país.”

O quadro criou as condições para a eleição de Bolsonaro, que já em 2018 dava grande espaço em sua campanha para valorizar os militares e o militarismo. “O resultado é que hoje nós temos um número de militares em cargos de primeiro e segundo escalão maior do que nós tivemos durante a ditadura militar”, frisa.

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