Política

Reencontro ou desencontro? Corte em programa de acolhida em São Paulo deixa mais de 100 à deriva

Transição mal planejada do programa ‘Autonomia em Foco’ para o ‘Reencontro’ deixa moradores sem informações claras sobre seu futuro, com planos de realocação ainda indefinidos

Unidades do programa 'Autonomia em Foco', em São Paulo — Foto: Sebastião Moura/CartaCapital
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No último dia 16 de agosto, Roseli Kraemer Esquillaro, de 60 anos, foi surpreendida por um comunicado abrupto: seria removida da casa de acolhimento na qual vive há dois anos — sem maiores detalhes de quando e como aconteceria essa mudança. 

Segundo o informe, emitido pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMAD) da cidade de São Paulo, as duas unidades do programa ‘Autonomia em Foco’ —  no Bom Retiro, onde Roseli vivia, e na Liberdade — deixariam de funcionar 

As duas unidades do programa, em funcionamento desde 2014, atendem 300 pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade social. 

Essas pessoas serão realocadas para o novo programa da cidade, chamado ‘Reencontro’. No entanto, apenas 10 famílias, escolhidas por critérios não divulgados pela SMAD, foram informadas sobre a mudança. As outras não receberam o informe e ficaram sem saber para onde iriam. 

É o caso de Maria Andrade, de 66 anos. Morando no acolhimento há sete anos, ela e seu marido já enfrentaram a vida nas ruas de São Paulo. Atualmente viúva, mas ainda sem acesso à pensão pela morte do marido, ela conta apenas com a renda do Bolsa Família para sobreviver.

“Não recebi o comunicado, me ignoraram, não me respeitam. Eu não tenho pra onde ir. Querem criar uma moradora idosa de rua?”, questiona.

Para os moradores da sede Liberdade, a surpresa foi ainda maior. Nem sequer a gerente do espaço foi comunicada sobre o fim do programa.

“Assim que soube do que estava acontecendo no Bom Retiro, alertei a gerência aqui”, relata Michele Gabriela, 34, outra residente do acolhimento. “O Centro Pop [Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua] agendou uma reunião para o início de agosto.”

No entanto, não houve nenhuma definição de data para mudança e até o pessoal da administração do acolhimento não tinha conhecimento sobre as mudanças planejadas pela SMAD, liderada por Carlos Bezerra Jr (PSD).

O fato contado por moradores das unidades é rebatido pela SMAD, que afirma que realizaram atendimentos individuais e duas reuniões coletivas uma no dia 8 de agosto com cerca de 40 pessoas, e outra no dia 29 de agosto com participação de 50 pessoas.

O orçamento alocado para o ‘Autonomia em Foco’, promete a Prefeitura, será redistribuído entre várias outras iniciativas assistenciais. Embora a SMAD prometa apoio na busca por emprego e capacitação profissional, nenhuma data foi estabelecida para a realocação das famílias, deixando dúvidas sobre o destino daqueles que não se encaixam no novo programa e que não assinaram mudar de acolhimento.

Incerteza sobre presente e futuro 

Para além da falta de transparência sobre o processo de mudança, os moradores também lamentam a autonomia reduzida. 

O ‘Autonomia em Foco’ tem duas unidades centrais e permite entrada e saída 24/7, oferecendo quartos individuais. Já o novo programa, ‘Reencontro’, tem regras mais estritas, com horários fixos para todas as atividades e alimentação provida pelos funcionários.

Além disse, o ‘Reencontro’ tem um público-alvo específico: famílias — com ou sem filhos. De acordo com as diretrizes, famílias compostas por mais de quatro membros ou indivíduos solteiros não são elegíveis. A seleção prioriza ainda aquelas pessoas que deixaram as ruas recentemente, entre seis meses e dois anos atrás.

Muitos acolhidos pelo ‘Autonomia em Foco’, porém, não se encaixam nessas regras e serão transferidos para outros serviços, como os de hotéis sociais e repúblicas — ao qual, os quartos são compartilhados.

Foto: Print do site da SDAMS sobre o novo programa de acolhimento ‘Reencontro’

Mirian Coelho da Silva, há seis anos no acolhimento, resume o descontentamento com a falta de autonomia: “Somos como marionetes, totalmente submissos às regras da SMAD.”

A vereadora Luna Zarattini, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, questionou oficialmente a Secretaria sobre as mudanças, mas ainda não recebeu uma resposta.

Gabriela Barbosa, de 24 anos, e Michele Gabriela criticam as limitações do ‘Reencontro’, que afetam, entre outras coisas, o acesso à educação e ao trabalho.

 “Aqui a gente tem total autonomia e eu estudo à noite, né? Fiquei sabendo que lá [no Reencontro] vão poder entrar só até às 10h10”, resume Gabriela. “Muita gente vai ficar sem vaga e as mães vão ter que parar de trabalhar para poder tomar conta dos filhos”, completa Michele.

Para solteiros como Mirian Coelho, a mudança representaria um passo atrás, comprometendo o ganho de independência. “Isso tiraria nossa autonomia, porque a gente já tem as nossas coisas, TV, computador, geladeira.”

Aqueles que se recusam a regressar em seu processo de autonomia precisam assinar um termo de recusa. Este grupo inclui jovens solteiros, imigrantes, idosos e pessoas com deficiência.

‘Ou você segue a linha, ou você está fora’

A incerteza sobre o futuro após os dois anos de acolhimento preocupa Luci Nazaré, 59 anos. Ela questiona o suporte oferecido para a reintegração social: “O que essas pessoas recebem para conseguir retomar suas vidas?”

O secretário afirma que alguns solteiros passam até uma década no programa. “Mas quem está na rua, como nós, não tem rede de apoio. Mudanças frequentes de local nos desestabilizam, nos fazendo voltar para as ruas, mesmo depois de conseguir um emprego,” argumenta ela.

Mirian Coelho também detalha suas preocupações com a saúde: “Ao chegar aqui, contraí uma doença grave que me deixou incapacitada por 10 meses. Perdi meu emprego e o poder de pagar aluguel.” Ela destaca ainda dificuldades familiares: “Vim de um contexto de violência; minha família não pode me ajudar.”

Jorge Luiz, de 60 anos e no programa desde 2014, compartilha uma inquietação similar. Agora empregado, ele teme perder seu trabalho devido à mudança de moradia.

A vereadora Zarattini reforça a necessidade de uma estratégia mais completa. “Ter um lugar para ficar não é suficiente. Como essas pessoas vão pagar o aluguel sem um programa de empregabilidade integrado?”

O que diz a SMAD

Em nota, a pasta afirma que os moradores estão em “processo para a saída qualificada” e que “grande parte deles tem trabalho fixo e rendimento próprio”. Ou seja, não há data marcada para mudança de todos os acolhidos, mas sim, uma transferência escalonada. 

Além disso, informa que o programa terá, ao menos quatro unidades, duas já entregues: a Vila Reencontro Cruzeiro do Sul, com 40 casas em containers e a Vila Reencontro ‘Anhangabaú’, com a mesma quantidade de casas. 

Há uma projeção de ampliar a primeira vila para receber, ao todo, até 1.080 pessoas.

O montante destinado para o ‘Autonomia em Foco’ será compartilhado entre diversas ações assistenciais. 

A Secretaria ainda promete apoio de inserção no mercado de trabalho e capacitação profissional. Os demais perfis que não se encaixam no novo programa devem ir para hotéis sociais, centros de acolhida e repúblicas. 

Errata: Não foram 300 pessoas impactadas com o fechamento do programa ‘Autonomia em Foco’, mas, pelo menos 171 pessoas, conforme apontado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo e confirmado com moradores.

O número de 300 pessoas se tratava da capacidade total de acolhimento nas duas unidades físicas do programa ‘Autonomia em Foco’.

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