Política

PL que prevê cobrança para acesso a dados do Poder Público preocupa especialistas

Organizações da sociedade civil e startups de governança tecnológica alertam para os riscos de retrocesso da transparência de atos do governo

Rachadura. A fragilidade foi apontada no Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, que armazena dados de quem compra ou vende propriedades
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Nesta terça-feira 12, a Comissão do Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados adiou a votação do Projeto de Lei 2.224/21, que prevê a possibilidade de cobrança por parte dos órgãos públicos ao acesso a banco de dados.

Segundo o texto, proposto pelo deputado federal Felipe Rigoni (UB) e emendado por Tiago Mitraud (Novo), “órgãos e entidades públicas poderem estabelecer valores de ressarcimento ou cobertura de despesa para suplantar os custos de fornecimento do dado”, quando este for compartilhado em tempo real com empresas privadas.

Entre os interessados na cobrança desses valores estão o Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro e a Receita Federal.

O PL em análise, que alteraria a Lei 14.129, conhecida como Lei do Governo Digital, é genérico e não especifica quais os bancos de dados poderão se cobrados, como também não estipula os valores previstos.

A promulgação da Lei de Acesso à Informação, de 2011, determinou ser direito do cidadão o acesso automatizado a dados públicos. A legislação foi reforçada pelo Marco Civil da Internet, de 2014.

Para diversas entidades, como a Open Knowledge Brasil, a medida é uma “ameaça à inovação cívica e à democracia”.

“Além de excessivamente genérico, o dispositivo é contrário ao espírito do próprio Projeto de Lei de Governo Digital em que foi introduzido. Afinal, o texto limita ou mesmo inviabiliza o uso de dados públicos para inovação e projetos de tecnologia cívica”, diz a entidade em nota.

Segundo Eduardo Reis Alexandre, diretor-executivo da GovTech Datapolis, o projeto não deixa claro quais dados poderiam ficar restritos ao acesso mediante pagamento.

“Poderíamos estar falando da restrição a dados de projetos de lei, de dados de acesso à informação relacionado a um órgão, de gastos públicos relacionados a um Ministério, ou até do acesso à agenda de uma autoridade”, disse o especialista.

A regulamentação quanto às bases de dados que poderão ser cobradas ficaria a cargo do Executivo, podendo mudar em cada ente federativo ou município.

“As esferas do Executivo é decidirão o que cobrar e como que eles vão cobrar qualquer categoria de dado público que seja disponível ao público. E isso pode reverberar em qualquer esfera, inclusive na no trabalho da imprensa, por exemplo”, alerta Eduardo. E conclui: “Seria assim o fim da transparência no Brasil, ela vai ser severamente afetada. Já imaginou jornalistas pedirem uma requisição de um documento ou algo e isso ser cobrado?”.

Ainda conforme a Open Knowledge, a experiência norte-americana de cobrar pelo acesso dos dados, causou um efeito contrário do esperado. “Se os órgãos geram receita a partir da indisponibilidade de acesso aberto, não há incentivo para melhorar suas práticas de transparência e de prestação de contas”, diz trecho.

O PL, apontado como contraditório aos objetivos das leis brasileiras, foi aprovado na Comissão de Ciências e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara.

“Sabe-se que muitos dados coletados pela administração pública são disponibilizados com uma certa defasagem temporal, o que impossibilita muitas aplicações que necessitam de atualização constante, ou seja, em tempo real ou quase real. Em muitas situações, essas informações não são disponibilizadas pelos custos que seu rápido e intenso processamento exige e, com isso, acabam não sendo ofertadas ao público”, justifica o relator no parecer favorável a proposta.

O texto ainda precisa ser aprovado em outras comissões, como a Comissão de Constituição e Justiça, Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público e Comissão de Finanças e Tributação.

Na CTASP o projeto tem aval favorável do relator, Tiago Mitraud, que alega que o Poder Público não tem conseguido conciliar os pedidos de acesso à informação e publicidade de dados com base na transparência, o que causaria tratamento não isonômico entre os cidadão e os pedidos seletivos.

“A medida mostra-se pertinente em termos de justiça social, na medida em que qualquer atuação da Administração Pública é financiada por tão somente dois canais: orçamento geral do ente federativo, destino dos impostos arrecadados; e a contraprestação direta pelo usuário da atividade estatal prestada, que comumente tem natureza de tarifa”, diz trecho do parecer favorável ao seguimento do PL.

O parecer que seria votado nesta terça-feira, foi adiado para agosto.

Tema antigo

Apesar de a discussão estar atualmente em trâmite na Câmara, o tema é antigo e já foi discutido em outras oportunidades.

O Ministério da Ciência e Tecnologia já havia descartado a cobrança por dados do Poder Público em um parecer interno quando da aprovação da Lei 14.129, que agora tenta-se alterar.

A Serpro, empresa estatal, argumentou que sofreria impactos do aumento do volume de acesso às suas bases de dados, caso perca o amparo legal que permitia a venda do acesso aos dados a empresas privadas.

No documento, o órgão aponta que os custos da disponibilização dos dados e o uso da máquina pública para estes fins já é pago pelo contribuinte por meio dos impostos.

A partir da análise do parecer, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou os artigos que tratavam da cobrança.

Antes do veto e da vigência da Lei 14.129, conhecida como Lei do Governo Digital,  a venda de pacotes de dados de cidadãos brasileiros pela estatal gerou lucro de 128,4 milhões, somente em 2020.

Em 2018 a Controladoria-Geral da União proibiu que a Receita Federal cobrasse valores altíssimos para o acesso a informações públicas sobre o castro de empresas. Esses dados já deveriam estar disponíveis em formato aberto.

O Tribunal de Contas da União também considerou que a cobrança pelos dados pelo Serpro e pela Dataprev, empresas estatais que prestam serviços de tecnologia da informação no âmbito federal, pouco transparente.

À época o TCU constatou que, no período de 2014 a 2017, as estatais tiveram um baixo índice de eficiência e praticaram preços maiores que os praticados no mercado.

“O percentual de clientes satisfeitos com tal serviço, nas duas empresas, é baixo, girando em torno de 50%”, afirmou o relator do processo no Tribunal, ministro Vital do Rêgo.

Juntas, a Serpro e a Dataprev gerenciam uma carteira de contratos com órgãos e instituições públicas, da ordem de 13,3 bilhões de reais.

A aprovação do PL também pode ser considerada divergente quanto aos interesses do governo Bolsonaro. Além do veto presidencial sobre o tema, a imposição de valores para o acesso aos dados públicos pode esbarrar em outro tema caro ao governo do ex-capitão: a entrada na OCDE.

O ingresso do País na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é uma das bandeiras levantadas pelo presidente Bolsonaro durante seu mandato.

No entanto, o ingresso no bloco é condicionado ao cumprimento de alguns requisitos, como o alinhamento da sistemática tributária brasileira, a diminuição do desmatamento e a transparência de informações e do orçamento público.

A medida em análise na Câmara dos Deputados pode se tornar uma pedra no sapato do presidente que comemorou o sinal verde da adesão do País no bloco.

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