Política

Os projetos prioritários do governo federal para 2022 trazem enormes retrocessos

‘A pauta de Bolsonaro enviada ao Congresso é uma típica pauta do fim do mundo. Uma verdadeira tragédia’, afirma o deputado federal Alessandro Molon

Prato cheio. Somente no ano passado, foram concedidas 562 novas licenças para agrotóxicos químicos ou biológicos – Imagem: iStockphoto e Mauro Pimentel/AFP
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Herói nacional na Rússia, ­Mikhail Kutuzov entrou para a história ao se valer da tática da “terra arrasada” para deter Napoleão Bonaparte em 1812. Sua ideia foi simples e terrivelmente eficaz. À medida que as tropas da França entravam em território russo, o marechal de campo levava as suas a recuarem mais e mais, não sem antes queimar todas as casas e plantações e matar todos os animais pelo caminho. A arapuca deixou os franceses fracos e desprotegidos demais para resistir ao duro inverno e aos contragolpes organizados por Kutuzov. Duzentos e dez anos depois – e muito longe da inteligência tática do militar russo – Jair Bolsonaro e sua base parecem querer repetir no Congresso a tal “terra arrasada”. Com a possibilidade de reeleição parecendo menor a cada dia, o ex-capitão pretende usar o último ano de mandato para aprovar uma série de projetos que, se virarem leis, tornarão ainda mais difícil a vida do seu sucessor.

Com a assinatura do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o pacote de prioridades enviado ao Congresso e publicado em portaria no Diário Oficial da União tem 45 projetos de lei, com 39 deles em tramitação na Câmara ou no Senado. Se aprovadas, as propostas trarão mudanças a setores como economia, infraestrutura, meio ambiente, agricultura, segurança pública, saúde e educação. O comando da operação está todo com o PP, partido de Nogueira e do presidente da Câmara, Arthur Lira, que prometeu empenho em colocar o quanto antes em votação a pauta sugerida pelo governo. O líder do governo na casa, deputado Ricardo Barros, afirmou existir “uma clara linha de ação” em todos os projetos de lei: “Aperfeiçoar o funcionamento do Estado, romper entraves à atividade econômica para modernizar o Brasil”, disse à Agência Câmara.

O sinuoso palavreado de Barros, investigado pela CPI da Covid por suposto envolvimento na aquisição ilegal de vacinas, soa vago e provoca a reação da oposição. A lista de prioridades bolsonarista, alertam alguns parlamentares, está aí para “facilitar a vida” mais de alguns cidadãos do que de outros. “A pauta de Bolsonaro enviada ao Congresso é uma típica pauta do fim do mundo. Desde o PL que libera veneno para o prato dos brasileiros, passando por grilagem e garimpo em terras indígenas até a liberação para mortes indiscriminadas por policiais. Uma verdadeira tragédia que Bolsonaro tenta deixar como herança após o fim desta trágica passagem dele pela Presidência da República”, afirma o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, líder da oposição na Câmara.

Bomba ambiental que tramitava há 20 anos, o “PL do Veneno” libera geral a produção de pesticidas no País

A política de “terra arrasada” de Bolsonaro e do PP poderá ser fatal, sobretudo, para a combalida legislação ambiental brasileira. O conjunto de prioridades em trâmite na Câmara ou no Senado recebeu dos ambientalistas a alcunha de “pacote da morte” por trazer retrocessos ambientais e beneficiar criminosos e infratores em áreas diversas, como grilagem de terras, licenciamento ambiental, caça, terras indígenas, infraestrutura hídrica, mineração, fiscalização ambiental e concessões florestais. Amarga, a primeira proposta do pacote – o PL 6299, mais conhecido como “PL do Veneno”, uma bomba ambiental que tramitava há 20 anos e libera geral a produção de agrotóxicos no Brasil – foi aprovada em 9 de fevereiro com a providencial ajuda de Lira, que determinou votação no plenário em regime de urgência. O texto segue agora ao Senado.

Apresentado em 2002 e à espera de ser pautado em plenário desde 2018, o PL do Veneno dá total autonomia ao Ministério da Agricultura para registrar e classificar pesticidas, inseticidas e defensivos agrícolas no Brasil, um dos maiores consumidores mundiais desse tipo de produto. Somente no ano passado, foram concedidas 562 novas licenças para agrotóxicos químicos ou biológicos. O projeto tira o poder de veto da Anvisa e do Ibama sobre esses venenos e, alerta a oposição, deve aumentar os riscos à saúde trazidos por algumas culturas onde ainda estão em uso substâncias proibidas há anos nos EUA e na União Europeia.

“Não dá para colocar cada vez mais veneno na mesa do povo. Bolsonaro registrou 1,5 mil moléculas de agrotóxicos em três anos”, diz o deputado federal Rodrigo Agostinho, do PSB. Coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, ele afirma que o perigo para a legislação ambiental é muito mais amplo do que a questão dos venenos: “Nosso grande medo é de que novas mudanças no Código Florestal sejam feitas e ocorra um avanço sobre as terras indígenas. O agronegócio e a mineração estão juntos no ataque à legislação ambiental”.

Há ainda na lista do governo o PL 490, ou “PL do Marco Temporal”, que estabelece como Terras Indígenas apenas aquelas que estavam em posse dos índios no momento da promulgação da Constituição de 1988, além de proibir a expansão das mesmas e flexibilizar o contato com os povos isolados. Existe também o PL 191, que permite a mineração em Terras Indígenas e tem, segundo os ambientalistas, o objetivo de legalizar os garimpos ilegais hoje existentes na Amazônia.

De que lado está? As ONGs ambientais sabem que não podem contar com Lira, exímio capataz do governo. A turma apela ao bom senso do presidente do Senado – Imagem: Akira Onuma/Susipe/GOVPA, Pedro Gontijo/Ag.Senado e Redes sociais

Segundo a oposição, o “pacote da morte” de Bolsonaro favorece a grilagem de terras públicas com o PL 2633 (PL 510 no Senado), que abre a possibilidade de regularização fundiária das áreas da União a partir de uma simples “autodeclaração” feita pelos eventuais ocupantes, além de anistiar invasões ilegais. Há também o PL 4546, que institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica e, segundo os críticos, afrouxará ainda mais as exigências e contrapartidas ambientais para empreendimentos no setor.

Em seu todo, o pacote é visto pela oposição como o último esforço de Bolsonaro e sua base no Congresso para desmontar a legislação ambiental brasileira. “É uma tentativa da bancada ruralista e bolsonarista de aumentar seus lucros”, resume o deputado federal Nilto Tatto, do PT.

Não é apenas na área ambiental que o governo federal adota a tática da “terra arrasada”. Na segurança pública, os críticos apontam uma tentativa de aumentar o espaço dos grupos paramilitares e diminuir o dos direitos humanos. O PL 6438, por exemplo, amplia o porte de armas e concede “o direito de andar armado durante o exercício profissional” para diversas categorias de servidores públicos. Se aprovada, colocará armas nas mãos de guardas municipais, agentes de trânsito e peritos criminais, entre outros.

Para Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ampliar as categorias profissionais que têm porte significa o aumento do número de armas de fogo em circulação no País. “O Estatuto do Desarmamento é muito claro ao colocar que somente determinadas carreiras estatais devem fazer uso recorrente de armas. E, ainda assim, com grande parcimônia. Quanto mais armas em circulação, maior é o risco de que possam ser desviadas e usadas contra a própria sociedade.”

Outra frente é o PL 360, que altera a Lei de Execução Penal e acaba com as saí­das temporárias de detentos que estejam cumprindo pena em regime semiaberto: “Esta é uma questão polêmica no Brasil, mas o Estatuto da Saída Temporária está de acordo com o princípio da progressão de regime e da ressocialização do preso. As saídas temporárias devem ser concedidas para que os presos voltem ao convívio harmônico com a sociedade de maneira sustentada e monitorada”, diz Marques.

Na educação, a lista de prioridades de Bolsonaro inclui o PL 2401, em tramitação na Câmara, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para “regulamentar o direito à educação domiciliar”. O projeto busca legalizar a prática conhecida como homeschooling, uma bandeira internacional da extrema-direita severamente criticada pelos educadores.

A proibição das saídas temporárias compromete a progressão de regime e a ressocialização dos detentos

Para reduzir os eventuais danos contidos nas propostas aprovadas na Câmara, as entidades da sociedade civil contam com a ajuda do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD. Em carta aberta, o Greenpeace pergunta se ele está do lado da destruição ou do lado da vida: “Nós precisamos que o Congresso Nacional cumpra o seu papel de representar a população brasileira, freando a boiada destruidora que está passando para favorecer poucos grupos empresariais”. A organização afirma que Lira “já provou ser o funcionário número 1 do governo Bolsonaro” e pressiona Pacheco. “Cabe ao presidente do Senado decidir de qual lado quer estar.”

Desde o início da pandemia, Pacheco por diversas vezes atuou como contraponto a Lira e ajudou a barrar no Senado propostas de interesse do governo. A oposição espera que isso se repita: “Temos esperança de que o Senado fará as alterações necessárias como casa revisora ou simplesmente não paute tantos retrocessos vindos da Câmara”, diz Agostinho.

Presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, Jaques Wagner, do PT, avalia que, se submetidas a um trâmite normal, muitas pautas danosas podem ser neutralizadas pelos senadores: “Estamos em interlocução direta com o presidente Rodrigo Pacheco, para que as propostas que tenham relação com as pautas ambientais, vindas da Câmara ou direto do próprio governo, tenham sua tramitação normal no Senado, passando pelas comissões. E também com a devida transparência e os debates que se fazem necessários para melhorar as propostas”.

A preocupação de Wagner justifica-se pelo fato de que, na Câmara, Lira tem utilizado permanentemente o recurso do regime de urgência para acelerar a aprovação dos projetos de interesse do governo. Com base na célere aprovação do PL do Veneno, o PV deu entrada na sexta-feira 11 em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF que questiona a utilização do regime de urgência em matérias socioambientais consideradas sensíveis. O partido cita a Constituição Federal e pede que o Supremo proíba Câmara e Senado de pautar as votações dessa forma. “Propostas desprovidas de real urgência e que podem causar sérios danos à sociedade tramitam pelo regime sumário no Congresso Federal, o que acaba por tolher o debate intrínseco à democracia no âmbito da aprovação de leis.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terra arrasada”

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