Política

Os caminhos do demônio

O sistema de desinformação e fake news encontra terreno fértil no Brasil

Livrai-nos do Mal, amém - Imagem: Douglas Magno/AFP
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Em um culto em Belo Horizonte para homenagear um pastor, no começo de agosto, a primeira-dama ­Michelle ­Bolsonaro, ao lado do marido, disse que há no Brasil uma “guerra do Bem contra o Mal”, e que o Palácio do Planalto já foi um lugar “consagrado aos demônios”. Também em agosto, o pastor bolsonarista Marco Feliciano disse que o PT é a expressão do Mal e que, se ganhar, ­Lula vai fechar templos e igrejas e calar os pastores. O jornal Folha Universal, no ano passado, fez vários editoriais, nos quais compara o ex-presidente ao demônio e ao Mal. Em janeiro deste ano, circulou pelas redes sociais um vídeo editado para simular uma “conversa” do petista com o diabo.

A ideia do demônio, como vemos, volta com força à cena nacional e ao processo eleitoral, por meio de vários atores. Uma ideia forte que se alinha muito bem ao potente sistema de desinformação que sacode o Brasil com intensidade, desde as eleições de 2018. Nesse contexto, quero convidá-lo a percorrer o caminho da construção discursiva do demônio no escopo do ecossistema das fake news para entendermos, porque, de fato, ele é um “personagem” importante.

O Brasil tem vivenciado, desde as eleições de 2018, a intensificação de um processo de desinformação que se torna pouco controlável a partir de 2020, com a pandemia de Covid-19. Nesse contexto, a desinformação precisa ser entendida como um fenômeno estruturado, intencional, que se consolida nas sociedades contemporâneas, tem fortes impactos em vários contextos – social, político, econômico, de saúde – e compromete seriamente o funcionamento da esfera pública.

O ecossistema brasileiro de fake news tem, no entanto, características bem marcantes: aporte e sustentação do Poder Público e de setores do empresariado, grande financiamento, produção intencional e profissional de conteúdo falso envolvendo diversos atores (por exemplo, sites com estrutura de produção de conteúdo, influenciadores que recebem benesses, representantes do Poder Público, entre outros) e enorme capilaridade para disseminar o conteúdo. Esse ecossistema, que nada tem de aleatório ou casual, encontrou no País um campo bastante fértil para se desenvolver (lembrando que a capilaridade envolve a interface com outros sistemas, portanto, não se trata somente de “espalhar conteúdo” pela internet). É um ecossistema que, com essas características, tem conseguido causar enormes estragos ao Brasil, em vários setores. Neste momento, contribui para tumultuar bastante o processo eleitoral.

O fenômeno das fake news, em seu ecossistema brasileiro, não se esgota, portanto, na disseminação das notícias falsas ou falseadas. Há um processo de produção profissional de conteúdo que envolve muitos atores e financiamento. Além disso, esse ecossistema se retro­alimenta e está em interface com outros, como o de informação (tradicional, mídia corporativa) e o religioso, numa capilaridade gigantesca.

E então voltamos ao demônio da primeira-dama e seu papel nas eleições. O demônio, como construção discursiva, liga-se à ideia de um inimigo poderoso que precisa ser combatido. Nós, ao nos comunicarmos, não pronunciamos palavras somente – pronunciamos verdades ou mentiras, coisas boas ou más, certezas inquestionáveis, pois a palavra comporta valores e crenças e visões de mundo. Portanto, o demônio trazido à tona recentemente pela primeira-dama e por outros funciona muito bem nesse ecossistema de fake news, pois o termo cristaliza a ideia de um inimigo a combater a partir de um apelo a valores cristãos num cenário de disputas polarizadas.

Essa ideia se consolida e se espalha por várias instâncias, numa retroalimentação que envolve diversos sistemas – o demônio como ideia não se restringe à fala de Michelle naquele momento no culto, mas se espalha pelas redes sociais, pelos sites bolsonaristas, pela pregação do pastor na igreja, pelos artigos no jornal de maior circulação no País (que é da igreja). Portanto, não é uma expressão aleatória nem um demônio qualquer – é uma entidade capaz de provocar os eleitores religiosos ainda indecisos, ou que estavam prontos a migrar para outros candidatos que não Bolsonaro, e interpelar fortemente esse eleitor naquilo que é sua crença ou seu medo.

E, EM MOMENTOS DE INCERTEZAS, MEDO DO FUTURO, PRECARIZAÇÃO DA VIDA, A IDEIA DE UM MAL A COMBATER TEM O SEU APELO

As categorias religiosas não são levadas aleatoriamente para o discurso num país bastante religioso como o Brasil. Elas dialogam de perto com as crenças, os valores, os medos, as incertezas dos fiéis, e por isso são tão presentes no escopo das fake news – vale lembrar que a visão de mundo dos indivíduos não é racional todo o tempo. E, em momentos de incertezas, medo do futuro, precarização da vida, a ideia de um demônio a combater pode ser efetiva.

No bem estruturado ecossistema brasileiro de fake news, essas construções discursivas encontram um caminho para se consolidar, para se dissipar, para se reproduzir, para alcançar mais e mais brasileiros, fortalecendo-se contra os desmentidos e provocando a manifestação apenas reativa e tardia dos atingidos. Portanto, é imperioso entendermos o demônio de Michelle no cenário de um acachapante sistema de desinformação, estruturado e estruturante. Uma ideia de Bem contra o Mal, de combate ao inimigo que destrói famílias, ideia trazida por uma mulher jovem, defensora da família, que se posta ao lado do marido presidente, aquele que perdeu uma parte expressiva do eleitorado feminino exatamente por ser abertamente machista e misógino. Sobretudo, o discurso que traz o demônio à cena nacional serve muito bem para consolidar a agenda ultraconservadora da extrema-direita e para tirar o foco de temas e pautas que realmente interessam ao País e que deveriam estar mais presentes no debate: fome, desemprego, economia estagnada, aumento acentuado da depressão na população, corte de verbas públicas para a educação e a saúde, entrega da Petrobras e privatização da Eletrobras, entre tantas outras.

Por ora, metaforicamente ou não, o capeta está roubando a cena no Brasil de Bolsonaro. •

Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

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