Política
O xadrez de Lula
O que levou o presidente a indicar Flávio Dino ao STF e o “conservador raiz” Paulo Gonet para a PGR


Na manhã de 22 de novembro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, recebeu em sua residência oficial alguns senadores para discutir uma votação polêmica marcada para aquela tarde. Na véspera, o plenário decidira que a proposta de reduzir os poderes individuais dos juízes do Supremo Tribunal Federal poderia ser votada sem os intervalos de tempo requeridos para mudar a Constituição. Dos 81 senadores, 48 haviam apoiado o rito especial, um a menos que o necessário para alterações constitucionais. Um dos presentes na reunião com Pacheco era o líder do governo no Senado, Jaques Wagner, do PT. Ele e os dois colegas de Bahia (Ângelo Coronel e Otto Alencar, ambos do PSD, o partido de Pacheco) não estavam entre os votos a favor do rito especial.
Wagner fora até Pacheco com a visão de que a votação do rito mostraria que a tentativa de desidratar togados supremos, uma bandeira do bolsonarismo, tinha força para vingar. Na reunião, da qual participou Espiridião Amim, do PP, o relator da proposta, Wagner ouviu de Pacheco que houve juiz do STF que tinha sido consultado e ajudado a chegar ao relatório final de Amim, apesar da revolta da Corte com o que o Senado preparava. Diante do quadro geral, Wagner resolveu votar a favor da proposta. Caso ela valesse em 2016, o petista poderia ter sido substituído por Lula na chefia da Casa Civil de Dilma Rousseff, algo talvez capaz de frear o impeachment. A troca havia sido proibida por Gilmar Mendes, membro do Supremo dos mais indignados com a mudança constitucional gestada no Senado. Entre os 52 votos a favor dela, estava o trio da Bahia (sem os três, seriam 49 votos, o mínimo necessário para aprová-la).
O voto de Wagner foi isolado no PT. O senador havia conversado antes com o líder da bancada petista, Fabiano Contarato, e deixado claro: o governo não tinha posição e ele (Wagner) votaria com a própria convicção. Os petistas, prosseguiu, deveriam fazer o mesmo, ou seja, manter a postura contrária àquela defendida pelo bolsonarismo. Um dia após o Senado tirar poderes dos magistrados, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, foi a Lula. À noite, mais três juízes estiveram com o petista: Mendes, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin. Os dois primeiros e Barroso haviam sido as vozes publicamente mais duras com o Senado. Queriam saber de Lula se Wagner tinha combinado o voto com o presidente. Uma autoridade do Palácio do Planalto diz: não combinou.
A Corte é vista no Palácio do Planalto como essencial para a estabilidade do governo
As tensões entre o Supremo e o governo precipitaram uma decisão adiada por Lula há meses. Em 27 de novembro, o presidente indicou um integrante para o tribunal e um procurador-geral da República. Foi o desfecho de um xadrez da realpolitik. Para o STF, Lula escolheu Flávio Dino, o ministro da Justiça, opção bem recebida pelo eleitorado progressista, exceto pelos defensores de uma mulher para a vaga de Rosa Weber, aposentada em setembro. Para a Procuradoria, outro posto vago desde setembro, em razão do fim do mandato de Augusto Aras, Lula pinçou um “conservador raiz”, Paulo Gonet Branco, atual vice-procurador-geral eleitoral. Falta saber quem herdará o lugar de Dino. “Lula indicou quem queria indicar há muito tempo. Ele ainda não resolveu a equação chamada Ministério da Justiça e queria ter resolvido antes de indicar”, afirma uma autoridade governamental.
Com Dino, Lula espera ter uma espécie de líder do governo no Supremo. É o que diz uma fonte palaciana. O ministro possui envergadura política, ao contrário de Zanin, o primeiro indicado presidencial para a Corte. Pela visão progressista e a proximidade com o presidente, Dino tende a lhe ser fiel. A Corte é vista no Palácio do Planalto como essencial para o funcionamento e a estabilidade do governo. O Congresso é direitista e dado ao estilo faca no pescoço, por exemplo.
Dino será sabatinado no Senado em 13 de dezembro. Credenciais jurídicas para exibir, tem. É bacharel em Direito, foi juiz federal de 1994 a 2006 e dirigiu a associação da categoria, a Ajufe. Ao chegar em Brasília neste ano, eleito senador pelo Maranhão, não planejava voltar à toga – pela idade ficará no STF até 2043. Sonhava era com a Presidência. Um amigo conta que, desde o início dos rumores sobre a ida para o STF, Dino precisou se reprogramar interiormente. A propósito, em 14 de agosto, o ministro teve uma longa conversa com Lula no Palácio da Alvorada, e o presidente não tocou no assunto “STF”. Dino contou a história a Valdemar Costa Neto, o presidente do PL de Jair Bolsonaro, em 19 de setembro. “É prova de que ele vai te indicar”, comentou Costa Neto. Este, recorde-se, foi aliado de Lula nos governos anteriores.
Convicção própria. Wagner não combinou com Lula o voto para restringir poderes do STF – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado
O presidente ficou mais à vontade para escolher Dino para o STF ao indicar à Procuradoria alguém apoiado por dois poderosos togados supremos, Mendes e Moraes. Gonet, teorizava, em junho, a CartaCapital um subprocurador-geral aposentado, seria uma escolha puramente “pragmática” da parte de Lula. Indicação que embute risco também. O procurador-geral é o único autorizado a processar por crime comum o presidente e seus ministros. A tranquilidade de Lula nos próximos dois anos, o tempo de mandato do “xerife”, dependerá de Gonet e, portanto, de Mendes e Moraes. Uma dupla togada que, por outro lado, pode ter a influência reduzida por Dino no Supremo.
Gonet será fundamental também no futuro do antecessor de Lula. Com Aras, o órgão foi contra a delação do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência de Bolsonaro. A delação foi selada com a Polícia Federal em setembro e validada pelo Supremo. As informações e provas fornecidas por Cid sobre milícias digitais, comércio de joias, carteira de vacinação imerecida existente em nome de Bolsonaro e a tentativa de golpe em 8 de janeiro terão consequência apenas na hipótese de o “xerife” encampá-las e transformá-las em denúncia criminal. Idem para o relatório da CPI do 8 de Janeiro, que caracterizou o ex-presidente como “autor intelectual” do quebra-quebra.
Por ter tido apoio de Mendes e Moraes para ser procurador-geral, é de se supor que Gonet não aliviará para Bolsonaro. Todos os inquéritos delicados para o capitão em curso no Supremo, sob a batuta de Moraes, têm andado por obra da PF, não da Procuradoria. Decisões judiciais e manifestações públicas de Moraes e Mendes os mostram dispostos a punir o ex-presidente. Em nome do MP, Gonet foi a favor de o Tribunal Superior Eleitoral cassar os direitos políticos do ex-presidente por oito anos em dois julgamentos realizados neste ano sob o comando de Moraes. Vale lembrar, porém, como faz Cláudio Fonteles, procurador-geral de 2003 a 2005: “O indicado consentiu com a omissão de Augusto Aras no governo Bolsonaro”.
Agora falta saber quem será o novo ministro da Justiça. Especula-se que será uma mulher ou Lewandowski
Uma carta aberta de 20 de novembro da “Coalização em Defesa da Democracia”, que entre outros reúne a Associação Juízes pela Democracia e o MST, criticava a eventual indicação de Gonet por Lula justamente pelo estado do País e do Ministério Público Federal após Bolsonaro e Aras. Para o grupo, o País precisava de um procurador-geral com “sólido histórico de defesa dos direitos humanos, de atuação efetiva na defesa da democracia e atividade coerentemente orientada pelo projeto constitucional”. Gonet tem mestrado em Direitos Humanos (pela Universidade de Essex, na Inglaterra), mas é um “conservador raiz”. A descrição foi feita pela deputada bolsonarista Bia Kicis após ela tê-lo levado ao capitão em 2019. Gonet tentava ser o escolhido procurador-geral, contava com o apoio da ala conservadora do Ministério Público. É contra o aborto e a decisão do Supremo de equiparar homofobia a racismo. Como nome do MPF na Comissão de Mortos e Desaparecidos nos anos 1990, votou contra (e foi derrotado) responsabilizar a ditadura por alguns assassinatos, casos de Carlos Lamarca e de Carlos Marighella.
Na realpolitik lulista, agora falta saber quem será o novo ministro da Justiça. No governo, há quem defenda nomear uma mulher. Na viagem ao exterior feita no dia das indicações de Dino e Gonet, Lula tem em sua comitiva Ricardo Lewandowski, na condição de conselheiro da Confederação Nacional da Indústria. Desde a eleição de Lula, o ex-juiz do Supremo sonhava em ser ministro da Justiça. Até apostava que Dino não duraria no cargo. •
Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O xadrez de Lula’
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