Política
O plano Dino
O ministro da Justiça promete unir inteligência e força no enfrentamento da criminalidade e da violência


Balneário Camboriú, cidade de 139 mil habitantes no litoral norte de Santa Catarina, tem hoje o metro quadrado mais caro do Brasil. O boom imobiliário mudou a paisagem. O maior arranha-céu do País foi inaugurado no município em dezembro de 2022. O jogador Neymar comprou na região uma cobertura de 60 milhões de reais, antes de, em agosto, trocar Paris pelas Arábias. Quem também investiu no município foi o PCC. As polícias Federal e Civil do Paraná descobriram 268 apartamentos, em torres de luxo, que a facção criminosa mantinha em nome de um laranja. Era lavagem de dinheiro da exportação de cocaína para a Europa a partir do porto paranaense de Paranaguá. Os imóveis foram confiscados pela Justiça em maio, numa operação policial, a Downfall, que resultou no bloqueio de 1 bilhão de reais em bens.
De janeiro a agosto, a PF apreendeu 2,2 bilhões de reais do crime organizado, seis vezes mais que no mesmo período de 2022. E tem autorização judicial para sequestrar mais 5,8 bilhões, embora ainda precise identificar bens físicos para tanto. “Descapitalizar” os grupos é uma aposta do Ministério da Justiça para combatê-los. Vem aí uma rede nacional de inteligência com órgãos federais e polícias civis estaduais para caçar o patrimônio das 60 facções atuantes no País. Será uma padronização das técnicas do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional, repartição federal. “Por que as facções se fortaleceram no Brasil, ao longo das décadas, especialmente nos últimos anos? Porque não foram combatidas, hoje elas têm o poder bélico mais alto da história e o poder financeiro mais alto da história brasileira”, discursou o ministro da Justiça, Flávio Dino, na segunda-feira 2, ao lançar um plano contra o crime organizado, o Enfoc.
Cálculos do promotor paulista Lincoln Gakiya, especialista em PCC, apontam que o grupo fatura 1 bilhão de dólares (5 bilhões de reais) por ano, graças, sobretudo, à exportação de cocaína. Produto que chega ao Brasil via Colômbia, Peru e Bolívia e sai para o destino final pelos portos. Em 19 de setembro, a PF e a Marinha fizeram apreensão recorde de droga no litoral, 3,6 toneladas de pó. A embarcação com a mercadoria foi interceptada no mar a 33 quilômetros do Recife. Tinha saído do porto catarinense de Itajaí rumo à África. O Enfoc prevê ações especiais nos portos.
“Não se enfrenta o crime organizado com rosas”, afirma Ricardo Capelli, secretário-executivo da pasta
Combater as facções por meio da integração das polícias, da inteligência e da caça ao dinheiro são medidas corretas, na visão do sociólogo Gabriel Feltran, estudioso do PCC. Os grupos criminosos crescem há três décadas, diz, pois até então prevaleceu a lógica militar. Feltran vê, porém, falhas nos planos federais. Uma: tudo será feito com as estruturas policiais existentes. Polícias autônomas demais, que matam muito e pouco esclarecem os assassinatos. Só 37% dos homicídios são investigados, estima o especialista, e menos ainda esclarecidos. No ano passado, o Brasil teve 39,5 mil assassinatos dolosos, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e 47,3 mil mortes violentas intencionais, incluídos os latrocínios e a lesão corporal grave seguida de morte.
O Ministério da Justiça lançou, em setembro, um programa para tentar reduzir os homicídios nos 12 estados mais violentos. Desses, cinco são do Nordeste e aqui entra em campo o fator “política”. A segurança pública é hoje um dos dois maiores problemas nacionais, ao lado da saúde, ambas citadas por 17% dos entrevistados pelo Datafolha. Não era assim em dezembro, antes da posse de Lula (a segurança tinha 6%). Entre aqueles que mais se preocupam com a segurança estão cidadãos acima de 60 anos (22 %), donas de casa (25%), moradores do Nordeste (23%) e eleitores do PT (20%).
A primeira grande crise de segurança pública do ano ocorreu em um estado comandado pelo PT, o Rio Grande do Norte, da governadora Fátima Bezerra. Há outra em curso na Bahia, estado controlado há 16 anos por petistas, sobre a qual se falará adiante. Um dos cabeças da campanha lulista lembra que o programa de governo do presidente priorizava a segurança pública. Uma das ideias era valorizar as polícias, identificadas com o bolsonarismo. Os deputados da Bancada da Bala aprovaram, em 2022, uma Lei Geral das PMs e o projeto está no Senado aos cuidados do líder do PT, o capixaba Fabiano Contarato, delegado civil de origem. Contarato diz que convocará audiências púbicas para aprovar a lei ainda neste ano.
Batalha campal. A polícia baiana bate recorde de homicídios. No Rio, o crime treina como guerrilha. Barroso insta o governo a melhorar as condições nos presídios – Imagem: Rafael Martins/GOVBA, Valter Campanato/ABR e Redes sociais
Segundo o ex-integrante da campanha lulista, há no PT quem seja contra o governo abraçar a causa da segurança, pois se trata de um pepino e de uma atribuição estadual. E há quem defenda que o presidente desmembre a pasta da Justiça, crie um Ministério da Segurança Pública e o entregue a uma deputada petista, Adriana Accorsi, delegada. Dino é contra a cisão da pasta, mas sobreviverá no ministério? Lula e governistas do Palácio do Planalto veem nele um nome para o Supremo Tribunal Federal, no lugar de Rosa Weber. O ministro prefere ficar onde está, sente-se um animal político e só iria para o STF se o presidente insistisse, diz um conhecido. Um ministro sustenta o contrário: Dino quer a Corte.
Enquanto segue no cargo, o ministro aposta, de um lado, no intelecto, e do outro, no punho. É como diz seu secretário-executivo, Ricardo Cappelli: “Não se enfrenta o crime organizado com rosas”. Foi uma declaração a propósito da Bahia, estado que, ao lado do Rio de Janeiro, terá tropas da Força Nacional de Segurança. Brasília destacou 570 homens (entre Força Nacional e Polícia Rodoviária Federal), 72 blindados (idem), um helicóptero e um veículo de resgate (ambos da PRF) para o Rio, o berço do Comando Vermelho. No ano passado, o estado teve 4.485 mortes intencionais violentas, o equivalente a 9,4% do total nacional. É mais do que a proporção estadual na população do País, de 7,8%.
A dobradinha com Brasília será testada no maior conjunto de favelas cariocas, o Complexo da Maré, dominado por facções criminosas, tendo à frente o Terceiro Comando Puro, rival do CV. Lá há treinamento de guerrilha, segundo descobertas da Polícia Civil reveladas pelo Fantástico. Se a ação conjunta funcionar, será “irradiada” para outras áreas, disse o governador fluminense, Cláudio Castro, do PL, na segunda-feira 2, após se reunir com Dino. “Que a gente possa, sobretudo, prender lideranças, fazer uma desestruturação deles e fazer a asfixia financeira dessas organizações criminosas.”
No dia seguinte à declaração, o Ministério Público Federal cobrou explicações do governo Lula sobre os planos para o Rio. Queria saber, entre outros pontos, se as tropas da Força Nacional usarão câmeras nas fardas, ordem do ministro Edson Fachin, do Supremo, para os PMs fluminenses. O Rio tem a segunda polícia mais homicida, responsável no ano passado por 20% das mortes causadas por policiais no País. Em 2021 e 2022, o Rio assistiu a dois dos maiores massacres policiais de sua história: o do Jacarezinho (28 vítimas, recorde do estado) e o da Vila Cruzeiro (25 mortos). A cobrança do Ministério Público adiou a entrada em cena da Força Nacional até a ida de Cappelli ao estado para negociar com o órgão.
O Rio de Janeiro e a Bahia vão receber apoio federal para conter a escalada da violência
O posto de polícia que mais mata pertence à Bahia, outro estado em que haverá ações em parceria com Brasília. No ano passado, a polícia baiana matou 22% do total nacional. Notícia embaraçosa para um dos homens fortes de Lula, o chefe da Casa Civil, Rui Costa, governador do estado de 2015 a 2022 e padrinho político do atual mandatário, Jerônimo Rodrigues. Embora tenha 6,9% da população nacional, o estado respondeu por 12,7% dos homicídios dolosos em 2022 e por 14% (6.659) das mortes intencionais violentas.
Enquanto as estatísticas vinham a público, despontava uma crise na segurança pública no estado causada por guerra entre facções e pela reação da PM. De um lado, o TCP e uma facção local, o Bonde do Maluco. Do outro, o CV e mais uma facção local, o Comando da Paz. Em disputa, o controle de rotas de tráfico de drogas, incluídos os portos. Uma operação de maio da PF descobriu, segundo a Folha de S.Paulo, que o Bonde do Maluco controla uma ilha a 23 quilômetros de Salvador, transformada em bunker de drogas e armas. Desde agosto, a PF integra com agentes de segurança da Bahia uma força-tarefa e viu uma baixa em 15 de setembro: Lucas Caribé morreu em um tiroteio.
Rodrigues esteve com Dino em 25 de setembro e depois recebeu em Salvador o secretário nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, para definir ações conjuntas similares àquelas que ocorrerão no Rio, junção de intelecto e porrete. Brasília destacou 109 homens, cinco blindados e um helicóptero. Há ainda investimento no sistema penitenciário, para isolar líderes de facções criminosas.
Na quarta-feira 4, o Supremo deu três anos para o governo federal acabar com aquilo que uma ação do PSOL chama de “estado de coisas inconstitucional” nos presídios brasileiros: superlotação, condições indignas etc. Foi o primeiro julgamento marcado pelo novo presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso. Para ele, a situação atual “impede o sistema de cumprir seus fins básicos, que são a ressocialização do preso e a segurança pública da sociedade”. No dia em que tomara posse, em 28 de setembro, Barroso havia defendido uma nova política sobre drogas. Uma mudança para a qual o Supremo tenta contribuir com o julgamento, ainda inconcluso, que definirá a quantidade de maconha que um indivíduo precisa transportar para que a polícia esteja autorizada a prendê-lo. A política atual, segundo o juiz, só serve para destruir famílias e aumentar o exército do crime organizado: jovens pobres e negros são presos e, no cárcere, precisam escolher uma facção criminosa à qual pertencer. Segundo Feltran, o Brasil tem 5 milhões de faccionados.
Mas a sociedade não está preparada para essa discussão. Nas pesquisas, a ampla maioria é contra descriminalizar as drogas. E quem podia tentar mudar as mentes faz o oposto: joga para a plateia. O Congresso, na figura de seu presidente, senador Rodrigo Pacheco, quer mudar a Constituição para criminalizar toda e qualquer posse de drogas. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O plano Dino’
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