Política

Qual o papel do Ministério Público na democracia?

A Constituição fundou um novo Ministério Público, mas não deferiu aos seus integrantes a tutela dos brasileiros

Imagem: Antonio Augusto/PGR
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A reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, após o cumprimento de 580 dias de prisão sem sentença penal transitada em julgado, em um processo que foi ao cabo declarado nulo pelo STF, e os desdobramentos econômicos e políticos da denominada Operação Lava Jato impõem, por si sós, uma reflexão sobre o papel do Ministério Púbico nos últimos anos.

É oportuno recordar que o Ministério Público foi redesenhado pela Constituinte de 1987 para ser uma espécie de ­ombudsman contra os excessos cometidos pela ditadura que vigeu por duas décadas, a partir de 1964. Nesse período é digna de nota a atuação da Polícia Federal na estruturação dos denominados DOI-Codis, aparelhos oficiais arbitrários destinados a perseguir, capturar e torturar ativistas políticos contrários ao regime de exceção. Não se trata aqui apenas de tecer uma entre tantas outras narrativas possíveis a respeito da sombra que se abateu sobre a sociedade brasileira após o golpe militar, mas de fatos históricos fartamente comprovados.

A redemocratização do País, conquistada pela sociedade civil na década de 1980, trouxe consigo a forte consciência de que a atividade persecutória não poderia seguir subordinada integralmente ao Poder Executivo e obedecer a uma lógica militar, de repressão ao inimigo, como ocorrera com a polícia política: daí a importância de submetê-la ao controle de um órgão do próprio Sistema de Justiça, no caso, ao Ministério Público. Os trabalhos da Constituinte de 1987 foram palco de fortes embates entre as entidades de classe dos delegados de polícia e integrantes do MP e prevaleceu o estabelecimento do controle externo a que alude o artigo 129 da Constituição. Para o desempenho da honrosa função, o Ministério Público passou por grande transformação. Foram-lhe conferidas as garantias funcionais da Magistratura. Embora já disciplinadas pela Lei Complementar 40, de 1981, a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade ganharam nova estatura para a defesa dos direitos humanos.

Por não serem eleitos, procuradores e promotores não representam a soberania popular

O novo perfil constitucional do MP não teve por objetivo conferir mais poderes acusatórios à instituição. Durante a ditadura, os antigos promotores públicos, procuradores da República e procuradores da Justiça haviam desempenhado ordinariamente suas atribuições, se não colaborando com a repressão, ao menos atuando nos processos penais instaurados contra ativistas políticos, à semelhança do que ocorrera com tantas outras instituições do Estado. Há um comovente relato, nesse sentido, do imortal Darcy Ribeiro em suas Confissões, no qual descreve sua indignação pela visita periódica de um procurador da República ao seu cárcere, para interrogá-lo, quando o que esperava é que um integrante do MP ali comparecesse para libertá-lo da injusta prisão e não para denunciá-lo.

O MP foi, de longe, a grande novidade da Constituição de 1988. O Poder Judiciário não passou por esse processo de renovação durante o período constituinte: dormiu servindo à ditadura e acordou a serviço da democracia. A Constituição fundou um novo Ministério Público, sem precedentes no Brasil e no mundo. Parafraseando Ingeborg Maus, uma espécie de superego do próprio Estado. Mas isto não deferiu aos integrantes do MP a tutela dos brasileiros.

O Ministério Público Federal foi, entre seus congêneres, o que mais se renovou no processo constituinte. Deixou de fazer a defesa da União, atribuição que acumulava com o ofício criminal e cível, e que tomava a maior parte de sua força de trabalho. Com a instalação da Advocacia-Geral da União, incumbida exclusivamente da defesa do governo, abriu-se, no ano de 1993, uma nova oportunidade de atuação para os procuradores da República no campo dos direitos difusos e coletivos. A grande atração da carreira, na nova ordem constitucional, eram os direitos de segunda geração, de atribuição dos ofícios cíveis. E o maior contingente do MPF, logo após a instalação da AGU, em 1993, migrou para esses ofícios: patrimônio cultural, meio ambiente, defesa das populações indígenas, consumidor, patrimônio público e combate à improbidade administrativa.

Há um bordão que é repetido quase como um mantra em congressos de promotores e procuradores, de que o Ministério Público seria um agente de emancipação da sociedade brasileira. Um elemento de indução e fortalecimento da cidadania. Uma perspectiva paternalista que padece, ao menos, de dois males: o primeiro é o da arrogância, por acreditar que a sociedade civil vive ainda algum tipo de minoridade e que uma instituição do Estado poderia conduzi-la ao bom caminho, algo que se assemelharia à regência trina de D. Pedro II. O segundo decorre de um vício de legitimidade, pois os integrantes do MP, porque não são eleitos, não representam a soberania popular e, por conseguinte, não falam em nome ou agem politicamente em nome da sociedade brasileira. Essa tutela já estaria, desde o seu nascedouro, impregnada por um déficit democrático.

Imagem: Heuler Andrey/AFP

O MP tornou-se uma polícia com poderes superlativos, realizando operações persecutórias no Brasil e no exterior

Ora, em uma sociedade livre são os próprios cidadãos que se conferem os direitos fundamentais, na medida em que são autores e destinatários de todo o ordenamento jurídico. Na teoria constitucional moderna, essa circularidade se expressa por meio da fórmula “todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido”. Isto se realiza segundo normas jurídicas que são legitimadas porque emanadas de um Parlamento eleito pelo povo e porque realizam o projeto político de efetivação dos direitos fundamentais. Este é aspecto muito relevante porque estabelece uma matriz de legitimação secular do poder que é, concomitantemente, a própria expressão da laicidade do Estado: como todo o poder emana do povo, e não de Deus, as garantias fundamentais são também um construto humano e não metafísico. Em síntese, não são uma expressão religiosa ou mística. E o poder do povo manifesta-se nas eleições, no exercício do direito ao voto que confere mandato aos parlamentares nos três níveis da federação, bem como aos prefeitos, governadores e ao presidente da República.

Incumbe a todos os poderes do Estado, eleitos ou não eleitos, zelar pelo efetivo respeito aos direitos fundamentais, pois são eles a fonte primária de legitimação de todo o ordenamento jurídico, como expressão primeira da soberania popular. O Poder Executivo não pode estabelecer formas de discriminação na prestação dos serviços públicos que violem esses direitos. O Poder Legislativo não pode aprovar leis que suprimam ou restrinjam o seu pleno exercício. O Poder Judiciário deve respeitá-los, como a pedra angular de suas decisões, e intervir para declarar a nulidade das leis que os afrontem.

Historicamente, observa-se que é no exercício do seu poder persecutório e punitivo que o Estado revela suas mais profundas distorções. A primeira delas é acreditar que a persecução penal, para ser efetiva, deve relativizar as garantias fundamentais, sob pena de não ter potência para deter o avanço da criminalidade. As garantias fundamentais, segundo essa perspectiva, deveriam servir a um pragmatismo judiciário. Em nosso sistema jurídico, como sabemos, cabe aos juízes, em última instância, como mediadores dos conflitos de interesses, a tutela dos direitos humanos.

A segunda distorção consiste em integrar os próprios integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público no aparelho persecutório. Nesse contexto, aos membros do MP e aos juízes seria estendido o compromisso de combater e reprimir a criminalidade, típico da atividade policial, inerente ao Poder Executivo. Neste novo contexto, juízes e promotores, que deveriam zelar pela realização da persecução penal e pelo exercício da acusação e da punição dentro dos limites da lei, passariam a integrar o próprio aparelho repressivo estatal.

É neste contexto que o Ministério Público de 1988, que fora refundado como o guardião dos direitos humanos, voltou a perseguir sistematicamente a condenação tal qual faziam os antigos promotores públicos, em uma cruzada contra a corrupção e a impunidade. Uma agenda na qual os direitos humanos foram colocados como obstáculos para a produção de resultados midiáticos e para o sucesso de suas forças-tarefas. Nesse sentido, durante as primeiras décadas dos anos 2000 foram promulgadas leis de combate à corrupção e ao crime organizado para a relativização dos direitos humanos e o fortalecimento do aparato persecutório do Estado. Este novo marco regulatório reacendeu no MP o antigo vetor punitivista: alguém que fala pela sociedade contra alguém que está à margem da sociedade e não alguém que faz a mediação humanitária entre o aparelho persecutório policial e o sistema judicial punitivo.

O Ministério Público, mediante a assunção integral de poderes investigatórios, na área cível e criminal, inclusive pela propriedade de um “guardião”, renunciou ao seu papel de ombudsman para­ ­tornar-se uma polícia com poderes superlativos, realizando operações persecutórias, no Brasil e no exterior, ao lado da própria Polícia Federal. Esta é que deveria controlar externamente por um imperativo histórico e por dever constitucional.

Regras. Os deputados constituintes não deram poderes absolutos ao MPF. Os procuradores devem fazer o exercício da acusação dentro dos limites da lei – Imagem: Arquivo/Senado Federal

Estamos de volta ao golpe de 1964, quando se deu a legitimação da intervenção militar sobre o poder civil sob o argumento do combate à corrupção, mesmo que o custo fosse a aniquilação dos direitos fundamentais: o estado de exceção que vigeu por 21 anos. O Ministério Público, concebido para ser o guardião das garantias fundamentais e da cidadania, une-se às instituições que deveria controlar e fiscalizar e, mesmo que de boa-fé, assume o protagonismo do sistema persecutório. As forças-tarefas, integradas por policiais, autoridades fazendárias, procuradores e até mesmo juízes adquirem grande desenvoltura, atuando na cooperação internacional, segundo relatos da imprensa, à margem do Ministério da Justiça.

Como alerta o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, a promoção dessas agendas não pode ser dissociada de uma estratégia de guerra híbrida para a manutenção dos interesses do capitalismo central, como forma de desestabilizar qualquer governo hostil, mesmo que democrático, nas nações periféricas. Então não é mais necessário buscar respostas do porquê da prisão arbitrária de um dos maiores líderes populares de todos os tempos, no cumprimento de uma sentença criminal nula e ilegal, ou do desmonte da política energética brasileira e da exposição da Petrobras à execração internacional, com a privatização do pré-sal.

No momento em que o mundo volta novamente os olhos para o Brasil, quer pela crise humanitária que assola o povo Yanomâmi, quer pela necessidade de preservar a floresta, quer pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, o caminho a trilhar pelo Ministério Público para retornar à sua vocação democrática, embora não seja fácil, está claro. O pacto político de 1987 persiste legítimo e continua hígido. Sem descurar da titularidade da ação penal pública, é hora de a instituição concentrar seus esforços na promoção de uma agenda social e ambiental que contemple os direitos humanos em todas as suas dimensões e que faça jus ao protagonismo do Brasil no concerto das nações. •


*Subprocurador-geral da República.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O papel do MP “

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